Sudeste: Batuques de terreiro
Comunidades de São Paulo e do Rio de Janeiro preservam formas de expressão em música e dança herdadas dos negros escravizados, apesar da longa história de perseguição
TEXTO Guilherme Novelli
01 de Março de 2016
O fogo representa o elo com a ancestralidade do grupo
Foto Alexandre Kismimoto/Associação Cultural de Cachoera
A palavra batuque é usada na língua portuguesa para designar batidas de percussão, assim como um evento cultural em torno de um tambor. O termo apareceu com a presença do negro escravizado em Portugal, antes do descobrimento do Brasil. Batuques de negros é uma expressão que percorreu o Brasil colônia e as outras colônias portuguesas.
Existe um grupo de expressões de batuque com dança, rituais e música que são semelhantes do ponto de vista do uso dos instrumentos, dos tambores feitos de troncos de árvore escavados com couro em um dos lados, deitados no chão, na terra, e montados, “cavalgados” por um tocador. São manifestações recônditas, recolhidas, proibidas pelas autoridades paroquiais e policiais durante a colônia e condenadas pelas mesmas autoridades até os dias de hoje. Compreendem manifestações como o batuque de umbigada, do interior de São Paulo, o jongo do Sudeste, da antiga rota do ouro do Vale do Paraíba, também em São Paulo, e o tambor de crioula, do Maranhão.
No batuque de umbigada, aparecem dois tambores: o tambu, maior, comprido, e o quinjengue, menor, mais afinado, que vai encaixado no tambu. Acompanham-nos a matraca e o guaiá, espécie de chocalho. No jongo, também aparecem dois tambores, o tambu e o candongueiro. Já no tambor de crioula, são três tambores: tambu, chamado por lá de tambor grande, o meião e o crivador, acompanhados também pela matraca.
UMBIGADA
A umbigada é um movimento coreográfico das danças de batuque em que se encosta o umbigo, o ventre, um no outro, em dupla. “Alguns antropólogos dizem que, provavelmente, a umbigada surgiu como parte de um ritual de fertilidade, em tempos muito remotos, um ensinamento simbólico para quando os jovens chegassem à idade adulta, um ensinamento da própria prática sexual”, explica Alberto Ikeda, pesquisador e professor de Etnomusicologia da Unesp. Esse ritual teria surgido na África profunda, antes do cristianismo, como um rito de iniciação.
O batuque de umbigada de São Paulo tem uma especificidade. É o único que manteve até hoje a umbigada entre homem e mulher. “As outras umbigadas brasileiras não são entre homens e mulheres, a não ser no coco, mas no coco ela não se realiza, é uma menção de umbigada. No batuque paulista, a senhora te dá uma umbigada bem forte”, conta André Bueno, professor de Etnolinguística da USP e um dos pesquisadores responsáveis pela produção do livro Batuque de umbigada, recentemente lançado pela Associação Cultural Cachuera!, com patrocínio do Ministério da Cultura e da Petrobras e produzido em coautoria com as comunidades dos batuques de Tietê, Piracicaba e Capivari. O livro pode ser adquirido pelo site Cachuera, a R$ 50. O valor das vendas é doado para essas comunidades.
Umbigada é veículo para a troca de energia.
Foto: Anahi Santos/Associação Cultural de Cachuera
“Esse batuque era apoiado por patrões, ainda na escravidão, porque consideravam que ajudava a aumentar o plantel de escravos. As negras engravidavam com os namoros gerados na dança”, continua. Por simbolizar que a barriga da mulher é o aparelho de gerar um ser humano, era uma dança que, antigamente, estava presente também nos casamentos, noivados, quando as senhoras davam umbigada na noiva.
O sentido também é de convite ou troca energética, como no tambor de crioula do Maranhão, no qual a umbigada se dá entre duas mulheres, uma convidando a outra para entrar no centro da roda e mostrar sua destreza. “O umbigo seria o centro da essência da vida, da alimentação, por onde você troca as energias”, descreve Alberto Ikeda.
JONGO
O jongueiro chama o Tatu, à meia-noite, que traz cachaça na corcunda. Joga a bengala no chão, que vira cobra. Lança o chapéu para o alto, que vira águia, que come a cobra. As histórias do jongo são um tanto enigmáticas. Quando o jongueiro fala de papai e mamãe, na verdade refere-se ao tambu e ao candongueiro. “Li muitos folcloristas que citavam o jongo como uma tradição misteriosa do Vale do Paraíba, uma espécie de ritual não propriamente religioso, mas uma mitologia muito rica;
por exemplo a história da bananeira, que cresce no terreiro graças às palavras mágicas que os jongueiros proferem. Pela manhã, após a festa, já tem banana madura pra todo mundo comer”, conta o etnomusicólogo Paulo Dias, presidente da Associação Cultural Cachuera!.
O valor gregário do Tambor de Crioula é mantido nas festas associativas.
Foto: Sattva Orasi/Associação Cultural de Cachuera
Um diálogo cantado. Versos curtos com significados múltiplos, como uma espécie de haicai, chamados de pontos de jongo. Sempre há uma fogueira no meio do terreiro, pois o fogo representa e garante o elo com a ancestralidade do grupo. O batuque acompanha os cânticos. As danças acontecem no centro da roda. Todos os que vão participar colocam a mão no tambu, fazem o sinal da cruz e colocam a mão no chão.
No formato antigo, até os anos 1960, mulheres e crianças não podiam entrar na festa. Não havia dança. A celebração era como uma disputa, com uma categoria de ponto chamada goromenta. Um jogava o ponto no outro, tentando derrubar o seu prestígio como jongueiro. “Eu vou jogar um ponto bem enigmático e você vai ter de decifrá-lo, mostrando ser conhecedor do repertório oculto, metafórico e literário do jongo. Se você topar a parada de jongar comigo e não conseguir desatar o ponto, pode ser que te aconteça alguma coisa, porque esse ponto tem a força de te amarrar”, conta Paulo Dias. Reza a lenda que quando um caboclo era amarrado pelo ponto do outro ficava paralisado, sem ação.
Hoje em dia, o Jongo do Tamandaré, em Guaratinguetá, no interior paulista, por exemplo, é celebrado nas festas juninas de Santo Antônio, São João, São Pedro e em algumas outras datas especiais. É uma tradição que ainda tem muita vitalidade, reúne vários participantes.
Existem, atualmente, outros tipos de pontos de jongo. Goromenta está em desuso. As mulheres entraram na roda. Muitas vezes a mulher, na família negra dessa região, é a mantenedora da casa, cuida dos filhos e dos netos. Então, assume a guarda da tradição cultural. Jovens e crianças também entraram na brincadeira: “Chegou um jovem, na época tinha uns 30 e poucos anos, bem jovem para a idade média do jongueiro, cantando um ponto assim: ‘Deixa cantar o bem-te-vi! O bem-te-vi canta cedinho e a tarde toda quem canta é a juriti!’. Você achou que ele estava falando de passarinhos, mas não estava. ‘Deixe os jovens também cantarem na roda!’. O bem-te-vi é o pássaro jovem, do amanhecer, e a juriti é o pássaro do entardecer, que canta quando a noite está caindo. É a metáfora do velho e do novo”, explica André Bueno.
No batuque de umbigada, também se usa a palavra para dar sentidos duplos, mas é diferente do jongo, porque não há um vínculo tão estreito com a ancestralidade, apesar de vários versos no Batuque reverenciarem os ancestrais. A dança do batuque é uma brincadeira. Seus versos cantados são chamados de modas. “Basicamente, as modas falam sobre o amor de uma maneira desapegada, própria da classe social que brinca no batuque, desapegada como quem não tem herança para carregar nas costas”, detalha o professor.
PROIBIÇÃO
As danças de batuque de negros sempre foram condenadas, execradas pelas autoridades. Já os antigos viajantes europeus descreviam os batuques e a forma de dançar da umbigada, com o movimento das ancas, como lascívia. “O que é fundamental nessas expressões é o seu caráter gregário, das pessoas se juntarem periodicamente depois de um dia de trabalho com os companheiros. Essa energia para trocar a experiência do dia, falar dos problemas”, diz o pesquisador Alberto Ikeda.
As comunidades de batuque procuram reivindicar, através da resistência, o lugar social de praticar suas tradições. “Um povo que foi durante muito tempo escravizado procura manter sua brincadeira dançante como fator de coesão, em que trocam mensagens internas do confronto com o externo. Eles têm maneiras de produzir cantos que são compreensíveis em duas camadas. O branco visitante entende somente o sentido literal”, descreve André Bueno.
Como forma de driblar essa censura, muitas comunidades, a exemplo do tambor de crioula do Maranhão, passaram a cultuar os santos católicos em vez das antigas entidades africanas, com culto proibido no período da colônia. “Por proximidade, eles preferiram cultuar São Benedito, um santo negro do século 16. Embora tenha nascido no sul da Itália, era filho de escravos etíopes. A própria igreja, na evangelização, acabou sugerindo santos negros aos escravos”, conta Alberto.
O jongo talvez seja o batuque mais perseguido da história da cultura popular brasileira. “Na primeira vez em que estive numa roda de jongo, tive a sensação de que eles estavam falando de mim, num diálogo plasmado por trás da música, numa linguagem metafórica que não conseguia compreender o significado, mas que não eram simplesmente melodias ao vento; havia um encadeamento lógico e uma transitividade de temas naquele jogo”, narra Paulo Dias.
Tambor de Crioula. Foto: Sattva Orasi/Associação Cultural de Cachuera
O ritual antigo era baseado nessa poética de metáforas, uma linguagem que permitia, numa época de escravidão, que se veiculassem as novidades, o cotidiano, as problemáticas sociais, fazendo circular as mensagens desapercebidamente pelo feitor, o fazendeiro e a polícia. Articulavam-se, inclusive, fugas. Se citassem uma árvore, estavam se referindo ao fazendeiro. Se falassem de um marinheiro, estavam se referindo a um jongueiro. Existia todo um código críptico que se difundiu na comunidade cativa do Vale do Paraíba, estendendo-se para os outros estados do Sudeste.
Na escravidão rural, o indivíduo não tinha mobilidade, ficando preso na fazenda. Os únicos com mobilidade eram o carreiro e o tropeiro, também escravos, que circulavam entre as fazendas. “Curiosamente, uma grande parte da metáfora jongueira diz respeito ao carro de boi. Cada peça do carro de boi tem um sentido oculto. O jongo provocava temor, porque as autoridades tinham essa mesma impressão que tive na primeira vez: é uma forma de comunicação bastante articulada”, diz o etnomusicólogo.
Existe um ponto bem antigo que diz: “Vovó não quer casca de coco no terreiro, me faz lembrar dos tempos do cativeiro”. Casca de coco, na linguagem jongueira, é o sujeito de fora, que nunca apareceu no terreiro e só observa. Antigamente, era o feitor; hoje pode ser um policial, na longa relação histórica de sujeição do negro.
GUILHERME NOVELLI, jornalista e antropólogo, colabora para revistas culturais e científicas.