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Tristes partidas

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Outubro de 2015

Ilustração Janio Santos sobre reprodução

Lembro vagamente dos primos Edno e Raimundo, o mais velho nascido no mesmo dia em que nasci. Brincávamos de balançar numa rede, dando impulso com os pés, achando que alcançaríamos o telhado alto. Certa tristeza de separação nos tornava diferentes naquele dia. Crianças também sofrem pressentimentos. A casa da nossa avó movia-se fora dos eixos habituais, causando inquietude na família. Desde a madrugada começara a matança das galinhas. Depuradas na gordura, sem sangue nem vísceras, elas não arruinavam. Coziam nas panelas de barro até ficarem escuras, misturando-se em seguida a farinha de mandioca. Só depois da farofa bem fria guardavam em latas, acreditando que durariam os sete dias de viagem.

Raimundo, o primo menor, falou: nunca mais a gente se vê. Demorou anos até que eu os reencontrasse dessemelhantes da infância. O pai deles partira na frente. Foi o primeiro a abestalhar-se em São Paulo, a zanzar em frente à Sé nos domingos de folga, a altivez diminuída, os passos inseguros no meio de tanta grandeza. Em 1958, ano de seca, fome e epidemias, os pobres abandonaram o Ceará por São Paulo. Corriam atrás de futuro, trabalho e comida. A viagem podia durar uma semana, no desconforto de um caminhão pau-de-arara. Bem ou mal, São Paulo acolhia os retirantes nordestinos que conseguiam pagar uma passagem. Folhetos de cordel, distribuídos nas cidades e nos sítios, falavam de uma terra prometida, estimulando as migrações. Os homens largavam as famílias, prometendo mandar buscá-las assim que ganhassem o necessário ao transporte. Muitos se extraviaram nas mãos de grileiros mancomunados com donos de caminhões. Tornavam-se escravos em fazendas escondidas, onde morriam sem dar notícias, ou fugiam mais famintos do que chegaram. Coisa que ainda acontece nos dias de hoje, mesmo nas grandes metrópoles, sobretudo com migrantes de países fronteiriços.

Quando nosso tio Gustavo retornou do Sul, era madrugada. Nós ainda morávamos na fazenda dos Inhamuns. Ouvi os latidos dos cachorros, as batidas na porta de casa e o nome do meu pai chamado alto. Depois escutei minha mãe chorando, transtornada com a magreza do tio, seu semblante envelhecido. Tudo se passando junto de mim, em torno da rede em que eu fingia dormir para escutar as histórias que os adultos nunca me contavam. Ofereceram ao tio o que havia em casa: rapadura, queijo, coalhada fresca, enquanto a mãe acendia o fogo e preparava uma refeição quente. Antes, o tio não comia nenhum alimento à base de leite. O sofrimento rebaixara seu orgulho. O Sul não existe – ele falou enquanto mastigava –, é pura invenção de violeiro repentista. Eles enchem a cabeça da gente de promessas mentirosas. Viajar é o mesmo que correr atrás de fumaça. Disse que tinha chegado ao Mato Grosso, trabalhava numa fazenda. Os grileiros o tornaram escravo. Tomaram suas roupas e até o fumo do cigarro controlavam. Nunca via a cor do dinheiro, pois estava sempre devendo ao barracão. Teve malária e pensou não escapar com vida. Quando sentiu que ia morrer, fugiu por dentro da mata. Nem sabia para que lado ficava o nordeste. Desaprendera a olhar o céu e a se guiar pelas estrelas. No tempo em que viveu escravizado, só enxergava a copa das árvores.

Mas tio Davi, o pai dos meus primos, teve mais sorte. Arranjou emprego de marceneiro em São Paulo, profissão em que era mestre. Escreveu à mulher falando em abrir o próprio negócio. Não conhecia a filha pequena, nascida depois que ele fora embora. A carta de tia Edite, contando as agruras da viagem, só chegou três meses depois de sua partida. A folha de papel passou de mão em mão, muitos choraram quando a leram. Lembro que minha única preocupação era saber se as carnes tinham apodrecido, tamanho era o meu desejo pela farofa de galinha. A tia não mencionou essa passagem e jurei que perguntaria quando um dia a encontrasse. Todos se aliviaram ao saber que os retirantes começavam vida nova na terra estranha. Nosso tio Antônio andara sonhando com a tia Edite. Ela caminhava pela casa da avó, ele até escutara os ossos dos pés dela estalarem igual à lenha crepitando no fogão, o que foi interpretado como sinal de morte.

Nesses dias em que assistimos a uma onda de pessoas vindas do Oriente Médio e da África, tentando entrar na Europa Ocidental para fugir da guerra, perseguição e pobreza, sinto que em proporções distintas tudo isso é bem familiar aos nordestinos. Os políticos ainda buscam uma palavra que defina a situação desses homens, mulheres e crianças. Trata-se de migrantes, clandestinos, refugiados ou exilados? De fluxo ou crise migratória? Mais justo é chamá-los de refugiados. Enquanto não decidem o nome que os definam, fala-se em naufrágio da humanidade, aumentam os acampamentos em praças e estações de trem e diariamente mais gente se afoga nas águas do Mediterrâneo, na louca travessia pela vida. A Europa não pode esquecer que o enriquecimento dos seus países se deu às custas da exploração e pilhagem dos povos que hoje pedem socorro às suas portas, depois de sofrerem séculos de colonização.

Nossas migrações aconteciam quase sempre motivadas pelas secas sazonais, num fluxo do Nordeste para o Sudeste, Centro Oeste e Norte. Quando não havia transporte, como nas estiagens de 1877 e 1934, os bandos famintos se deslocavam a pé, dentro dos seus próprios territórios. As soluções encontradas pelos aglomerados de gente, como em Canudos e no Caldeirão, foram combatidas pelo Governo. Na estiagem dos anos 30, comerciantes, população e poder público descobriram uma maneira de livrar-se dos miseráveis: confiná-los em campos de concentração, onde eram tratados como bichos e morriam. Foi uma limpeza social, algo parecido com os campos nazistas.

Os tempos são outros, a comunicação se faz em tempo real, os migrantes estrangeiros possuem melhor nível de educação e consciência de seus direitos. Apenas o sofrimento é o mesmo: dor, fome, abandono. Ele se repete entre pessoas de línguas e culturas diferentes, porém iguais na condição humana. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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