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Na rua: O teatro fora da caixa

Encenadores que optaram pelas áreas abertas de atuação defendem o caráter empático e libertário do espaço público, em oposição às convenções da dramaturgia tradicional

TEXTO Guilherme Novelli

01 de Fevereiro de 2015

Espetáculo 'Cafuringa' é encenado na Praça do Carmo, no centro do Recife

Espetáculo 'Cafuringa' é encenado na Praça do Carmo, no centro do Recife

Foto Silvio Barreto/Divulgação

A rua absorve tudo. Ambiente rápido na resposta, crítico no olhar. Na rua, o que manda é o popular, porque o erudito afasta, joga contra o espaço e o tempo presente. Quem está à margem também tem lugar, tanto como artista quanto como espectador. Hamir Haddad, ator, diretor, referência como pensador do teatro de rua brasileiro, fundador do grupo carioca Tá Na Rua, em 1980, e que já trabalhou com os grandes grupos brasileiros, como o Teatro Oficina, costuma dizer que essa modalidade propõe uma mudança social no sentido da igualdade.

“Ninguém é melhor que ninguém. Se um bêbado ou um mendigo vier, vai entrar na minha peça. A ética que é própria da rua me impede de agir como uma figura iluminada, que é superior aos outros porque faz arte”, explica Natália Siufi, artista fundadora do Coletivo Parlendas, grupo da cidade de São Paulo atuante nos protestos que irromperam na capital paulista em junho de 2013.

O fenômeno brasileiro atual é complexo, formado por redes, como a Rede Brasileira de Teatro de Rua, o Movimento Escambo Livre de Rua e o Movimento de Teatro Popular de Pernambuco, que se articulam na defesa de causas sociais, como a reforma agrária, o direito à moradia, à saúde, à educação, num intercâmbio de ideias que perpassam o fazer teatral e um projeto social em prol da redução das desigualdades sociais brasileiras.

Sempre foi considerado como uma arte abaixo dos grupos fechados, dos que fazem teatro para poucos. Nos tempos atuais, ainda é marginalizado e sobrevive sem uma política pública. O crescimento do teatro de rua se acentuou quando se descobriu que esse tipo de comunicação no espaço público faz muito bem à saúde de quem o exerce e de quem o assiste. Também cresceu pela falta de equipamentos para as apresentações. “Descobriu-se, também, que é um ato político tirar o espetáculo teatral de um público seleto, detentor do capital, estabelecido academicamente, para trazer de volta ao povo esse espetáculo que, na verdade, sempre foi dele”, defende Júnio Santos, ator, diretor que atua em Natal (RN) e articulador do Movimento Escambo Livre de Rua.


O Grupo Teatral Parlendas tem a preocupação de recuperar a história oral em seus espetáculos. Foto: Divulgação

No final da década de 1970, poucos grupos tinham alguma expressão nacional: Alegria Alegria (RN), Imbuaça (SE), Tá na Rua (RJ), Ó nois aqui outra vez (RS), Galpão (MG). Agora, são centenas que cooperam uns com os outros e são influenciados pelos princípios de Amir Haddad. “Hoje, nós nos consideramos cenopoetas, ou seja, nos nossos espetáculos, a música não é maior do que a cena, que não é maior do que o figurino, o adereço, que não é maior do que a interpretação, que não é maior do que o brincante. Todos os elementos estão em papel de igualdade, numa cena poética, de força, a serviço de uma mesma causa”, argumenta Júnio.

A partir de trocas em que os grupos se ajudam com alojamento e alimentação, há um desejo de levar a arte a locais descentralizados, como quilombos, assentamentos, seringais, pelas cinco regiões do Brasil, com um viés cênico orientado pela cultura popular.

INFLUÊNCIAS
Teatro mais antigo da humanidade, o de rua nasce como rito, comunicação, paródia, brincadeira, em lugares públicos, nas feiras, praças. “Quem constrói uma arquitetura teatral delimita paredes para a encenação, preços de ingressos e até mesmo categorias de pensamento (drama, comédia, tragédia); é uma classe interessada, ideologicamente, no tipo de comunicação que ele produz”, continua Natália Suifi. Desde os gregos e os romanos, sempre houve o interesse do estado e o de classes em utilizar o potencial comunicativo do teatro para algum fim.

Esse teatro que existe desde os primórdios chega ao Brasil, nos dias de hoje, perpassado, principalmente, pela influência dos tipos cômicos da commedia dell’arte (Itália, séc. 19) e pelo teatro épico ou dialético de Bertolt Brecht (Alemanha, séc. 20), que advogava em favor de uma encenação que rompesse com a quarta parede criada pelo teatro burguês. “Os grupos que fazem parte das redes querem interlocução, diálogo, uma arte que comunique. Querem criticidade, uma diversão no sentido brechtiano da palavra: deleitar e instruir. Bem diferente do simples entretenimento”, explica a atriz.

Walter Benjamin, em seus textos sobre o teatro de Brecht, argumenta que, quando o rico e o pobre estão na plateia em posições iguais, isso é muito determinante. No teatro fechado, a plateia está escura e o artista ignora qualquer diferença de classe. A plateia é uma massa, simplesmente assiste ao pensamento do artista. Quando a iluminação clareia a plateia – e na rua a plateia é sempre vista –, abre-se um diálogo com a mesma. O rico e o pobre estão em posições iguais, mas eles se colocam, e isso faz aparecerem as diferenças de classe. “Benjamin fala disso: uma plateia que eu veja como uma grande audiência, uma assembleia que se diferencia. Aí, o ator passa a ser interlocutor, mediador, não mais alguém que quer falar para uma massa disforme.”


Assim como outros grupos, o Bando La Trupe traz influências do teatro popular e das artes circenses. Foto: Luiz Fialho/Divulgação

Como costuma dizer Amir Haddad, “para se fazer um bom teatro de rua, você tem de ir primeiro ao Nordeste ver como é que se brinca”. No Nordeste, os atores de rua sonham em um dia chegarem a ser brincantes, ou seja, em voltar às origens. Mergulhando nessas origens, conseguem se manifestar de forma a ter um diálogo aberto com a plateia. “Procuramos fazer espetáculos não apenas para assistir, mas para interagir. Os nossos mestres são os mestres populares. Eles nos dão elementos fantásticos para que possamos transformá-los dentro da linguagem do teatro de rua, mas sempre com uma certeza na cabeça: nós, na rua, não nos concentramos. A concentração não é própria do nosso teatro. Nele, nós nos manifestamos. A concentração separa, isola o homem, o ator nele mesmo. A manifestação envolve”, argumenta Júnio Santos.

A maioria dos que hoje atuam no espaço aberto tem como formação o teatro convencional, chamado “teatro de caixa”, “da quarta parede”, que isola o ator da plateia, atribuído à escola russa de Constantin Stanislavski. As teorias do mestre russo preconizam a concentração do ator. “O ator se concentra para que possa entrar no personagem e para que possa sentir a dor e chorar por ela. Nós começamos a perceber que o brincante popular faz a mesma coisa, da mesma forma, mas ele não se concentra; ele manifesta a sua arte, deixa a sua arte clara, porque na rua nós estamos nus, abertos, envoltos por um público ávido por estar ali no lugar da gente, ávido por aquela brincadeira”, diz o ator e diretor potiguar.

MEMÓRIA ENCENADA
Mestre Cafuringa ocupava o Pátio do Carmo, no Centro do Recife, com ervas, o boneco Joaozinho, outros bonecos e uma cobra. Esteve por lá durante 20 anos, até que um dia a igreja, em conjunto com a polícia militar, resolveu fazer uma faxina naquele pátio. Cafuringa foi um dos primeiros a serem varridos. Sendo expulso, entrou em processo de depressão, teve aneurisma cerebral e acabou morrendo. Havia sido proibido de apresentar-se no espaço público.

O espetáculo Cafuringa, montado em parceria pelo Grupo Cafuringa (Recife), Bando La Trupe (Natal) e Cervantes do Brasil (Fortaleza), é fruto de uma ideia coletiva surgida em rodas de conversa do Movimento Escambo, a partir de 2010, com o intuito de preservar a memória dos mestres da cultura popular nordestina.


Grupo Teatral Parlendas. Foto: Divulgação

“Quando começamos a nos apresentar no Pátio do Carmo, o público dizia: ‘Eu lembro dele aqui’. Quando viam os bonecos dele, diziam: ‘Ele voltou? Ele não morreu?’. Para muitos, ele desapareceu daquela praça, mas continuava vivo. É uma forma de preservarmos a memória histórica e cultural de uma pessoa, uma cultura, uma cidade, um povo”, diz Felippo Rodrigo, do Bando La Trupe, filho de Júnio Santos.

Dessas histórias se revela o preconceito que existia contra esses artistas populares, a forma como viviam, as mentiras que contavam, como paqueravam, e isso vira teatro. Quando começa a ser representado, o público reconhece a importância cultural desses personagens. “É a história sendo contada a partir dos que vencem, mas são considerados perdedores. Quem se acha vencedor é quem está no poder, mas vencedores somos nós, o povo. Por isso é tão importante essa pesquisa: para mostrarmos os dois lados, já que os livros contam apenas a história do ponto de vista do poder, das figuras ilustres”, defende Júnio Santos. Os protagonistas do teatro de rua funcionam como anti-heróis da história contada nos livros didáticos.

Uma simultaneidade: música, atores, o cachorro que passa, uma dramaturgia que é a própria cidade; e isso afeta linguagem e estética. No final da década de 1970, a maioria das peças encenadas na rua era adaptação de textos do teatro convencional. Hoje, existem em todos os lugares autores específicos do teatro de rua. Eles escrevem de forma mais livre: os textos não têm rubrica, nem determinação de cena. São atemporais. “Nós nos descobrimos enquanto dramaturgos a partir do momento em que nos libertamos da regra da escrita que nos limitava. A nossa dramaturgia não é apenas o texto. É o todo. Estar na rua numa roda significa que o lugar passa a fazer parte da minha dramaturgia”, diz Júnio Santos.

Na rua, há uma liberdade para mudar o curso do seu espetáculo, transformar a dramaturgia naquele momento. “Quando descubro um prédio em que posso fazer uma cena e depois voltar ao espaço cênico, quando saio de um local e depois volto para ele, começo a dizer que não tenho grades, não estou preso numa regra estabelecida pela dramaturgia. A dramaturgia se libertou e agora faz parte de uma grande manifestação”, afirma Júnio Santos. 

GUILHERME NOVELLI, jornalista.

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