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Insetos: Vai uma baratinha crocante aí?

Chefs e pesquisadores combatem a fama negativa desses animais e defendem que eles podem ser iguarias sustentáveis e saborosas

TEXTO Clarissa Macau

01 de Fevereiro de 2015

Larvas doces de abelha são ingredientes de ceviches

Larvas doces de abelha são ingredientes de ceviches

Foto Josh Evans

Num prato de macarrão com curry, o chef Mauricio Santi, especialista em comida tailandesa, coloca larva de besouro, tenébrio gigante, baratas, grilos, casulo e larva de mosca, ao lado dos noodles. Todos fritos e temperados com ervas thai e chilli seco. Os ingredientes dessa versão do chamado maelang ruan tod ainda assusta muita gente. Quem nunca fez cara de nojo, ao ver na TV alguém mordendo insetos, como quem sacrifica a vida, em troca de um prêmio qualquer? “Há 20 anos, ouvíamos sobre promoções em shoppings. O participante ganhava carro se comesse baratas vivas. Mas o estigma está mudando”, aponta o zootecnista Gilberto Schickler, um dos fundadores da Nutrinsecta, maior produtora de insetos do Brasil e a única do meio a possuir certificação de Fabricante de Ingredientes para Alimentação Animal. “Insetos comestíveis estão ganhando espaço na mídia, que ainda os retrata com certo sensacionalismo. A verdade é que práticas públicas de entomofagia estão se tornando comuns”, observa o biólogo especialista em entomologia, o baiano Eraldo Medeiros Costa Neto.

Para a maioria dos ocidentais, comer insetos é ato culturalmente alienígena, repugnante. É assim que ele é expresso na grande mídia e mesmo nas artes. A barata, por exemplo, é metáfora de inferioridade e angústia em clássicos literários como A paixão segundo G.H (1964), de Clarice Lispector. A passagem na qual a protagonista, num fluxo de consciência, decide ingerir a inimiga artrópode, inquieta os leitores. “Eu soube que o erro básico de viver era ter nojo de uma barata”, refletiu G.H.. No Oriente, esses insetos são consumidos sem cerimônia pela população, principalmente na Tailândia, onde os imigrantes da zona rural disseminaram o hábito nas capitais do Tigre Asiático.

O chef Mauricio Santi estuda a cozinha desse país há 14 anos, trabalhou tanto em restaurantes locais da alta gastronomia, como o Nahn, de Bancok, quanto em barracas de rua, preparando espetos de inseto. “Lá, eles comem grilos e gafanhotos como petiscos. A alimentação mudará nas próximas décadas. Não é só uma moda e, sim, necessidade. São sustentáveis, ricos em proteínas, vitaminas, sais minerais – e éticos na sua produção, num mundo que em pouco tempo terá mais gente do que alimento ‘convencional’ para oferecer”, aposta.


Os insetos também podem dar novo sabor a sanduíches e pratos menos pretensiosos.
Foto: Divulgação

Os seres mais abundantes da terra – 80% dos animais são insetos – podem ser ingeridos de diversas formas. “De algumas espécies, comem-se os ovos; de outras, as larvas, ou só os adultos. Mas nem todos são comestíveis. A lagarta de fogo, por exemplo, produz toxinas”, pondera o biólogo Eraldo. O sabor do inseto pode ser salgado, ácido, aromático ou gorduroso, e delicado. Às vezes, associado ao gosto de camarão ou peixe. Animais, como o grilo, absorvem bem o sabor do tempero; os tenébrios têm um aroma terroso; as larvas possuem sabor leve de cereais; e a barata possui um gosto forte, de frescor incomum.

Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), quase um terço da população mundial consome insetos por prazer. Mexicanos usam percevejos como condimentos e comem escamoles ou ovas de formigas vermelhas, uma especiaria local de luxo. Moscas trituradas em Uganda, na África, lembram o gosto de caviar. No interior do Brasil, formigas tanajuras são deglutidas cruas ou fritadas na farofa.

CONDICIONAMENTOS
“Será muito difícil convencer uma sociedade inteira de que os insetos são adequados ao consumo”, pensa Eraldo. O biólogo lembra que, nos países latino-americanos, mesmo com a presença da entomofagia, parte da população despreza o consumo e o associa à pobreza. “Há casos de pessoas que têm o hábito de consumi-los e que o abandonam por vergonha, para não serem categorizadas como índios ou pobres. Essa é a ideia dominante imposta sobre a cultura”, acredita. Para ele, a inserção dos insetos no mundo da gastronomia de luxo é a possibilidade de revalorizar o costume.


Especialista em comida tailandesa, Mauricio Santi tem usado insetos comuns nessa culinária, em pratos que inventa. Foto: Divulgação

“Todo mundo já comeu inseto, seja através de um cuscuz ou de uma farinha na qual fragmentos vêm inevitavelmente processados de fábrica. O corante natural do iogurte é feito de insetos, as cochonilhas. Mas podemos comê-los bem-feitos. Ninguém comerá barata doméstica, pelo meio que ela vive. É preciso saber a procedência, higiene e se são bichos bem-alimentados. Para a primeira degustação, é legal fritar o inseto, pois fica desidratado, crocante. A constituição do animal é a mesma do camarão, a quitina. Podemos temperá-lo, como fazemos com qualquer proteína, colocando limão, alho, ervas, ou macerá-lo em massas de bolos e pães”, diz Thiago Alves, presidente do grupo de entomologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Ele faz parte da equipe do 4º Simpósio de Entomologia Aplicada, evento recifense que, em 2014, discutiu, com a presença de especialistas do mundo inteiro, sobre Implicações econômicos da entomologia: do consumo ao controle de insetos.

Na palestra de abertura do simpósio, ocorrido em novembro, histórias, receitas e o potencial econômico desse nicho culinário foram abordados pelo chef especializado em insetos, o gaúcho Rossano Linassi. “O maior entrave é a falta de legislação que permita o comércio formal. Isso dificulta a difusão, o desenvolvimento de tecnologias para a produção em massa e os custos do produto. Criar massivamente é diferente de criar para consumo próprio, o que é bem mais fácil”, comenta Linassi. Por exemplo, um casal de artrópodes é capaz de dar cria a 15 gerações, que podem ser guardadas em caixas e alimentadas com frutas e vegetais.

O consumo humano de insetos é esporádico, por isso, o preço de um quilo de vermes sai, em média, por R$ 150, sete vezes mais do que a mesma quantidade de carne bovina. “Eles se comportam como produto artesanal e se inserem no contexto das produções de queijos frescos, mel e derivados que não são registrados pela legislação, mas que não proíbe o comércio. Para atender esse mercado em amplo desenvolvimento, entretanto, são necessários parceiros que invistam em tecnologia, para redução de custos”, lembra Gilberto Schickler.


O chef Chris Tonassen criou panqueca utilizando gafanhotos. Foto: Divulgação

DEFENSORES
Esses exóticos alimentos são objeto de pesquisa há mais tempo do que se imagina. Em 1885, o inglês Vincent M. Holt escreveu o manifesto Why not eat insects?. Segundo Holt, durante o Império Romano, os epicuristas consideravam delicioso comer larvas de escaravelho com farinha e vinho. Ele resgata da época: “Um dia, os porcos foram tão rejeitados como os insetos são hoje. Porco era o animal sujo das escrituras bíblicas. (...) É preciso um grande esforço para superar o preconceito impregnado há eras”. No Brasil, já em 1587, o português Gabriel Soares redigiu sobre a formiga içá, em seu Tratado descritível do Brasil: “A estas formigas comem os índios torradas sobre o fogo; e alguns homens brancos que andam entre eles (...) o gabam de saboroso”. O mundo avança e as crenças mudam, é o que acredita o chef Rossano Linassi: “A maior resistência se dá a insetos tidos como transmissores de doenças. É mais psicológico que propriamente pelo sabor ou aroma”.

O dono do restaurante D.O.M, Alex Atala, nas mesas-aulas que costuma apresentar, divulga a importância das formigas saúvas. Na Amazônia, um prato regional de tucupi preto com forte gosto de ervas chamou a sua atenção. “As ervas do tucupi eram a saúva. Tinha gosto de capim-santo, gengibre ou cardomomo, sem nenhum deles estar presente”, disse, em palestra de 2011 para o primeiro Simpósio MAD, promovido pelo restaurante Noma, na Dinamarca. Foi Atala quem apresentou o ingrediente para René Redzepi, o influente chef do Noma. O europeu incrementou o cardápio do estabelecimento com formigas e gafanhotos, além de organizar um grupo de estudos sobre o tema no seu instituto de pesquisa, o Nordic Food Lab (NFL).

UMA DELÍCIA
“Como tornar um inseto delicioso? Isso depende para quem estamos cozinhando e das propriedades do alimento”, afirma o responsável pelo projeto Finding the Deliciousness of Insects do NFL, Josh Evans. No laboratório, jovens cozinheiros testam uma cozinha sustentável e criativa. Larvas doces de abelha são ingredientes de ceviches, e gafanhotos compõem panquecas refinadas. “O sabor também depende da espécie, forma de crescimento e alimentação do animal. Um grilo alimentado com todo tipo ervas, plantas de qualidade, num jardim florido, será mais saboroso que um grilo comendo ração de peixe e cenouras velhas”, diz.


Quatro estudantes londrinos criaram o projeto Entobox, no qual insetos são introduzidos, de maneira abstrata, nos pratos. Foto: Divulgação

Não muito tempo antes da febre de temakerias e rodízios de sushi no Ocidente, a culinária japonesa era vista com desconfiança. “Peixe cru?”, era o que a maioria dos ocidentais se perguntava nos anos 1990. Aquilo era exótico e bizarro, mesmo após décadas da chegada dos japoneses em várias partes do mundo. Levou tempo para que a “moda” se tornasse cotidiana. Em Londres, inspirados nesse patinho feio gastronômico, quatro estudantes de design, culinária e engenharia desenvolveram o projeto Ento, no qual os insetos são introduzidos nos pratos de maneira abstrata. Os rolls e canapés misturando ervas frescas e vegetais lembram a comida nipônica. Os produtos são oferecidos em feiras gastrô e restaurantes no formato pop-up. Aran Dasan, um dos sócios do Ento, sugere: “Insetos estão numa posição única, na qual não temos preconcepção da forma de comê-los. É desafiador tentar construir algo que faça sentido às nossas mentes ocidentais”.

Como qualquer alimento, insetos são ingredientes harmonizáveis. O chef Linassi observou que a acidez de um canapé de tanajuras combina com espumante brut, demi-sec e cerveja pilsen encorpada. Grilos cobertos com chocolate harmonizam melhor com cervejas escuras de amargor acentuado, como a Stout. Omelete de larvas combina com um vinho chardonnay reservado ou com cervejas suaves como a kolsh. “Tanajuras imergidas por alguns meses dão um sabor especial a cachaças ou outros destilados”, completa o chef. O NFL testa a fusão de artrópodes e bebidas. “Elaboramos um gim destilado com formigas para obter sabor cítrico e bem picante”, conta Evans.

Especialistas acreditam que, em 2020, será normal degustar insetos. Estamos prontos para nos livrarmos de preconceitos? “O que era preterido no passado pode ser o alimento do futuro. Tudo é uma questão de quando, onde e a forma como se interpreta o que foi escrito ao longo dos séculos”, diz Linassi. Aran Dasan prevê: “Um dia, comer insetos será um programa atraente e divertido de se fazer com os amigos”. 

CLARISSA MACAU, jornalista.

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