Arquivo

Campos do Jordão: Música clássica sob os pinheiros

Pelo 45º ano consecutivo, cidade da Serra da Mantiqueira abriga festival que a coloca no mapa internacional dos eventos de concerto

TEXTO Josias Teófilo

01 de Novembro de 2014

Festival coloca alunos em contato com músicos experientes

Festival coloca alunos em contato com músicos experientes

Foto Rodrigo Rosenthal/Divulgação

Era o mês de julho e Campos do Jordão, na época mais fria do ano, recebia pelo 45o ano consecutivo (quase um terço do tempo de existência da cidade, que tem 140 anos) o Festival de Inverno que coloca a cidade da Serra da Mantiqueira no mapa internacional da música de concerto. Pelas ruas da cidade de quase 50 mil habitantes, circulam músicos de diversas nacionalidades portando seus instrumentos, falando diferentes línguas – predominantemente o inglês – e frequentando as master classes, recitais e concertos. Estes se dividem entre o Espaço Cultural Dr. Além, a Igreja Matriz de Santa Teresinha e a Praça de Capivari – no centro da cidade –, mas também a Capela do Palácio do Governador, o Castelo de Campos e o Auditório Cláudio Santoro, principal palco do evento, com lotação de mais de mil lugares.

Os números do festival impressionam: por seus palcos passaram mais de três mil artistas em cerca de 68 concertos, incluindo obras para coral, orquestras, bandas, grupos de câmara e recitais solo. O público que chega à cidade repleta de pinheiros, vindo predominantemente da capital paulista, torna o trânsito caótico em alguns horários e lota os hotéis e pousadas. Esse aspecto turístico do festival, entretanto, torna-se menos relevante, se comparado ao caráter educativo, de altíssimo nível, que coloca jovens instrumentistas e compositores em contato com músicos profissionais do primeiro escalão mundial, promovendo uma atmosfera de excelência que transcende barreiras nacionais.

HISTÓRIA
Para entender o festival em seu tamanho e importância atual, é preciso tratar de uma personalidade-chave da vida musical brasileira da segunda metade do século 20: o maestro Eleazar de Carvalho, que concebeu o evento anual nos seus moldes gerais. Cearense de Iguatu, estudou música na Marinha, onde tocou tuba em bandas militares. “Observei que a comida servida às crianças que tocavam na banda era melhor. Apresentei-me, embora não tocasse qualquer instrumento. Sou músico por gulodice”, assim explicava sua motivação inicial pela música.


Neste ano, a harpista argentina Liz Malén Cardoso veio pela segunda vez ao festival.
Foto: Rodrigo Rosenthal/Divulgação

Estudou regência com o importante compositor brasileiro Francisco Mignone, na Escola de Música do Rio de Janeiro. Inspirados pela passagem do maestro italiano Arturo Toscanini com a Orquestra da NBC, Eleazar e um grupo de músicos criaram a Orquestra Sinfônica Brasileira, que veio a ser regida pelo maestro húngaro Eugen Szenkar, tendo Eleazar como assistente. Foi aos Estados Unidos com o objetivo de reger algumas das três principais orquestras do país (Boston, Filadélfia e Nova York) e, apesar do fracasso inicial na Orquestra da Filadélfia, dirigiu as principais orquestras americanas e europeias da época, entre elas as filarmônicas de Berlim, Viena e Nova York, as sinfônicas de Boston, Londres e Paris. Começou como assistente do maestro russo Serge Koussevitzky, que tinha ninguém menos que Leonard Bernstein como assistente na Sinfônica de Boston.

Mas a carreira de Eleazar não se resumiu à atuação frente às orquestras, foi também importantíssimo professor de regência. Entre os seus alunos, estão alguns dos principais nomes da regência mundial do final do século 20: Seiji Ozawa, Zubin Mehta, Charles Dutoit, Claudio Abbado (lendário maestro da Filarmônica de Berlim, falecido em janeiro deste ano).

Da sua experiência dirigindo o Festival de Tanglewood, evento de verão da Sinfônica de Boston, ele tirou o molde para o Festival de Inverno de Campos do Jordão, já existente, mas com ele tomou o aspecto que tem hoje, voltado para o ensino e a prática orquestral. Num depoimento à TV Cultura, à época, ele disse: “(A ideia é) fazer 250 jovens conviverem ali durante um mês, ouvindo os profissionais da música, vivendo naquele ambiente. Me parece que, após esse festival, depois de se assistir às grandes obras interpretadas pelos grandes músicos, de um curso intensivo com os grandes nomes que fizeram história, os nossos jovens guardarão um pouco daquilo que eles levaram anos para aprender”.

Seu lema era: “Mais escolas para mais orquestras”. Como efeito, por Campos do Jordão passariam várias gerações de músicos de orquestra, muitos deles hoje destacados internacionalmente e/ou integrantes dos vários grupos profissionais que o estado de São Paulo possui. A mais importante delas é a Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, recriada por Eleazar de Carvalho com a pretensão de criar uma grande orquestra internacional no Brasil. Seu objetivo, porém, nunca foi verdadeiramente realizado durante a sua vida, nem mesmo o de conseguir uma casa para a Osesp, que ensaiava e se apresentava em diversos espaços distintos.


Foram realizadas aulas voltadas para composição, regência e instrumentos.
Foto: Rodrigo Rosenthal/Divulgação

O que se diz é que, no velório de Eleazar de Carvalho, realizado no Theatro Municipal de São Paulo, foi grande a comoção por ter o maestro morrido sem realizar o sonho de uma casa para a sua orquestra. Foi nesse contexto que o então governador Mário Covas investiu na construção da Sala São Paulo, casa da Osesp, e na reformulação da orquestra realizada pelo maestro John Neschling – hoje à frente do Theatro Municipal de São Paulo. Atualmente, a Fundação Osesp administra também o Festival de Inverno de Campos do Jordão.

ORQUESTRA DOS BOLSISTAS
A abertura da 45a edição do festival teve a Nona Sinfonia de Beethoven tocada pela Osesp com os seus coros, o barítono Paulo Szot e solistas convidados. A regência ficou a cargo da maestrina americana Marin Alsop, que se divide entre os cargos de regente titular da Osesp e diretora musical da Orquestra Sinfônica de Baltimore, e que fez a consultoria artística do festival.

Apesar dos vários grupos importantes que passaram pelo festival (como a Orquestra Sinfônica Brasileira e a Filarmônica de Minas Gerais), que tem aplicado com êxito o modelo de gestão da Osesp e vem num crescendo de qualidade musical, e dos grandes solistas e grupos de câmara que se apresentaram, as atenções estavam voltadas para a Orquestra do Festival, formada por bolsistas. É nela que tocam os músicos selecionados a partir de um edital divulgado no final do ano anterior e no qual consta o repertório da seleção para o evento.


No Castelo de Campos se concentram as atividades pedagógicas do evento.
Foto: Rodrigo Rosenthal/Divulgação

Segundo o coordenador artístico-pedagógico do festival, Fábio Zanon, este ano, foram mais de mil inscrições de músicos de orquestra. “A parte educativa do festival está fortemente associada à ideia de prática orquestral. É um encontro que foi modelado para criar uma nova geração de músicos orquestrais do país. Fico muito contente em ver que, de um ano para o outro, existe uma evolução da própria atitude dos bolsistas”, disse ele.

É no Castelo de Campos que se concentram as atividades pedagógicas. Nesta última edição, lá foram feitas as aulas dos 145 bolsistas distribuídos em classes de 16 instrumentos, composição e regência. Na classe de regência, os professores foram Marin Alsop, que regeu o primeiro concerto da Orquestra do Festival, e Giancarlo Guerrero, regente da Sinfônica de Nashville. “Ao mesmo tempo em que Marin Alsop é mais técnica, Guerrero é um cara enérgico, divertido, sabe despertar a imaginação das pessoas”, observa Fábio Zanon.

Os bolsistas de regência subiram ao pódio para reger a Orquestra Sinfônica de São José dos Campos. Já os de composição tiveram aula com a compositora convidada do festival, a inglesa Anna Clyne. Obras dela e dos alunos foram apresentadas ao longo do festival.

Já no primeiro concerto da Orquestra do Festival foi apresentada Masquerade, obra composta em 2013 por Anna Clyne. O repertório do concerto de fato impressiona pela dificuldade para uma orquestra jovem: além da peça de Clyne, foi apresentada a Rapsódia para um tema de Paganini, de Sergei Rachmaninoff, tendo Boris Giltburg ao piano solista, e, principalmente, a Sinfonia no 5 de Dmitri Shostakovich, obra de peso que ficou conhecida sobretudo pela interpretação de Leonard Bernstein, antigo professor de Marin Alsop, que regeu o concerto. “Tocar a Quinta Sinfonia de Shostakovich foi um grande desafio, pois não é uma obra normalmente tocada por uma orquestra de jovens”, afirma ainda Fábio Zanon.

Mas são realmente os desafios que tornam o festival interessante. Thierry de Lucas Neves, 18 anos, natural de Goiânia, é spalla da Orquestra do Festival e veio pela terceira vez a Campos do Jordão como bolsista. Ele conta como o festival mudou a sua vida: “Tive aulas com o violinista Pinchas Zukerman, um grande gênio do instrumento, e ele me mandou estudar com Daniel Guedes, no Rio de Janeiro. Hoje, eu moro no Rio. Este ano, ganhei bolsa para participar de uma semana de música de câmara da Julliard School em Nova York”. Foi indicado ao posto de spalla pelos professores, que observaram os alunos que se destacaram durante as aulas.

A argentina Liz Malén Cardoso, 28 anos, toca harpa há 17 anos e veio pela segunda vez ao festival. “Os professores são muito bons, e ter a possibilidade de tocar em uma orquestra em que todos os músicos toquem bem é realmente incrível”, disse ela. Relato semelhante fez a clarinetista irlandesa Leonie Bluett, 24 anos: “É a minha primeira vez no Brasil e eu não sabia o que esperar. É lindo tocar com uma regente famosa como Marin Alsop. Fiz muitos contatos importantes no festival”.

Todos eles tocavam no concerto de encerramento da parte pedagógica do festival, realizado no Auditório Claudio Santoro. O repertório: Sinfonia no 1 de Beethoven, Sinfonia tropical, de Mignone, e Os pinheiros de Roma, de Ottorino Respighi. No ensaio geral, o enérgico Giancarlo Guerrero alternava gestos entusiasmados e reprimendas aos músicos, cobrava atenção e compromisso.

No concerto do dia 26 de julho deste ano, a orquestra mostrou uma bela sonoridade, mesmo nos momentos mais difíceis. Poucas orquestras no Brasil têm desempenho desse nível, mesmo as profissionais. A apoteose veio com Os pinheiros de Roma, poema sinfônico que descreve as árvores características da região romana. No último movimento da peça, os metais da orquestra, espalhados pelo auditório, provocaram uma funda impressão na plateia, que ovacionou a apresentação por longos minutos. Nos bastidores, falava-se que essa foi a melhor orquestra de bolsistas da história do festival. O lema do mestre Eleazar de Carvalho, “mais escolas para mais orquestras”, continua dando frutos exatamente nos moldes que ele concebeu. 

Leia também:
"O compositor está nas mãos dos intérpretes"

veja também

Iberê Camargo: Um gigante e sua solidão

'Boa sorte': Um conto do primeiro amor

Um olhar sobre a nossa belle époque gastronômica