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“O compositor está nas mãos dos intérpretes”

O compositor carioca Ronaldo Miranda fala sobre sua relação com a Osesp e suas obras que vêm sendo interpretadas por importantes nomes da música erudita

TEXTO Josias Teófilo

01 de Novembro de 2014

Ronaldo Miranda

Ronaldo Miranda

Foto Rodrigo Rosenthal

[conteúdo vinculado à reportagem de "Sonoras" | ed. 167 | nov 2014]

No dia 17 de julho deste ano, estreava na Sala São Paulo,
regida pelo aclamado maestro brasileiro Marcelo Lehninger, a obra sinfônica do compositor carioca Ronaldo Miranda, as Variações temporais, uma encomenda que lhe foi feita pela Osesp, com o objetivo de servir de preâmbulo à Sinfonia pastoral de Beethoven, tocada na segunda parte do programa. A peça de Lehninger dialoga com a música de câmara do compositor alemão, especialmente as sonatas Aurora, Primavera e Tempestade. Tocada pela Osesp na Sala São Paulo e no Auditório Claudio Santoro, em Campos do Jordão, Variações temporais é a culminância da obra do compositor de 66 anos, que neste ano teve sua terceira ópera encenada, o Menino e a liberdade, no Theatro São Pedro, na capital paulista. É antiga a relação de Ronaldo Miranda com a Osesp e remonta à época do lendário maestro Eleazar de Carvalho. Na 45ª edição do Festival de Campos do Jordão, foi tocada pela Orquestra Sinfônica de Santo André outra relevante composição de Ronaldo Miranda, a Sinfonia 2000, realizada por encomenda do Ministério da Cultura em comemoração aos 500 anos do Brasil.

CONTINENTE Como você, que já teve peças tocadas e encomendadas pelas Osesp em diversas fases de sua existência, vê a atual fase da orquestra?
RONALDO MIRANDA Minha primeira obra encomendada pela Osesp estreou em 1982, no Teatro Cultura Artística. Por coincidência, a peça foi feita para abrir um programa em forma de variações, tal como a obra que estreei este ano com a nova Osesp. Chamava-se Variações sinfônicas, título que tomei emprestado a César Franck: foi a primeira peça que escrevi para grande orquestra. Eleazar de Carvalho programou-a ao lado da Rapsódia sobre um tema de Paganini, de Rachmaninoff (obra que também usa a forma “tema com variações”), e a Sagração da primavera, de Stravinsky, pois se comemorava o centenário de nascimento do autor. Com essa performance, ganhei meu primeiro Prêmio APCA: Melhor obra orquestral de 1982. Eu tinha 32 anos e era um carioca praticamente desconhecido, como compositor, em São Paulo. Só identificavam em mim o crítico de música do Jornal do Brasil. Depois disso, veio o Concerto para piano e orquestra (1983), Eleazar regendo e eu atuando como solista. A obra logo voltou às estantes da Osesp, no Festival Música Nova, com John Bowdler na regência e Gilberto Tinetti no piano solista. Na nova Osesp, estreei com Horizontes (peça programática que ganhou, em 1992, um concurso de composição da UFRJ, celebrando o bicentenário do Descobrimento da América). Ela foi tocada pela Osesp em 1999, ano de inauguração da Sala São Paulo, com Roberto Minczuk na regência. Ao final de 2006, John Neschling regeu, com Eduardo Monteiro solando, meu Concertino para piano e orquestra de cordas, na série oficial da orquestra: foi um grande sucesso. Na ocasião, ele prometeu me encomendar um Concerto para violino, cujo solista seria Claudio Cruz. Com o afastamento de Neschling, esse projeto foi retomado em 2009, por Marcelo Lopes, diretor executivo da orquestra, que formalizou o pedido para abril de 2010. E, assim, estreei a nova encomenda nessa data: Claudio Cruz foi o solista e Minczuk, mais uma vez, foi o regente. Em 2013, recebi de Arthur Nestrovski, atual diretor artístico da Osesp, o convite para compor uma obra para a orquestra, a ser estreada em julho deste ano, sob a regência de Marcelo Lehninger. Assim nasceram as Variações temporais – Beethoven revisitado. Em sua primeira fase, no Teatro Cultura Artística, a Osesp produziu belos momentos de música, sob o comando do maestro Eleazar. Mas foi decaindo, à medida que mudava de sede. Passou para o Cine Copan e acabou no Memorial da América Latina, cujo teatro tem péssima acústica para a música não amplificada. Eleazar morreu lutando para manter sua orquestra, sem força política para mudar. Com Neschling e Marcos Mendonça, no governo Covas, a Osesp ressurgiu com força total, primeiro no Theatro São Pedro e, logo em seguida, na Sala São Paulo, onde se estabeleceu em 1999. Hoje é a melhor orquestra do país e da América Latina, com um nível de qualidade que a coloca ao lado das grandes orquestras internacionais. Criou um público entusiasta e fiel, e vem mantendo, na nova gestão, um nível de qualidade altíssimo.

CONTINENTE Foi difícil a tarefa de dialogar com Beethoven nas Variações temporais?
RONALDO MIRANDA Sim, foi muito difícil. A proposta partiu de Arthur Nestrovski: ao realizar a encomenda, um ano antes da estreia, ele estipulou as características da obra comissionada, que deveria ser escrita para abrir o programa, com cerca de 10 minutos de duração e funcionando como uma espécie de prólogo para a Sinfonia pastoral, de Beethoven, que seria ouvida na segunda parte da apresentação. Primeiramente, a ideia era tecer as variações sobre temas da própria Pastoral, mas ampliamos o conceito para obras de Beethoven ligadas à natureza.

CONTINENTE Como foi realizada a obra sinfônica?
RONALDO MIRANDA Utilizei pequenos fragmentos de três motivos beethovenianos: o Tema B do primeiro movimento da Sonata aurora; o Tema A do terceiro movimento da Sonata tempestade (ambos para piano solo); e o tema principal do primeiro movimento da Sonata primavera (para violino e piano). Nas minhas Variações temporais, esses motivos já aparecem bem modificados no tema inicial da obra, em que componho à maneira de Beethoven. A partir da primeira variação, contudo, é a minha linguagem que entra em cena. Os três temas beethovenianos só voltam a aparecer – com espaços bem longos entre cada um – no decorrer da peça. São citações que funcionam como links ou repousos entre as variações. Conseguir coerência, equilíbrio e unidade nessa mistura de linguagens foi algo árduo de obter, tomando-me cerca de seis meses de trabalho contínuo.


A Sinfonia 2000, de Ronaldo Miranda, foi interpretada pela Orquestra Sinfônica de Santo André. Foto: Rodrigo Rosenthal/Divulgação

CONTINENTE Como é a experiência de ver a sua obra materializada, digamos, pela execução de uma orquestra como a Osesp?
RONALDO MIRANDA É uma experiência muito gratificante. O compositor está nas mãos dos intérpretes e do público. Eu diria que o intérprete é o principal elemento para que a obra composta se materialize e ganhe vida própria. E quando esse intérprete é uma orquestra da qualidade da Osesp, então a experiência se torna altamente estimulante. Em relação à Osesp, tenho tido sorte também com os regentes, do velho Eleazar ao jovem Marcelo Lehninger, passando por Roberto Tibiriçá, sempre competentíssimo, na antiga fase da orquestra.

CONTINENTE A existência, numa mesmo estado, de instituições musicais do porte da Osesp e do Theatro Municipal, assim como o Festival de Inverno de Campos do Jordão, indica a maturidade da vida cultural de São Paulo?
RONALDO MIRANDA Sim. A vida cultural de São Paulo, especificamente falando da atividade musical, que é o meu campo de atuação, cresceu muito nos últimos 20 anos. O Rio de Janeiro tinha a primazia da atividade musical no Brasil, pois – até 1960 – foi a capital da República. Até a década de 1980, o Rio ainda se beneficiou das consequências naturais desse “status”. Mas, paulatinamente, a partir da década de 1990, São Paulo foi tomando a dianteira. Fui crítico de música do Jornal do Brasil, no Rio, em dois períodos: de 1974 a 1982, e de 1993 a 1994. A diferença em relação aos concertos, entre os dois períodos, foi considerável, com os níveis de quantidade e qualidade decaindo vertiginosamente. Fui também diretor da Sala Cecília Meireles, no Rio, durante nove anos. Entre 1995 e 1998, consegui fazer um bom trabalho. Entre 1998 e 2000, fui tentando manter a duras penas a qualidade da programação, mas, a partir da década de 2000, não tinha mais como estabelecer uma temporada de qualidade. Pedi exoneração do cargo em março de 2004 e, em setembro do mesmo ano, transferi-me para São Paulo, onde vivo há 10 anos e sou professor de Composição no Departamento de Música da ECA-USP. Em São Paulo, estreei minhas três óperas: Dom Casmurro (1992), A tempestade (2006) e O menino e a liberdade (2013), e tenho obtido, ao longo da minha carreira, muitas outras encomendas. É verdade que o Rio também me prestigia muito, em relação às encomendas sinfônicas, à Bienal da Funarte (em que começou minha carreira de compositor, em 1977) e à execução e gravação de minhas obras. Mas jamais consegui levar uma ópera de minha autoria à minha cidade natal. Comparando as duas cidades, no momento atual, São Paulo consegue, com ampla vantagem, a primazia da atividade musical.

CONTINENTE Como você vê a importância da figura de Eleazar de Carvalho para a existência da Osesp e do Festival de Inverno de Campos do Jordão?
RONALDO MIRANDA Eleazar de Carvalho foi um pioneiro em relação a muitas realizações musicais no Brasil. Enquanto diretor da Orquestra Sinfônica Brasileira, seus Concertos para a juventude marcaram época no Rio de Janeiro. Enquanto regente brasileiro, foi o primeiro a ter projeção internacional, dirigindo a Orquestra de Saint-Louis, regendo nas principais capitais europeias, ensinando regência em Yale e, antes, no Festival de Tanglewood, em que se orgulhava de ter tido como alunos Zubin Mehta e Seiji Ozawa. Ao ser afastado da OSB, Eleazar veio para São Paulo e fundou a Osesp, fazendo história novamente. O Festival de Inverno de Campos do Jordão – inspirado em Tanglewood – foi outra realização sua, maravilhosa, pois nunca outro curso de férias brasileiro, no âmbito da música, atingiu tal magnitude. Infelizmente, Eleazar morreu com total desprestígio político, reunindo todas as suas forças para manter viva a Osesp, que se apresentava toscamente no Memorial da América Latina, e chegava a ensaiar muitas vezes no auditório do colégio Caetano de Campos, na Aclimação, sem qualquer condição acústica para uma orquestra do seu porte. Para a música brasileira, Eleazar não mediu esforços e foi um grande incentivador. Posso me considerar um privilegiado, por ter recebido dele um impulso decisivo: acreditou em mim, como jovem compositor, dando-me raras oportunidades e colocando nas minhas mãos meu primeiro Prêmio APCA, em 1982. Muitos outros compositores foram prestigiados por Eleazar, de Claudio Santoro a Edino Krieger, passando por Almeida Prado, de quem ele gostava especialmente e de quem estreou sua inesquecível Aurora. Frequentemente, lembro-me de Eleazar regendo Santos football music, de Gilberto Mendes, com a bola na mão, fazendo com total circunspecção (e um surpreendente talento de ator) o papel de maestro-juiz de futebol. Aos poucos, o Brasil vai retomando a consciência da sua real importância. 

JOSIAS, TEÓFILO, mestre em Filosofia pela UnB e autor do livro O cinema sonhado.

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