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Em nome daquilo que é inefável

A celebração secular em homenagem ao Divino Espírito Santo, trazida ao Brasil pelos portugueses durante a colonização, arraigou-se na cultura e no coração dos devotos maranhenses

TEXTO AMY LOREN
FOTOS MÁRCIO RM

01 de Maio de 2013

Marlene Silva (esq.) se une a outras senhoras para tocar caixas e entoar cânticos

Marlene Silva (esq.) se une a outras senhoras para tocar caixas e entoar cânticos

Foto Márcio RM

Devoção! Nenhuma palavra poderia descrever melhor a Festa do Divino Espírito Santo, ou apenas Festa do Divino, como é popularmente chamada. A tradição, que sobrevive há seculos, é dedicada à terceira pessoa da Santíssima Trindade. Festejada com banquetes coletivos, conta com um ritual repleto de detalhes, no qual devotos e pagantes de promessas acompanham a procissão ao longo de 13 dias, geralmente no mês de maio. A comemoração tem origem portuguesa e foi difundida na América pela colonização. Destaca-se, hoje, como um dos mais importantes festejos da cultura popular do Maranhão, e um dos mais tradicionais do Brasil, por conservar ainda características do período colonial.

As caixeiras estão entre os elementos mais importantes da festa e toda a celebração gira em torno de um grupo de crianças que, durante o período dos festejos, são vestidas com trajes nobres, comportando-se como membros da realeza. O ritual conta com uma estrutura bastante complexa, com várias etapas, podendo apresentar variantes significativas em cada localidade. No Maranhão, essa festa está diretamente ligada às religiões afro-brasileiras. Na cidade de Alcântara, a festividade se tornou uma das mais tradicionais do país e apreciada por suas peculiaridades.


Instrumentos de sopro acompanham o cortejo percussivo

Diferentemente da prática em outros lugares do Brasil, em que a festa é um ritual do catolicismo popular, no Maranhão, embora vinculada à religião católica, o Divino possui dois detalhes fundamentais. Primeiro, a presença marcante de mulheres. As famosas caixeiras tocam instrumentos musicais que se assemelham a pequenos tambores, denominados “caixas do Divino”. A outra diferença, com exceção da cidade de Alcântara, é a festa estar comumente associada ao calendário religioso de “terreiros de tambor de mina”, como são denominadas as casas de culto afro-maranhenses. Quase todos os terreiros de mina organizam, uma vez ao ano, uma festa do Divino em homenagem à entidade importante para a comunidade religiosa.


Celebração gira em torno de um grupo de crianças vestidas
com trajes nobres

O período para a realização se relaciona com o Dia de Pentecostes, variando entre maio e junho e podendo acontecer até o ano seguinte. Em Alcântara, começa na quinta-feira da Ascensão do Senhor e termina no Domingo de Pentecostes. Uma estimativa feita pelo Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, órgão vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão, registra que são realizadas anualmente mais de uma centena de festas do Divino, somente em São Luís. Algumas pessoas também a organizam em suas casas. É comum que sejam também relacionadas com o tambor de mina e que, por algum motivo, fazem a festa fora do local de culto, mas sempre em homenagem a entidades cultuadas nos terreiros.


A indumentária conta com elementos como coroa, tiara, cetro e manto de veludo bordado

O RITUAL
Em Alcântara, a Festa do Divino configura uma liturgia rica de personagens e significados constituintes de um cortejo que percorre toda a cidade. Fazem parte do império simbólico elementos como coroa, tiara, cetro, manto de veludo bordado e outros ícones reais utilizados pelo imperador e imperatriz, crianças que representam os festeiros (pessoas que promovem a festa naquele ano). Elas são tratadas com todas as regalias durante os dias da festa, quando são saudadas como nobres e sentam-se em tronos (cadeiras cobertas com tecidos finos e enfeites, colocadas na tribuna, espécie de altar, no qual seguram a pombinha e a coroa do Divino).

A cada ano, um dos membros da realeza é personagem principal – um ano é do imperador e, o seguinte, da imperatriz. Em outros lugares, como São Luís, imperador e imperatriz marcam presença lado a lado na corte, com o mesmo grau de importância. Mais crianças assumem outras posições na procissão. O império se estrutura de acordo com uma hierarquia na qual, logo abaixo do topo (em que estão o imperador e a imperatriz), ficam os mordomos régios, que, por sua vez, estão acima dos mordomos baixos. Ao final da festa, imperador e imperatriz repassam seus cargos aos mordomos, que os ocuparão no ano seguinte, recomeçando o ciclo. Aias, vassalos, bandeireiro, bandeirinhas e anjos são outras figuras representadas durante o cortejo.

Em Alcântara, além da procissão, a festa se desenrola em um salão chamado tribuna, na casa do imperador, que representa um palácio real e é especialmente decorado para esse fim. A abertura e o fechamento desse espaço determinam o começo e o fim do ciclo da festa, durante o qual se desenrolam as diversas etapas da tradição. O evento que marca o início dos festejos é o levantamento do mastro do imperador. Logo após, na chamada alvorada, que acontece durante o nascer no sol, o cortejo é feito com caixeiras e músicos no mastro do império, seguida de uma missa em que ocorre a coroação do imperador. À tarde, a procissão sai em passeata pelas ruas da cidade, para efetuar a prisão dos mordomos pelo império.


Encarnando o Imperador, Rodrigo foi tratado com todas as regalias durante os dias de festa

Nos dias seguintes, cumpre-se uma programação que inclui passeata e levantamento do mastro dos mordomos régios, ladainhas, visita do império aos mordomos e vice-versa, entrega de esmolas, missas – e finda com a entrega dos postos aos festeiros do ano seguinte. Inicia-se, então, o novo ciclo, no qual toda a organização e os preparativos da festa são assumidos por um grupo de pessoas que se comprometem, geralmente por pagamento de promessa, e recebem doações de devotos e colaboradores para que possam garantir mesas fartas no momento da visita do império à casa de cada um dos seus membros.


O roteiro da festa inclui cortejo pela cidade, missas, montagem de altares domésticos, preparação e distribuição de quitutes

AS CAIXEIRAS
Sejam relacionadas ao tambor de mina ou não, no Maranhão, as caixeiras constituem elemento imprescindível e típico da festa. As senhoras idosas possuem o encargo de tocar caixas e entoar cânticos, repetidos de cor ou improvisados, em louvor ao Divino Espírito Santo. O mais comum é que façam isso por promessa ao longo da vida e vinculem-se a um grupo entre seis, 10 ou mais pessoas que, anualmente, tocam em diversas casas, sob a liderança da caixeira-régia e ajudadas pela caixeira-mor. As caixeiras não recebem remuneração, mas são muito valorizadas. Recebem alimento, algum dinheiro para transporte, vestimentas iguais em algumas festas e são agradadas com presentes e mantimentos. Além de tocar e cantar, elas dançam com as bandeireiras diante do trono e do mastro. O canto, ora em uníssono ora em duas vozes, pode apresentar variações na melodia principal, como ocorre normalmente nas práticas da tradição oral.

É de responsabilidade das caixeiras conhecer todo o ritual e o repertório relacionado, que é vasto e variado, e ainda precisam ter a habilidade do improviso para responderem a situações imprevistas no decorrer das etapas. Para Marlene Silva, caixeira em Alcântara e devota desde os 14 anos, para ser caixeira é necessário mais do que saber os versos e passos, é preciso amor. “Isso é para ter muita coragem, muita responsabilidade e gostar. É uma coisa que vem de dentro da gente. Tem quer ter respeito, tem que ter amor por aquilo que quer”, explica.

Marlene diz que, apesar de ser uma festa tão tradicional, hoje existe grande dificuldade em atrair a participação dos jovens, encontrada até para formar o grupo de bandeirinhas – garotas que carregam bandeiras para o Espírito Santo durante os cortejos. Elas acompanham as caixeiras nas obrigações, ajudando a cantar as ladainhas e dançando nas festas organizadas na Casa do Divino. A função acaba sendo uma porta de entrada para tornar-se caixeira – é como a maioria delas começou. “Hoje, as bandeirinhas não querem mais nem cantar junto com a gente, é assim mesmo”, comenta Marlene.

A ORIGEM
Em Portugal, no Brasil ou em qualquer lugar que a tradição tenha alcançado os séculos, fiéis devotos e pagantes de promessas carregaram o ritual até os dias atuais. Os relatos sobre a origem da comemoração possuem diferentes versões. Uma das mais comuns é a de que o festejo começou com a promessa feita pela imperatriz Dona Isabel de Aragão. Por volta do ano de 1320, ela teria pedido ao Divino Espírito Santo que o filho D. Afonso, herdeiro legítimo do trono imperial, fizesse as pazes com o pai D. Dinis. A imperatriz não se conformava com o confronto entre pai e filho devido à herança do trono imperial, pois era desejo do imperador que a coroa portuguesa passasse, após sua morte, para um filho bastardo. A intervenção teria evitado o conflito armado entre pai e filho denominado Batalha de Alvalade.

Entretanto, para Carlos de Lima, pesquisador maranhense que contribuiu para os estudos acerca da festividade no Maranhão, a Festa do Divino também pode ter sido originada numa instituição criada por Oto IV, duque da Baviera, para socorrer os pobres de seu império, arrasado pela fome, no século 13, daí se espalhando pela Europa, para chegar a Portugal em 1296 e, posteriormente, ao Brasil. A celebração profano-religiosa era praticada, a priori, pela nobreza e, mais tarde, teve seu rito apropriado pela população mais pobre. 

AMY LOREN, jornalista.
MÁRCIO RM, fotógrafo.

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