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Pessach: Comida à mesa em memória da libertação

Do final de março ao princípio de abril, os judeus comemoram a sua Páscoa, permeada de simbolismos alimentares

TEXTO EDUARDO SENA
FOTOS FLORA PIMENTEL

01 de Março de 2013

Os símbolos da refeição são ervas amargas, ovo cozido, pasta de maçã com nozes, pão ázimo, água salgada e vinho

Os símbolos da refeição são ervas amargas, ovo cozido, pasta de maçã com nozes, pão ázimo, água salgada e vinho

Foto Flora Pimentel

Todo ano, quando a lua cheia se impõe pela primeira vez após 21 de março, data que marca o equinócio e o começo da primavera no Hemisfério Norte, além dos aspectos geográficos, várias simbologias vêm à tona. Para os judeus, é o começo do Pessach, léxico hebraico com raiz no verbo “pular” ou “passar adiante”. Para essa tradição religiosa, significa mais do que um movimento para frente. Corresponde ao período da Páscoa, celebrada este ano entre 25 de março e 2 de abril, de acordo com o calendário lunar.

Diferentemente da liturgia cristã, que rememora a ressurreição de Cristo, o Pessach relembra a libertação do povo judeu da escravidão no Egito, em 1200 a.C., bem como o início da identidade histórico-judaica. Na perspectiva agrícola, representa também a época da colheita da cevada e do fim das chuvas.

“Enquanto, no cristianismo, comemora-se a Páscoa no domingo depois da primeira lua cheia de primavera, no Hemisfério Norte (no Hemisfério Sul, inicia-se o outono), no judaísmo, a comemoração se dá na primeira noite de lua cheia da primavera, que é o dia 14 do mês de Abib do calendário judeu”, explica o professor de Teologia da Universidade Católica de Pernambuco, Cláudio Vianez.

Uma vez que, no âmbito religioso, comida não é matéria para nutrir o corpo, mas instrumento para alimentar a alma, o Pessach carrega uma série de simbolismos e rituais ligados à alimentação. No judaísmo, assim como em outras religiões, alimentos funcionam como porta de passagem para ritos das mais diversas origens, aproximando, por meio do comestível, os humanos às divindades. A comida, ou a ausência dela, é um dos canais mais fortes para o diálogo íntimo entre o fiel e as representações imateriais da sua crença.


Os bolinhos de peixe (guefilte fish) e os enrolados de pão ázimo não podem faltar na celebração

“A liturgia se inicia quando se coloca a casa em ordem, que deve estar limpa e arrumada para receber o Pessach. À mesa, todo um conjunto específico de talheres é utilizado para a celebração”, afirma a pesquisadora e presidente do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, Tânia Kaufman.

E o ritual é extenso. Durante os oito dias do Pessach, qualquer tipo de alimento fermentado tem seu consumo proibido. “Por esse motivo, a comida principal é o pão ázimo, também conhecido como matzá.” Sem fermento nem farinha branca em sua receita, tem textura de bolacha tipo cream cracker. No dia que antecede as comemorações, a família deve jejuar em homenagem aos primogênitos que não foram atingidos pela última das maldições egípcias. Daí em diante, várias refeições e narrativas são intercaladas, como forma de reforçar o significado da celebração. Cada um dos alimentos empregados relembra a experiência que o povo judaico teve quando viveu no cativeiro do Egito, as 10 pragas impostas e os milagres divinos que os retiraram daquela situação.

SIMBOLISMOS
Depois da casa arrumada e da mesa posta, inicia-se o seder, ceia familiar na qual é feita a leitura da narrativa sobre a libertação dos judeus da escravidão do Egito e o êxodo pelo deserto. “A ordem de arrumação inclui símbolos alimentares que rememoram toda a história do Pessach. Estão nessa mesa o osso com carne tostada, ovo duro, ervas amargas, pasta de maçã com nozes, batata-inglesa, alface, salsa, pão ázimo, água salgada e vinho”, lista Kaufman.

Cada um desses alimentos tem um significado relacionado às etapas daquele momento histórico. A mistura de nozes picadas, tâmaras, maçãs e vinho, por exemplo, simboliza a argila usada para se fazer os tijolos durante a escravidão. A taça de vinho, que se serve, mas não se bebe, remonta ao conflito talmúdico sobre a quantidade de copos que se deve ingerir durante o seder. O ovo, por sua vez, representa a destruição do templo de Jerusalém, e o zeroá (osso com carne tostada), o sacrifício do povo judeu.


Enrolados de pão ázimo

Encerrado o seder, dá-se início à ceia. Rigorosamente, todas as comidas típicas devem ser preparadas com o pão ázimo, ou com a farinha dele. Entre os quitutes salgados, os tradicionais bolinhos de peixe (guefilte fish), guarnecidos de pasta de erva amarga; canja de galinha; bolinhos fritos de farinha matzá com ovos; bolinhos cozidos em caldo de galinha ou água e sal; enrolados de pão ázimo com recheio de batatas espremidas e misturadas com cebolas fritas; bolo de batata ralada feito com ovos e farinha de ázimo.

“As sobremesas incluem frutas naturais em compota e, em especial, uma torta feita de castanha-de-caju moída com farinha e doce de goiaba derretido, arrumados em camadas alternadas. Outro quitute bastante típico é o pão de ló de Pessach feito com farinha de ázimo e ameixas amassadas”, detalha a pesquisadora, que também é antropóloga com doutorado em história dos judeus no Brasil e coordenadora do Museu Sinagoga Kahal Zur Israel, no Bairro do Recife.

RESTRIÇÕES
Tânia Kaufman faz questão de ressaltar a importância da alimentação nos demais dias do ano, que também recebe um conjunto de regras e privações baseadas nos textos sagrados. Aqui, todo tipo de comida que pode ser ingerida é chamada de kosher (de kasher, “bom” e “próprio”, em hebraico). Entre as particularidades kosher está a proibição do consumo de animais como camelo, coelho, lebre, porco e aves predatórias. Também é rejeitada a combinação entre leite e carne no mesmo prato. Um cheesebúrguer e um estrogonofe, por exemplo, são receitas repelidas pelo povo judeu.

“O repúdio se dá porque o leite que aparece na fêmea na hora do parto significa vida e a carne representa a morte, pois com ela se tira a vida do animal. Nas famílias tradicionais, até a louça usada para servir carne não pode ser a mesma da utilizada para derivados do leite. Pias e geladeiras também devem ser distintas para os dois alimentos”, explica. Mas se há algo que marca verdadeiramente a cozinha judaica como ritual religioso é a comida doce. Uma vez que, nesse contexto, o dulçor dos alimentos significa uma vida plenamente doce para o judeu.


Antropóloga Tânia Kaufman observa que o primeiro passo do Pessach é colocar a casa em ordem

Doces aparecem de forma abundante nas principais cerimônias religiosas judaicas (além do Pessach): no batismo, na circuncisão, na cerimônia de atribuir um nome, na maioridade religiosa dos meninos e no casamento. Nessas ocasiões, sempre são servidos o chalá (pão trançado), o bolo de mel e o flúden (massa folhada recheada de frutas secas). “No dia da cerimônia de casamento, os noivos devem jejuar, e, ao final dela, recolhem-se a um recinto próximo do local, onde fazem a primeira refeição de casados, composta por maçã açucarada e chalá. Em seguida, podem retornar para a festa”, narra.

ANO-NOVO
Na festividade que se refere ao Ano-Novo judaico, que ocorre entre os meses de setembro e outubro, costumam-se servir bolinhos de peixe (animal que só se move para frente), romãs e um pescado servido inteiro com a cabeça, simbolizando liderança e fertilidade. No caso do guefilte fish do Pessach, utiliza-se sua carne branca moída na composição dos bolinhos.

guefilte fish origina-se nos antigos vilarejos judaicos em Israel, onde a maioria da população era pobre e, portanto, sem condições para comprar o peixe para a primeira refeição tradicional do dia do descanso semanal, o Shabat.

Talmude, livro da religião judaica que contém a lei oral, a doutrina, a moral e as tradições desse povo, indica que todas as famílias, mesmo as mais pobres, têm o direito de comer o pescado nas celebrações. Por esse motivo, os judeus mais ricos compravam, além dos tipos de primeira qualidade para consumo próprio, mais três tipos, faziam a receita e distribuíam para os pobres. O prato é emblemático para os judeus, mas pode agradar outros paladares, não necessariamente religiosos. 

EDUARDO SENA, jornalista.
FLORA PIMENTEL, fotógrafa.

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