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Das bacantes ao frevo de bloco

Com um tipo de coro que remonta à Grécia, Coral Edgard Moraes comemora 25 anos de atividades com o CD 'Cantos & encantos'

TEXTO André Valença

01 de Janeiro de 2013

Filhas, netas e sobrinhas de Edgard Moraes levam à frente sua obra

Filhas, netas e sobrinhas de Edgard Moraes levam à frente sua obra

Foto Otavio de Souza

Parece que há uma lógica exponencial nas canções carnavalescas: quanto mais no passado se situam, mais o passado se canta. Basta observar como se chamam alguns desses sucessos: A dor de uma saudade, Recordar é viver, Velhos carnavais, Carnavais de outrora e Valores do passado (“E o Bloco da Saudade/ Assim recorda tudo o que passou”).

Os títulos citados são amostras dos 300 frevos de bloco (ou marchas de bloco) deixados pelo compositor Edgard Moraes, cujos 40 anos de morte são lembrados em 2013. Existem vários outros na mesma linha melancólica. É curioso notar que essa temática provoca agora um duplo sentimento de nostalgia, visto que as canções estão cronologicamente distantes.

Observando as letras, perceberemos nesse tipo de frevo referências a tempos mais remotos. A alusão pode parecer demasiadamente afastada, mas essa música tradicional tem respaldo direto, por exemplo, no “canto triunfal e glorioso” das devotas de Dionísio, no texto teatral As bacantes, de Eurípedes, apresentado pela primeira vez em Atenas no ano de 405 a.C.

Assim como as cantoras das marchas de bloco de corais recifenses, as bacantes cantavam e evocavam – com gritos de “evoé, evoé” – o entusiasmo folião. A diferença é que as gregas, mesmo situadas há mais de 2 mil anos, eram mais libertinas e anticonvencionais. Seja como for, o Carnaval está claramente lá, nessa e em outras referências. “Entra o coro das bacantes, envergando peles de gamo, coroadas de hera e de serpentes, agitando os tirsos e os tamboris, tocando flauta e dançando ao som desses instrumentos”, descreve Eurípedes. Só fica faltando o estandarte.

Grupos de coralistas eram comuns nas peças da Grécia antiga. Tratava-se de um recurso dramático utilizado pelo autor para comentar ações do enredo que não podiam ser expressas pelos protagonistas. “Esse coro tradicional se chama orfeão”, explica o professor de música José Amaro, da Universidade Federal de Pernambuco. “O nome é originado da palavra Orfeu, que é o deus grego da música. O orfeão é cantado a uma única voz, seja ela masculina ou feminina, em uníssono.”

ERA CRISTÃ
Outras modalidades de corais apareceram na sequência. Durante a Idade Média, elas tiveram um desenvolvimento notável. “Quando chega a era cristã, a igreja vai usufruir de todo esse conhecimento greco-latino e montar seu próprio esquema musical, interessada na mensagem religiosa”, comenta José Amaro. Daí nascem as missas cantadas, divididas nos segmentos kyrie, gloria, credo, sanctus, benedictus e agnus dei, e a musicalização de orações específicas, como a salve-rainha, a ave-maria e o pai-nosso. Cada uma tem uma estrutura específica de texto, sobre a qual o compositor constrói a música.


Valores do passado, em manuscrito do próprio autor.
Foto: Otavio de Souza

Aparecem nessa mesma época os coros mistos, formados por vozes de naipes distintos. Eles podem ser dispostos em soprano (voz aguda feminina), contralto (grave feminina), tenor (aguda masculina) e baixo (grave masculina). É igualmente possível se deparar com coros mistos femininos (compostos por soprano, mezzo-soprano e contralto) e masculinos (tenor, barítono e baixo).

A princípio, as missas eram em canto gregoriano (também chamado de cantochão), uma modalidade desenvolvida no final do século 6 pelo Papa Gregório I, em que as orações entoavam-se em uníssono e monofonicamente. “O canto gregoriano é construído para uma determinada voz. Pode ser masculina, feminina, ou as duas, contanto que esteja no mesmo tom. Não há harmonização, ou seja, é uma linha reta, sem muita sinuosidade”, ensina José Amaro. Mais tarde, na Alta Idade Média e na Renascença, aparecem os cantos polifônicos, em contraponto ao cantochão, em que as vozes apresentam mais de uma melodia, simultaneamente, na mesma música.

É só durante o período barroco que os corais passam a se afastar da pauta religiosa. Com o surgimento da ópera, uma manifestação que retoma vários preceitos do teatro grego, o coro sai da condição de protagonista, como vinha sendo durante a Idade Média, e novamente divide o palco com a dança e a representação.

DAS OPERETAS
A popularização da ópera foi essencial à futura criação dos frevos de bloco, isso porque, quando começaram a ser fundados os primeiros blocos no Recife, era preciso criar um tipo de canção que tivesse uma característica mais lírica. “O que os compositores fizeram, então? Eles lançaram mão das jornadas do pastoril”, elucida José Amaro. “O pastoril é uma representação teatral que sugou muito das operetas. Apresenta várias figuras, como o Satanás, que entra, solta fogo, faz a pompa toda; bem exagerado, bem cênico. Atrás disso tudo, tem um coral sustentando o lado melódico. Os compositores das marchas tiveram a ideia de extrair apenas o coro”, diz.

Do ponto de vista estrutural, José Amaro explica como se compõe o frevo de bloco: “Simples, é um orfeão cantado por mulheres, normalmente acompanhado de uma banda de pau e corda”. O pesquisador Leonardo Dantas Silva, autor do livro Carnaval do Recife (2000), aponta, no artigo Ensaios de Carnaval (Suplemento Cultural, fev/1997), que convém distinguir três tipos de frevo: “Nos anos 1930, a fim de aumentar o apelo promocional dos discos de então, convencionou-se dividir o frevo em frevo de rua (quando puramente instrumental), frevo-canção (este derivado da ária, com uma introdução orquestral e andamento melódico, típico dos frevos de rua) e o frevo de bloco”.


Os corais se desenvolveram bastante na Idade Média. Imagem: Reprodução

José Amaro completa a informação: “O frevo de rua é orquestrado; o frevo-canção é orquestrado com uma letra em que alguém sola o tempo todo. E tem a marcha de bloco, que é o termo mais correto para o frevo de bloco. Porque, na marcha, a pessoa caminha cantando e, no frevo (canção, ou de rua), a música toca e o cara se esbalda. Os dois primeiros são ritmos frenéticos, que levam você a pular. A marcha de bloco, ao contrário, é mais calma, só balançante. Tem uma outra conotação”.

Acelerando a história para o ano de 1962, podemos entender melhor a raiz do saudosismo dos frevos de bloco, comentado no início deste texto. À essa época, os grupos carnavalescos líricos estavam desaparecendo – foi quando Edgard Moraes compôs a premiada canção Valores do passado, na qual homenageia 24 blocos pernambucanos extintos. No final, idealiza uma agremiação que representasse todos eles, o Bloco da Saudade, que depois foi propriamente fundado, em 1973, por José Madureira e Marcelo Varela.

CORAL EDGARD MORAES
Pode ser chamado de passado esse tempo dos “tempos que passaram” de Edgard Moraes. O compositor, que também atendia pela alcunha de “General Cinco Estrelas da Folia”, no entanto, deixou um legado seguido por suas filhas, netas e sobrinhas. Elas integram o tradicional Coral Edgard Moraes, agora comemorando 25 anos de atividades com o lançamento do CD Cantos & encantos, encartado nesta edição da Continente.

De sua parte, o grupo não é tão apegado ao passado. Segundo Marco César, professor de Música da UFPE e diretor musical do álbum, junto com o maestro Spok, eles não se limitaram a gravar composições tradicionais, mas chamaram colaboradores para criar novas músicas. Foi o caso do jovem guitarrista Luciano Magno, que assina a faixa Meu principado, ao lado de João Araújo. “Outro dado de diferenciação é que esse disco veio mais ousado, porque apresenta formações nunca tocadas em frevos de bloco. Tivemos a ideia de criar variações instrumentais distintas. Então, há faixas com conjunto de choro, quinteto de cordas, quinteto de madeira, orquestra de frevo tradicional, além da original, de pau e corda”, comenta o diretor.

Em Mais que uma cantiga, composição de Cláudio Almeida e Humberto Vieira, a elaboração foi inspirada no dixieland, subgênero do jazz surgido no início do século 20 em Nova Orleans. O arranjo é do professor de Música da UFPE Flávio Rangel, e casa bem com o experimento da linha de improviso que Spok propõe com a sua Frevo Orquestra.


O canto triunfal das bancantes figura nos primórdios do coral. Imagem: Reprodução

“Quando demos carta branca para Fernando, ele até ficou assustado com a possibilidade de mexer com o modelo do frevo de bloco, mas depois relaxou”, lembra Marco César. No caso de Meu principado, além de aparecer a guitarra, também entram baixo acústico, piano, bandolim e sax. “Instrumentos elétricos no frevo de bloco, acredito que só Alceu (Valença) fez antes da gente”, considera o professor.

Apesar de mais timidamente, o coral havia subvertido as estruturas clássicas da marcha de bloco, quando resolveu se aposentar da rua e mudar a ambientação do conjunto. “Durante 13 anos, nós fizemos parte do Bloco das Ilusões”, conta Valéria, produtora e uma das cantoras do Edgard Moraes. “Mas foi ficando impraticável a questão das caminhadas, da programação... Também queríamos aprimorar a qualidade vocal do trabalho. Então, decidimos fazer uma coisa inusitada: cantar frevos de bloco no palco. Foi aí que surgiu, de fato, o Coral Edgard Moraes”, conta.

Além dessa distinção, para Valéria, o que destaca o grupo de outros do gênero é a genética. “Quando você escuta, parece que é uma voz só cantando. É muito difícil conseguir isso em coral. Conseguimos por conta da hereditariedade; o timbre de voz é muito parecido, porque somos todas parentes”, observa.

É bom salientar que, apesar das inovações, a tradição não fica de fora do disco. Raul Moraes (irmão de Edgard), Luiz Guimarães, Alvacir Raposo e outros nomes são igualmente regravados. Do General, são duas: Edgariando, que abre o CD, e Vingança de arlequim (em parceria com Caio Costa Lima).

Porém, de acordo com Inajá Moraes, filha de Edgard, o corpus é tão grande, que muitas outras poderiam ter entrado: “A inspiração dele não tinha hora. Às vezes, acordávamos de madrugada e ele estava enroscado com o violão e suas partituras, compondo frevo de bloco, canção, maracatu, valsa. Porque ele não fazia só frevo, tinha música de tudo o que é tipo. Tinhamos cuidado para não fazer zoada e não atrapalhar, porque sabíamos que uma hora a música ia ficar pronta e iríamos gravar. Eu e minha irmã (Iraçaíra Moraes) registramos praticamente todas as músicas de papai”, relembra. 

ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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