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Frevo de palco

TEXTO Zé da Flauta

01 de Janeiro de 2013

A SpokFrevo tem levado o frevo a audições na Europa

A SpokFrevo tem levado o frevo a audições na Europa

Foto Divulgação

A tríade frevo, passo e folia sempre confundiu a cabeça das pessoas, e continua confundindo, mesmo daquelas que costumam estudar, escrever e discutir sobre ela. Na minha humilde concepção, frevo é música, passo é dança e folia é o estado de alegria e euforia em que a pessoa fica quando ouve o frevo e cai no passo.

A confusão é tão grande, que existe no Recife uma instituição, a Escola Municipal de Frevo Maestro Fernando Borges, que deveria ensinar a tocar um dos nossos mais expressivos ritmos – agora reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade –, mas, ao invés disso, é especializada no ensino do passo.

Um dos fatores que concorreram para esses equívocos talvez seja o de que – por razões que não cabe aqui analisar – a música recebeu uma denominação e a dança, outra; ao contrário do que acontece com outros ritmos. A dança do samba, por exemplo, também se chama samba; a do tango, tango; a da lambada, lambada; e vai por aí... A dança do frevo, no entanto, chama-se “passo”. Daí, ser muito mais comum, e tradicionalmente correto, na hora de entrar na dança, dizer-se “vou fazer o passo”, e não “vou dançar o frevo”.

O que se pode afirmar é que, em seus mais de 100 anos de existência, o frevo sempre foi tratado apenas como uma trilha sonora do nosso Carnaval, uma peça coadjuvante, para embalar multidões exclusivamente no período momesco. E daí não saía mais para canto nenhum, até porque, no caso dos frevos-canções e de frevos de blocos, cerca de 90% das letras se referem ao próprio ciclo carnavalesco, o que, ao contrário do que acontece com o samba e outros ritmos, cria um vínculo temporal que concorre para impedir a execução em outras épocas do ano.

Essa realidade sempre me induziu a fazer perguntas e reflexões do tipo: Por que o frevo não pode ser tratado apenas como uma arte e uma linguagem musical que fale por si só, deixando de ser um mero complemento da folia? Por que não pode ser dirigido a uma plateia que, além de ficar sentada, calada, atenciosa e, principalmente, sóbria, já não estaria instalada nas ruas, e, sim, nos palcos dos teatros ou auditórios de instituições e empresas? Por que os músicos que executam o ritmo não podem ter liberdade de expressão, não podem se dedicar a improvisações?

Que a coisa não tinha de ser assim, que essa realidade poderia ser modificada, começou a ficar claro para mim a partir de 2003, quando comecei a trabalhar com um grupo chamado Banda Pernambucana, que foi por mim rebatizado de Orquestra de Frevos do Recife e, depois, por sugestão do produtor musical Wellington Lima, recebeu a denominação SpokFrevo Orquestra.

Por romper com as tradições consolidadas e ferreamente defendidas, o grupo inicialmente provocou a crítica de puristas, principalmente daqueles que se acham “donos do frevo”, da mesma forma que acontecera ainda na década de 1950, quando o saxofonista Felinho, que – como outros músicos recebeu forte influência do jazz, sobretudo devido à instalação de uma base militar norte-americana no Recife durante a Segunda Guerra Mundial – compôs e executou jazzísticas variações em Vassourinhas, de Mathias da Rocha e Joana Batista.

No entanto, a SpokFrevo começou a romper fronteiras, no nível mundial, levando o ritmo não apenas para a Europa, mas para países antes inimagináveis, como China, Índia e Tunísia; e participando de alguns dos mais importantes festivais internacionais de música, nos quais dividiu o palco com estrelas do porte de Stevie Wonder, Stanley Clarke, Chick Corea, Bobby Mcferrin e Diana Krall, entre outros.

Reunindo, normalmente, muitos músicos em sua formação, as plateias que têm assistido às apresentações da orquestra, sobretudo nos teatros, parecem mergulhadas em um silencioso êxtase, embora alguns integrantes do público, talvez inconscientemente, fiquem movimentando os pés, empolgados com a alegria e a energia inerentes à natureza do frevo. (Só eu sei a emoção que sentia quando via e ouvia esse ritmo pernambucano por excelência sendo tocado e respeitado pela plateia da Europa e outros continentes.)

Não sem razão, o CD e o DVD da SpokFrevo figuram com destaque nas prateleiras de algumas das maiores lojas do mundo. Também não foi por acaso que o experiente Frédéric Gluzman, empresário da Orquestra na Europa, fez uma profecia segundo a qual, dentro em breve, deverão surgir grupos de frevo na França, Holanda e em outros países do continente europeu.

Essa receptividade internacional à orquestra e ao frevo cresceu tanto, que, em 2008, a SpokFrevo – transformada numa espécie de embaixatriz da cultura musical brasileira – foi convidada a participar, no Palais de l’Élysée, residência oficial do presidente da França, das comemorações do Dia Internacional da Música. Realizados em meses variados, os shows e os eventos dos quais o grupo tem participado fizeram com que aquela música pernambucana, que parecia só existir durante o Carnaval, passasse a ser tocada, fora de seu país de origem, em todos os períodos do ano.

As coisas começaram a mudar também em terras verde-amarelas, em que o grupo, além de ser convidado para participar de grandes festivais, começou a conquistar importantes troféus, a exemplo do Prêmio TIM, em 2005, como banda revelação, e do Prêmio da Música Brasileira, em 2009, vencendo nas categorias de melhor disco instrumental, com o CD Passo de anjo – ao vivo, e de melhor grupo instrumental. Nos dois casos, o ineditismo histórico de uma orquestra especializada em frevo, e frevo instrumental, ganhar tanto destaque.

Os fatos acima relembrados são, na minha concepção, uma eloquente demonstração de que, se o passo não pode viver sem o frevo, o frevo pode viver sem o passo. E que o ritmo não pode ser visto apenas como uma manifestação carnavalesca secundária, devendo ser reconhecido por nós como uma rica e autônoma forma de expressão artística, e de valor universal – como explicita categoricamente o título, dado pela Unesco, de Patrimônio da Humanidade.

Essa nova realidade vivida pelo frevo estimula a afirmação de que já está mais do que hora de, ao invés de ficarmos eternamente envolvidos em improdutivas e pouco pragmáticas discussões, passarmos a defender enfaticamente, por exemplo, ações voltadas para a efetivação e expansão do ensino do frevo. O que, acreditamos, deve ser precedido por uma urgente sistematização do ritmo, ainda carente, por exemplo, de uma eficaz metodologia de ensino.

E antes que eu esqueça: já não existem apenas os frevos-canção, de bloco e de rua. Uma nova modalidade vem cada vez mais conquistando espaço – e em todo o mundo: o frevo de palco. Aquele que, em resumo, não é dirigido à folia, nem tocado na rua, apenas em palcos e para uma plateia interessada exclusivamente em música, podendo, por isso, ser tocado o ano inteiro, principalmente da Quarta de Cinzas ao réveillon, com arranjos que permitam improvisos e liberdade de expressão. Um frevo que atua como ator principal, como dono da cena. Um frevo, obviamente, sem letra, mas que, se fosse acompanhado por versos, esses poderiam ser assim: “Sem confete, serpentina,/ sem voz, sem poesia,/ sem passo, sem folia./ Apenas música!” 

ZÉ DA FLAUTA, músico, compositor, arranjador e produtor musical.

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