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João incomodado com 'João Gilberto'

Reunião de artigos, depoimentos e entrevistas procura abarcar vida e obra do ás da bossa nova, que, mais uma vez, diante desse trabalho, mostrou-se insatisfeito

TEXTO Elisa Jacques

01 de Setembro de 2012

João Gilberto

João Gilberto

Foto Divulgação

O livro João Gilberto incomoda João Gilberto. Porque textos e fotografias que revelam cenas inéditas de sua vida e carreira desafiam a sua intimidade. Deixam o artista nu, arredio, fraco e chato. Apontam outras faces do gênio e invadem a sua privacidade. É como se lhe tocassem na alma. Por isso, até hoje, o criador da bossa nova mostra-se pouco interessado em explicar o seu trabalho, pois acredita que “o verdadeiro criador não deve perder tempo discorrendo sobre as tendências e consequências de sua arte”, ela fala por si só. Mas o fato é que João contradiz o que afirma, pois já expôs muitas de suas intenções artísticas ao dar entrevistas, como a que concedeu à revista Radiolândia, citada na coletânea. Em novembro de 1959, João declarou ao periódico que não era fácil vencer na profissão de músico. Não porque sua trajetória pessoal fosse repleta de obstáculos, ou porque ele travasse uma série de batalhas profissionais no mundo do entretenimento, mas porque era um desafio cantar com simplicidade, já que isso exigia horas de estudo.

Talvez esse registro tenha incomodado João, assim como outros depoimentos que ocupam as 512 páginas de João Gilberto, organizadas pelo professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Walter Garcia, em edição pela Cosac Naify. Dentre entrevistas, crônicas e artigos, surgem declarações reveladoras e singulares sobre o músico, assim como a que foi descrita acima, indicada pela pesquisadora Edinha Diniz, na cronologia de entrevistas publicadas no Jornal do Brasil, em 2001. Depois disso, o que mais deve ter incomodado o artista foram os depoimentos íntimos de amigos e colegas de carreira, publicados no livro. Da personalidade tímida, quem depreenderia a ideia de um João namorador? Que insiste na cantada até conquistar a pretendente? Pois foi nesse sentido que Stella Caymmi falou do namoro dele com sua filha, Nana Caymmi, ainda adolescente. E ainda revelou que era durante a madrugada que Nana mantinha longas conversas íntimas com o amigo.

Outras questões ganham corpo no extenso volume, como a da repercussão da música de João Gilberto na França. A influência da música joãogilbertiana Brasil afora vai sendo discutida no trabalho de pesquisadores de várias partes do mundo, que relacionaram o gênero a que o músico era filiado a outras áreas da cultura brasileira, norte-americana e europeia, como o artigo da francesa Anaïs Fléchet, intitulado Samba cool e samba hot – a recepção de João Gilberto na França. A cada depoimento reunido no livro, procurou-se esboçar uma parte do percurso de um gênio musical que se mantém produzindo aos 81 anos de idade.

O livro fornece material de qualidade – e em grande quantidade – para investigar a vida e obra de um artista que se tem mantido polêmico desde a década de 1950. Concentra uma parte significativa de textos críticos sobre o músico e constrói novas reflexões sobre esse trabalho. Outras declarações inéditas vão aparecendo nos relatos dos companheiros de palco, como um de Caetano Veloso, de 1966, apresentando a ideia de “retomada da linha evolutiva” na música brasileira, através das recriações de João Gilberto para a modernidade na MPB.

Outro testemunho que não poderia deixar de ser citado, mas que ficou fora da publicação por já estar disponível em outros livros e na internet, é o que foi escrito em 1968, por Chico Buarque. Ele aparece no artigo Desenho mágico, da pesquisadora Adélia Bezerra de Meneses, sob o título de Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha. Buarque argumenta: “É certo que se deve romper com as estruturas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação. Não se trata de defender a tradição, família ou propriedade de ninguém. Mas foi com o samba que João Gilberto rompeu as estruturas da nossa canção”.

A insatisfação de João Gilberto sobre essas passagens do livro surpreendeu, pois a obra João Gilberto é uma proposta que reúne a maior quantidade de matérias, ensaios e fotos já realizada sobre ele, e tem credibilidade pela pesquisa que foi feita em fontes primárias, como os recortes do jornal Última Hora. A publicação também superou a ideia inicial de reunir material de pesquisa, ao permitir outras leituras da personalidade do artista. Não ousou, diversificou; e, com isso, talvez o músico tenha achado que teve a sua intimidade exposta demais, mesmo diante de uma boa amostra da riqueza do seu pensamento.

O organizador procurou distanciar-se dos boatos e fofocas para relatar a vida profissional do artista e do homem, evitando os entraves que poderiam resultar num registro tendencioso de alguém considerado um mito na história da música brasileira. Evita-se, em todos os capítulos, a fixação em estereótipos. Busca-se, no entanto, observar outras representações sociais do artista que deu à música popular no Brasil um caráter único. 

ELISA JACQUES, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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