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A percepção de um espetáculo de dança por um espectador surdo

TEXTO Marcelo Amorim

01 de Junho de 2012

Foto Breno César/Divulgação

Sou professor de Libras da Aeso (Faculdade Barros Melo, Olinda), e convoquei os meus alunos para uma aula extraclasse, a fim de ver de perto o trabalho dos intérpretes de Libras Anderson Correia e Ernani Ribeiro, com os quais entrei em contato e solicitei uma hora para os alunos tirarem dúvidas, antes da apresentação de Leve. O motivo da escolha desse espetáculo foi justamente a garantia de acessibilidade, já que os intérpretes, citados acima, traduziriam a peça – nunca assisti a uma montagem inteira com tradução para língua de sinais. Fui artista por quatro anos em Porto Alegre, participei de algumas encenações escolares, abertas ao público, com um diretor muito bem conceituado da Rede Globo. Resumindo, entendo como funciona o teatro, cheguei a assistir a alguns espetáculos feitos por ouvintes que pensaram apenas em público de pessoas que possuem o sentido da audição, e nenhum deles me agradava, pelo mesmo motivo: falta de acessibilidade. Ou melhor, alguns até tinham tradução para Libras, mas não conseguiam se fazer entender e chegar ao seu objetivo...

Quando chegamos ao Teatro Hermilo Borba Filho, meus alunos ficaram curiosos com os equipamentos de audiodescrição (utilizados para fazer a tradução intersemiótica do que está sendo visto em palavras, que descrevem objetivamente os movimentos e a interpretação das bailarinas, luz, cenário, figurinos, tudo especial e poeticamente pensado para as pessoas com deficiência visual, ao vivo e em tempo real) e aproveitaram para conhecer de perto esse trabalho. Nesse momento, o intérprete Anderson traduziu uma vinheta reproduzida em uma caixa de som, na porta do teatro, que falava do espetáculo em geral e das questões de acessibilidade, o que já achei muito bom. Ao entrar, deparei-me com uma cena diferente, nunca tinha participado de nada parecido, pois a plateia poderia sentar no chão, em tapetes brancos felpudos colocados na redoma em que acontece a dança, ou em duas arquibancadas laterais.

Sentei-me no local adequado para as pessoas surdas, até porque o espaço estava preparado, deixando o intérprete bem visível para o público surdo. Encontrava-me bastante ansioso para ver um trabalho tão bem ensaiado. Ao começar, acendeu-se uma luz direcionada ao intérprete, Ernani, que estava posicionado à minha frente, a um metro aproximadamente, e eu nem tinha percebido antes. Adianto que, antes de entrar, não tinha a menor ideia do objetivo do espetáculo que, para mim, agora, é “transformar o negativo em positivo”. Ernani começou a traduzir as músicas, com excelentes expressões faciais e corporais e acompanhei, mesmo sem entender ainda a base da ideia da peça, embora conseguisse seguir. Depois de um tempo, comecei a apreender o sentido.

Em uma cena, as bailarinas saem da arena central e se aproximam dos espectadores, inclusive uma delas chegou até a deitar no meu colo, momento exato em que consegui compreender o objetivo principal do espetáculo num gesto. De repente, absorvi todos os problemas relatados pelo intérprete, com uma enorme dor no coração, sentindo o que as atrizes sentiam, e o clima de tensão. As bailarinas foram se soltando e o intérprete repassando as mensagens positivas, tais como “levando os problemas”... Comecei a me sentir outra pessoa, um alívio indescritível dentro do meu corpo. Espetacular!

Com essa bela iniciativa, fica claro que a acessibilidade é para todos e não para poucas comunidades. Entre ouvintes, por exemplo, no caso dos índios, existem índios brasileiros que não sabem português, mas apenas a sua língua nativa; índios que sabem português, no caso, são bilíngues; e outros sabem apenas português. Da mesma forma acontece com os surdos: existem surdos que sabem a língua de sinais e a língua portuguesa escrita e, portanto, são bilíngues; existem ainda surdos apenas sinalizantes e surdos oralizados (que se identificam com a leitura labial e com o uso do português oral). No caso desse espetáculo, faltou acessibilidade para os surdos que não usam a língua de sinais, já que a peça não contou com o recurso de legenda das músicas e outros textos.

Enfim, acessibilidade é para todos e não para grupos “limitados”, mas quero deixar claro que maximizo a iniciativa com acessibilidade e minimizo os problemas, pois creio que, com o tempo, a acessibilidade será verdadeiramente para todos.

A iniciativa das bailarinas Maria Agrelli e Renata Muniz, dos tradutores Anderson Correia e Ernani Ribeiro, das audiodescritoras Liliane Tavares e Andreza Nóbrega, do Coletivo Lugar Comum... Que vocês sejam modelos para os próximos espetáculos montados na cidade, no estado, no país... Dessa vez, ao sair do teatro, estava emocionado porque, sim, consegui entender o objetivo da peça. 

MARCELO AMORIM, professor de Libras das Faculdades Integradas Barros Melo.

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