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Registro: O futuro do nosso passado

A digitalização de acervos é a nova ordem em diversas instituições, elevando a oferta da cultura e estimulando seu acesso por qualquer cidadão conectado à internet

TEXTO Fábio Lucas

01 de Fevereiro de 2012

Os 12 mil títulos de jornais e revistas da hemeroteca do Arquivo Público de PE já começaram a ser digitalizados

Os 12 mil títulos de jornais e revistas da hemeroteca do Arquivo Público de PE já começaram a ser digitalizados

Foto Ricardo Moura

Um fragmento de texto manuscrito de Leonardo Da Vinci e uma partitura desconhecida de Mozart ficaram escondidos por quase um século e meio no depósito da biblioteca pública de Nantes, na França. Ambos faziam parte de um calhamaço de cinco mil documentos, doado por um colecionador em 1872, e só foram achados por acaso em 2010 e em 2008, respectivamente. Estima-se que menos da metade das anotações e desenhos de Da Vinci, o gênio renascentista nascido há mais de cinco séculos, tenha sobrevivido ao tempo e chegado ao domínio público em nossos dias. Ou seja: o que se conta do criador da Mona Lisa é apenas a parte conhecida de sua aclamada criatividade, cuja plenitude ficou fora dos registros históricos.

E se obras de renomados mestres tiveram como destino o esquecimento, imagine-se o legado silencioso da cultura anônima, mesmo nos períodos festejados de inventividade, como o Renascimento europeu. Durante a maior parte de nossa história, a humanidade penou para arquivar tanto os preciosos produtos da arte quanto os corriqueiros rastros da vida privada. Documentos oficiais tiveram melhor sorte, quando não foram destroçados por invasões, pilhagens e guerras. Na Idade Média, os incêndios criminosos eram comuns, e destruíram milhares de bibliotecas lotadas de livros e objetos artísticos. Em pleno século 21, o mundo assistiu perplexo ao barbarismo cultural no Iraque. Em 2003, o Museu Arqueológico de Bagdá foi saqueado, e milhões de publicações, algumas recentes e outras muito antigas, foram queimadas na Biblioteca Nacional, no Arquivo Nacional, na Universidade de Bagdá e em outras universidades do país.

Para o venezuelano Fernando Báez, autor da História universal da destruição dos livros, é o vínculo de memória materializado pelo livro que é alvo da ira dos biblioclastas há cinco mil anos, como se das cinzas do passado fosse possível renovar o presente. Antes de atravessar o terceiro milênio, a prática chegou a ser considerada cult e incentivada por intelectuais. No início do século 20, o manifesto do movimento futurista pregava o fim das bibliotecas. O filósofo Martin Heidegger, nos anos 1930, estimulou seus alunos a acender uma fogueira com as obras de Edmund Husserl, outro filósofo de quem discordava.

Hoje, o mau exemplo de Heidegger seria ridicularizado, assim como a previsão dos velhos futuristas. O avanço tecnológico das últimas décadas permitiu que os bancos de dados fossem espremidos em pequenos espaços, como os discos rígidos externos e os pen drives. Os registros culturais de nossa e de outras épocas estão acessíveis a qualquer um na internet. No entanto, esse avanço é muito recente, se prestarmos atenção: em 1987, a inovação alardeada pela IBM e destacada na mídia era a “supermemória” de um novo disco magnético, com a capacidade para guardar 350 dicionários Aurélio. Era o tempo dos disquetes quadrados, e a ideia de uma rede mundial de computadores interligados ainda estava longe de ser banal.

Agora, o desafio de uma realidade favorável ao acúmulo inédito de conhecimento é sua distribuição democrática, desde que provida pelo instrumental tecnológico. A velocidade da mudança foi de tal proporção, que um enorme passivo de produção intelectual, em muitos países, precisa ser devidamente transformado, armazenado, catalogado e tornado acessível para utilização plena de pesquisadores, estudantes e do público em geral. A digitalização dos acervos integra aquilo que o filósofo Peter Sloterdijk – aliás, desafeto de Heidegger – chamou de estrutura para uma civilização completamente diferente. Sem cair no otimismo fácil, Sloterdijk aceita ser tido como um “pós-pessimista”, e no seu pós-pessimismo a digitalização da cultura cumpre papel oposto ao pessimismo intolerante que preferia literalmente queimar as discordâncias.


Há séculos, os bibliocatas se voltam contra a memória materializada nos livros, como ocorreu na ditadura militar chilena, na década de 1970. Foto: Reprodução

Um caso famoso de pessimismo rendido às possibilidades da rede foi o do turrão José Saramago. Para inaugurar o seu blog, em setembro de 2008, o Prêmio Nobel de Literatura, falecido menos de dois anos depois, escolheu postar artigo de sua autoria, de muitos anos passados, que considerava uma carta de amor a Lisboa. “Tornando-a outra vez pública, agora na página infinita da internet”, como definiu. O resultado dessas postagens foi transformado no livro O caderno (2009), repleto de anotações do autor português a respeito dos mais diversos assuntos.

O caso de Saramago é uma pequena nota que ilustra os benefícios da virtualização da cultura. Para o professor da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Puntoni, diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, instituição que é referência no processo de digitalização de acervos no país, trata-se de uma “verdadeira transformação democrática e de alcance ainda não mensurável, que tem permitido uma enorme ampliação do acesso a documentos, livros, textos e imagens antes guardados e protegidos”. Ou de limitada circulação, como o artigo do premiado autor português sobre Lisboa.

COMPARTILHAMENTO
A Brasiliana USP não está somente digitalizando e oferecendo o acesso aos livros e documentos da universidade, ou aos 40 mil volumes do acervo doado pelo bibliófilo José Mindlin. De acordo com seu diretor, “ao mesmo tempo, procuramos refletir sobre os padrões e normas para contribuir com a definição de uma política pública de alcance nacional. Temos o compromisso de compartilhar nossa experiência, no sentido de oferecer o acesso também às soluções de tecnologia e de padronização que alcançamos. Achamos que, com isso, poderemos auxiliar na formação de uma rede nacional das instituições envolvidas com a digitalização dos seus acervos”, afirmou o professor Puntoni, por e-mail.

A jornalista e historiadora Ana Paula Bernardes demonstra preocupação com a execução completa da trilha da virtualização. “Os riscos, na minha opinião, são grandes. A parceria com entidades privadas pode levantar a situação suspeita de documentos ‘esquecidos’, títulos burlados ou simplesmente a atitude de julgar que este ou aquele arquivo podem não ter importância para as pesquisas ou consultas futuras, ocasionando a exploração comercial de conteúdos públicos por parte da iniciativa privada”, argumenta. Para Ana Paula, falta ainda uniformização dos processos de digitalização, bem como a garantia de que as empresas privadas executoras dos projetos coloquem tudo, depois, ao dispor da população.


Estima-se que menos da metade da produção de Leonardo Da Vinci
tenha sobrevivido ao tempo e chegado às novas gerações.
Imagem: Reprodução


Para prevenir esse tipo de desastre, os passos da Brasiliana USP são seguidos em diversos estados. Em Pernambuco, a Cepe Editora, que publica esta Continente, tem desenvolvido um trabalho de levantamento, seleção e digitalização dos acervos, com apoio do Laboratório de Tecnologia da Informação (Liber) da UFPE. De acordo com Ricardo Melo, diretor de produção e edição dessa editora, são três os focos iniciais de trabalho no estado: o Arquivo Público, cuja hemeroteca de cerca de 12 mil títulos de jornais e revistas já começou a ser digitalizada; a Biblioteca Pública, que possui coleções raras, algumas bastante antigas, em situação precária de conservação, que precisam não apenas ser preservadas, como estar disponíveis para consulta; e o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), fundado em 1862, no qual se encontra um dos arquivos mais importantes do país. A própria Cepe pretende publicar em formato eletrônico títulos de seu acervo, relevantes para pesquisa, notadamente aqueles relacionados à história estadual. Para acelerar o processo, um scanner importado foi adquirido e será montado nos próximos meses, permitindo a digitalização de documentos que ficaram vulneráveis com o tempo e exigem maiores cuidados de manuseio.

O trabalho da Cepe Editora e de outras instituições integra o esforço coletivo nacional da Rede Memorial, criada para dar suporte a uma política nacional de digitalização no Brasil, prevista no Plano Nacional de Cultura. Em setembro do ano passado, foi realizado fórum na capital pernambucana, resultando na Carta do Recife, que definiu seis princípios básicos para a aplicação da digitalização. São eles: o acesso aberto, público e gratuito do material digitalizado; o compartilhamento das informações e da tecnologia utilizada; o alcance universal da acessibilidade; o uso de padrões de captura e tratamento de imagens que não danifiquem o acervo exposto; a aplicação de padrões de metadados e de arquitetura da informação dos repositórios digitais, favorecendo a recuperação e o gerenciamento dos dados; e, finalmente, a adoção de padrões e normas de preservação digital. A próxima reunião da Rede Memorial está marcada para o mês de maio, em São Paulo.

NOVAS BIBLIOTECAS
O assunto tem despertado grande interesse. Em outro evento, este promovido pela Biblioteca Nacional, em outubro do ano passado, no Rio de Janeiro, para debater o futuro das bibliotecas, o curador da coleção digital da British Library, Aquiles Brayer, defendeu a perspectiva de que o atrativo dos acervos será substituído pela prestação de serviços. “A biblioteca física vai virar um espaço simbólico e o simbólico vai virar quase o real, que é o virtual. A biblioteca vai ter que oferecer serviços para acesso a conteúdos digitais. E os objetos que ela retém em seu acervo vão ficar quase como um instrumento de museu, não exatamente nesse sentido, porque ele ainda vai ser manipulado. Mas com a cópia digital, a biblioteca vai ter que trabalhar cada vez mais na prestação de serviços do que propriamente na formação de acervos”, preconizou Brayer.

As bibliotecas não serão os únicos equipamentos culturais a sentir a mudança. Para o escritor Wellington de Melo, estamos diante de uma migração de suportes, talvez muito mais radical do que a passagem do pergaminho para o livro. “Ali, de uma forma ou de outra, a materialidade do suporte passava a mesma sensação de posse do objeto, o que não acontece com a digitalização.” A infinitude da página e a distribuição ou fragmentação do suporte desafiam a noção de materialidade, mexendo com outras noções estabelecidas. “O conceito de ‘nuvem’, de que tudo está digitalizado ‘virtualmente’, tem algumas implicações na maneira de concebermos os acervos. Quem já perdeu um servidor de um site, como um banco de dados de 200 textos, como eu, sabe o que quero dizer”, lamenta Wellington. É preciso que sejam tomadas precauções para que o que se guarda na “nuvem” não evapore, eventualmente, junto com ela. “Os servidores são a Biblioteca de Alexandria, que pode, sim, ser incendiada. A diferença é que as pessoas podem fazer inúmeras cópias do conteúdo, o que dificulta a perda total”, recomenda o escritor.


A bibilioteca Brasiliana é a referência no campo da digitalização no Brasil.
Foto: Arquivo Continente

A sugestão é pertinente não apenas para quem teve um disco rígido de computador danificado. Trata-se de necessidade antiga. Uma das obras científicas mais cultuadas como fundadoras de uma nova concepção de mundo, o livro As revoluções dos orbes celestes, de Nicolau Copérnico, quase não era publicado, e só saiu do prelo no ano da morte do médico e cônego reverenciado como o pai da astronomia, em 1543. Copérnico, meio século antes da invenção do telescópio, hesitou durante décadas em apresentar o heliocentrismo, que jogava na lata de lixo a crença milenar de que a Terra seria o centro do universo. Temendo a represália da Igreja e a crítica dos intelectuais de sua época, o revolucionário astrônomo amador preparou cedo um manuscrito com os princípios de sua teoria, cujas cópias circularam na Europa a partir de 1514. Somente 30 anos depois, ele foi convencido a publicar o calhamaço com os detalhes da teoria, graças, em larga medida, à precária rede formada em torno da novidade contida nos Commentariolus, como ficou conhecido o manuscrito. Se as cópias não tivessem sido distribuídas, é provável que o geocentrismo ganhasse mais alguns séculos de hegemonia.

Cinco séculos mais tarde, o compartilhamento, que implica igualmente numa troca cultural, volta a ser crucial para o progresso científico e a aspiração de uma civilização global. Para tanto, o escritor argentino Germán Gullón aponta uma grande vantagem da digitalização compartilhada em rede que caracteriza a “nuvem” atual: as possibilidades trazidas pela busca e pelo cruzamento de dados. “A enorme massa de informação digitalizada é enriquecida graças aos cruzamentos que geram nova informação”, comemora o autor de A leitura na era digital. Enquanto isso, a história não correria perigo, porque os dados originais permanecem intactos. “A memória histórica correria um risco, se perdêssemos a capacidade de analisar o que está conservado”, observa Gullón.

A segurança histórica na transição de suportes que desintegram a materialidade em prol da acessibilidade parece ser um consenso para aqueles que usam intensamente as fontes disponíveis de conhecimento. “Não tenho o fetichismo do papel. Tudo será mais fácil para o pesquisador. Entrar com busca é uma arma capaz de tirar pérolas do esquecimento”, avalia o professor e escritor gaúcho Juremir Machado da Silva. Além do mais, segundo ele, a virtualização dos dados não é novidade para quem trabalha com pesquisa. “O passado é virtual. Documentos físicos não o tornam mais concreto. Espero que a História seja totalmente digitalizada. Quero ter acesso a documentos sem precisar passar meses em arquivos”, torce Juremir Machado.

A filósofa Márcia Tiburi concorda com o escritor: “O passado é algo cuja materialidade é marcada por muita imprecisão. Há muito de invenção na memória”. Para Tiburi, com a digitalização, além de os documentos ficarem acessíveis a mais pessoas, a deterioração não será mais um fantasma. “O que eu acho que continua sendo problema é a educação e a formação. Não é apenas a internet, mas a compreensão que as pessoas tem dela e de sua relação com suas vidas. O mesmo vale para a memória e a história. Não temos acesso a elas em escala social porque não temos a educação que deveria existir em um país que quisesse ter futuro”, critica.


O escritor Wellington de Melo alerta para que os acervos não se percam no ciberespaço como curiosidades compartilhadas no Facebook. Foto: Felipe Ferreira/Divulgação

A irreversibilidade do avanço tecnológico também é levantada com o advento da digitalização. “Não podemos tratar o papel como uma espécie em extinção a ser protegida. O digital é tecnologicamente superior. A questão agora é de interpretação de dados, não mais de descoberta física de informações. Entramos numa etapa em que a inteligência será mais demandada do que a disciplina de detetive”, prevê Juremir Machado. Então o purismo que faz do papel um fetiche – e não admite a superioridade da tecnologia – estaria com os dias contados? Para Wellington de Melo, a virtualização de acervos é “um passo natural que a tecnologia permite, e independe da vontade dos puristas analógicos”. De todo modo, não é algo que ocorra sem susto. O jornalista Cristiano Ramos postou, na rede social Facebook, quando fazia mudança de casa, que levava 700 livros impressos para ocupar um quarto inteiro, e 3.200 livros escaneados ou digitais, em um pen drive de 1cm x 3cm. “Negócio assustador”, exprimiu Cristiano. “Mas é fascinante ter milhares de livros em suportes minúsculos.”

Diante do protagonismo inexorável da tecnologia e da deficiência educacional no Brasil e noutras nações, o desafio posto envolve o acesso e as destrezas dos indivíduos aos recursos tecnológicos, como sustentou Beatriz Sarlo, escritora e crítica literária argentina, no seminário Fronteiras do pensamento, em Porto Alegre (cujo texto integra o livro de mesmo nome, publicado em 2010). A digitalização dos acervos pode ser um instrumento precioso nesse contexto, aproximando as pessoas do ambiente tecnológico, na medida em que alarga os horizontes do conhecimento.

HISTÓRIA VIRTUAL?
Na travessia que implica uma transição maior, de âmbito cultural, a digitalização total da história, como menciona Juremir Machado, e o apagamento de vestígios físicos em detrimento de um passado puramente virtual não assombram os que experimentam as vantagens do acesso à “página infinita”. Pedro Puntoni garante que essa questão é sem fundamento. “A digitalização dos acervos históricos e memoriais tem sido feita no sentido de auxiliar na preservação e na ampliação do acesso. Não há perspectiva de transformação dos acervos físicos em virtuais, mas na digitalização para a preservação dos acervos físicos. Não podemos perder a referência à materialidade dos registros do passado, que são a garantia da sua veracidade e da nossa relação com os homens que nos antecederam”, diz Puntoni.

O diretor da Biblioteca Brasiliana/USP admite, no entanto, o impacto da cultura digital, que vai aos poucos dominando a nossa relação com o mundo. “Hoje, por exemplo, a fotografia, o cinema e a música não podem ser imaginados fora destas tecnologias. O mesmo já vale para o livro. A relação que temos com o objeto livro, em papel, já não prescinde do universo digital, decisivo na sua preparação (tanto na escrita, como na diagramação) e produção”, lembra Pedro Puntoni. “Os acervos físicos são, contudo, indispensáveis para a construção de memória coletiva e para o trabalho dos historiadores. Tenho esperança de que as novas tecnologias e a ampliação do acesso, com a sua democratização, ajudem a fortalecer uma visão de necessária preservação dos bens culturais e memoriais brasileiros.”


O professor Pedro Puntoni acredita que as novas tecnologias e a ampliação do acesso fortalecerão a ideia de preservação dos bens culturais e memoriais brasileiros.
Foto: Divulgação

Sobre esse ponto não restam dúvidas, inclusive da parte daqueles que lidam com a internet como negócio diariamente. “Preservar a história, seja qual for o meio utilizado, é imprescindível. Até porque só existe o futuro porque houve o passado, e compreende-se melhor o futuro analisando-se o passado”, ratifica Bruno Queiroz, diretor-executivo da empresa Cartello.

Bruno indica, nesse aspecto, a experiência interessante do site www.archive.org, que guarda “flashes” de tudo que é publicado na internet, criando um arquivamento automático do que os usuários já viram na tela do computador (e, agora, dos celulares e dos tablets).

Vale recordar que a fotografia, ao passar da película para o meio digital, ampliou enormemente sua presença na vida cotidiana, cumpriu o trajeto tecnológico sem que muitos profissionais da área sentissem a vertigem própria dos caminhos sem volta. “Imagine que algum fotógrafo do Recife desejasse ter acesso às imagens da Primeira Guerra Mundial em um determinado acervo na França. Ele poderia voar até Paris para ‘ver e pegar’ nas fotos. Depois, sairia contando vantagem sobre o fato. Hoje, com os acervos disponíveis na internet, ele pode ter acesso ao mesmo material”, compara o fotógrafo Eudes Santana. “É muito importante que os processos históricos da fotografia sejam preservados, mas não quer dizer que eles precisem ficar intocáveis nas gavetas de institutos e museus”, defende Eudes.


O escritório do Google em Israel pretende jogar na internet 900 pergaminhos com 15 mil fragmentos dos Manuscritos do Mar Morto, datados dos anos 150 a.C. e 70 d.C.
Foto: Divulgação

Pergunto a ele como vê a fantástica quantidade de imagens disponíveis hoje, grande parte guardada em HDs, e que jamais será impressa. Eudes devolve: “E a fantástica quantidade de imagens já registradas em películas, grande parte guardada em arquivos de aço e gavetas, e que jamais será impressa? Não sejamos puritanos. Não é o processo de captação de imagem que vai tornar a vida menos ‘romântica’. Vim de uma escola de fotografia onde passei pelo processo de laboratório fotográfico e filmes em preto e branco. Entretanto, não podemos deixar de entender que o mundo está em constante evolução”.

PRESENTE
Nesse estado de mudança rápida, a sensação é de que o presente foi alongado. “Vivemos uma era de ‘presentização’. A história parece um caldo que mistura presente, passado e ficcionalização da realidade”, arrisca o escritor Wellington de Melo, lançando o alerta para que os acervos não se percam no ciberespaço como relíquias ou curiosidades a serem compartilhadas no Facebook. O empresário Bruno Queiroz traz um exemplo dessa ‘presentização’: um dia, flagrou a sobrinha, de 11 anos, conversando com a sua filha, dizendo que a música de abertura da novela das seis era de Maria Gadú. “Tive que interromper a conversa e explicar que a música Oração ao tempo era de Caetano Veloso, composta entre o final da década de 1970 e início da década de 1980. Nesse sentido, se as fontes de cultura digitalizadas não estiverem ao alcance da população, elas se perderão no meio de um mar de dados sem conexão”, diz Queiroz.

No caldo virtual, também se pode encontrar a marca de um processo em andamento, que não começou com a internet, afirma a escritora Carola Saavedra. “A virtualização da própria história e, de certa forma, da existência ‘real’ das coisas passa muito pelas mudanças ocorridas no século 20, um processo que continua. A base disso é o questionamento da ‘verdade’ ou de uma visão ampla e completa do mundo. A ‘realidade’ tornou-se mais complexa, multifacetada. Não que não fosse assim, mas havia a ideia de que através da ciência, ou do progresso, ou do estudo, seria possível chegar ao cerne das coisas, à sua origem. Hoje, o que temos são apenas versões, fragmentos, e a certeza de que se a origem existe, ela é inacessível, talvez até mesmo inexistente”, postula Saavedra, autora de Paisagem com dromedário. Para ela, a partir daí, a digitalização de acervos e a cultura digital se integram num cenário maior, em que “o tornar virtual serve como imagem (e por que não, metáfora) do nosso estar no mundo”.

E a metáfora se robustece no ser virtual. O escritório do Google em Israel coordena um projeto ambicioso: jogar na internet 900 pergaminhos com 15 mil fragmentos dos Manuscritos do Mar Morto, datados dos anos 150 a.C. e 70 d.C. Enquanto um milhão de pessoas foi ao Museu de Israel para ver de perto os documentos em 2010, a mesma quantidade de visitas foi recebida na web, para conferir os cinco únicos pergaminhos digitalizados – em quatro dias. Brevemente, pelo menos em sua face coletiva, a “paisagem contemplada de um comboio em movimento”, como José Eduardo Agualusa define a memória, terá que se deparar com um passado conservado à velocidade da luz. 

FÁBIO LUCAS, jornalista e mestre em Filosofia.

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