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Retorno do vinil expõe apego à materialidade

Em pesquisa para o doutorado em Sociologia na UFPE, Maria Trajano avalia que o apreço atual pelo LP leva aficionados à vivência do tempo que passa ao largo da corrente frenética de consumo atual

TEXTO Fábio Lucas

01 de Fevereiro de 2012

Mariana Trajano

Foto Ricardo Moura

[conteúdo vinculado à reportagem de "Tecnologia" | ed. 134 fevereiro 2012]

Símbolo da era pré-digital,
o disco de vinil resiste e ganha conotação cult, impondo aparente limite à gigantesca onda da virtualização que “desmaterializou” a música do LP. A produção e o consumo tardios do disco de vinil são o tema de pesquisa de doutorado em Sociologia de Mariana Trajano, cuja tese será defendida este mês na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A pesquisadora pretende estabelecer uma ordem à prática social verificada a partir do exame do LP como objeto. Foram entrevistadas 20 pessoas e, além da diferença para o ato de ouvir música em formato digital, ela procurou investigar a forma e os cuidados no manuseio do vinil. Dezenas de fotos de LPs no espaço doméstico e de novos aparelhos que leem discos, cartazes de festas, vitrines decoradas, vitrolas e capas foram anexadas ao estudo. Segundo Trajano, a experiência do tempo de quem curte o vinil revela um “tempo denso”, que serve de âncora diante da corrente frenética do consumo de música atual.

CONTINENTE Como surgiu o tema da pesquisa?
MARIANA TRAJANO Nasceu de um mal-estar em relação às perspectivas sociológicas clássicas acerca do papel dos objetos na sociabilidade humana e nas teorias do consumo.Tradicionalmente, os objetos figuram nas teorias sociais como elementos “simbólicos” ou instrumentais. Ou seja, os artefatos que nos circundam aparecem sempre ora como entidades que representam algum valor social, ora como instrumentos através dos quais podemos realizar nossos desejos e metas. Raras vezes os artefatos cotidianos são apreciados similarmente aos atores humanos, como entidades capazes de estabelecer a ordem dentro de uma prática social.

CONTINENTE O significado do vinil para as pessoas foi importante para o trabalho?
MARIANA TRAJANO A intenção foi justamente “virar o lado” da abordagem sociológica clássica. Claro que os significados estão presentes e são importantes, mas, na minha pesquisa, eles figuram principalmente como pistas da ação dos objetos.Interessa-me o modo como esse objeto estabelece formas específicas de se escutar e perceber o fenômeno musical através de sua forma física e de seu funcionamento. Queria perceber, entre os significados e valores que essas pessoas atribuem ao disco de vinil, os cursos de ação e de possibilidades perceptivas estabelecidas pela performance física dos LPs e da vitrola. Em outras palavras, como o fato de se poder ver a agulha no sulco, o tamanho do suporte, a “virada de lado” ou a impossibilidade do shuffle contribuem no modo como essas pessoas valorizam a música e o próprio vinil (o som do vinil é “gordo”; o vinil é “quente” em relação à frieza dos bits do CD; o vinil “encara você”; se você gosta mesmo de uma banda, você compra o vinil etc.).

CONTINENTE As diferenças são objetivas ou meramente subjetivas entre o som do LP e do digital?
MARIANA TRAJANO Além das entrevistas que fiz, li muitas reportagens sobre o vinil. Não apenas sobre a sua volta, mas muitas colunas de jornalistas e músicos em sites falando sobre essa querela entre o vinil e a música digitalizada. A maioria deles defende o som do LP como sendo superior ao do CD e, principalmente, ao do MP3. Esse é um tema muito controverso, pois toca em questões limítrofes, localizadas entre temas como as tecnologias de armazenagem e reprodução sonora, a psicoacústica e a memória social. O que podemos afirmar é que existe, sim, uma diferença entre o som do vinil e o da música digitalizada. Mas, essa diferença (esse som “aveludado” ou “redondo” do qual muitos falam) trata-se de uma referência sonora estabelecida pela própria mídia, que é fruto da compressão necessariamente exigida para se imprimir o som na fita magnética e no vinil, e também dos “barulhinhos” inevitáveis ou inerentes ao próprio sistema de captação e reprodução. Trata-se de algo subjetivo, mas que também mostra como aqueles materiais estabeleceram um referencial sonoro para algumas gerações.

CONTINENTE O reaparecimento ou a resistência do vinil deve-se a quê?
MARIANA TRAJANO Claro que você tem aí uma questão saudosista. Como muitas reflexões sociológicas tendem a perceber, também podemos atribuir essa resistência ou esse retorno do vinil à tecnofobia – um sentimento recorrente no processo de modernização do mundo – ou a uma tentativa de distinção social: em época do MP3, escutar disco de vinil se torna algo cult. Mas o que mais me chamou a atenção durante a pesquisa foi que o ritmo imposto pelo LP (não pela música) e pela vitrola às pessoas é algo que se destaca diante da enxurrada de MP3 que você escuta praticamente sem querer. Para ouvir um disco de vinil, eu tenho que parar, me concentrar para colocar a agulha sobre o disco, virar o lado. É um “tempo denso”, como denominei; um tempo que nos impede de realizar muitas tarefas paralelas, que nos exige mais do aparato sensorial. Um tempo que nos ancora diante da corrente frenética do consumo de música atual.

CONTINENTE Quais os traços que diferenciam o hábito de quem usa o vinil?
MARIANA TRAJANO São fatores como o manuseio da agulha, a visibilidade da agulha, do sulco e da própria faixa, o tamanho do vinil, que exigem um planejamento do espaço para seu armazenamento, o design das capas... Podem até ser encontrados sentimentos fetichistas nesse consumo, mas todas essas características físicas e performáticas do disco e da vitrola parecem favorecer uma maior introspecção no momento da fruição musical, quando você, de fato, para e dedica seu tempo e energia para aquele artista. E é isso que também faz com que o vinil permaneça vivo até hoje.

CONTINENTE A percepção da música através do aspecto físico pode ser tomada como um sintoma de que a virtualização da cultura tem seus limites?
MARIANA TRAJANO Sim. Veja bem: quando falamos que certos aparelhos e técnicas são “modernos”, geralmente queremos dizer que eles nos poupam tempo e energia. Ou seja, em alguma medida substituem algumas atividades corporais ou poupam nossos corpos e mentes. O desenvolvimento moderno das técnicas de inscrição e reprodução sonora também teve como ideal essa “economia corporal”, traduzida no aumento do acesso e da portabilidade (por exemplo: não preciso me deslocar até uma loja para comprar música; não tenho que carregar quilos nas mãos para ouvir músicas que cabem em alguns “gramas” de um iPod; não preciso me levantar para pular uma faixa ou para virar o lado de um disco). Mas essa negação do corpo, que também é resultado da negação do “corpo da música” (de um suporte, de uma embalagem, de uma aparência, de algo que eu possa consumir não apenas auditivamente), parece suspender a consciência que tenho da finitude das coisas e da minha própria finitude. Não sou uma estudiosa do “mundo virtual”, mas me parece que a virtualização se opõe ao fenômeno da escassez. E é justamente esse acesso escancarado, essa falta de “sofrimento corporal” ou de “desgaste emocional” que parece colocar limites à virtualização da cultura: o eterno deleite se transforma num tedioso regozijo, e fatalmente eu passarei a buscar coisas que terminam, que se acabam, que se perdem e que se quebram. Essa é a graça. 

FÁBIO LUCAS, jornalista e mestre em Filosofia.

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