Cobertura

Corpo mutilado, Estado conivente

Em Belo Horizonte, "Peixes" é o teatro como plataforma para expurgo de dores reais, um espetáculo como campo político para a convergência de histórias comuns à vida, muito além da ficção

TEXTO MATEUS ARAÚJO, DE BELO HORIZONTE*

17 de Setembro de 2018

Com direção e interpretação de Ana Regis, a peça discute as estratégias de silenciamento das mulheres

Com direção e interpretação de Ana Regis, a peça discute as estratégias de silenciamento das mulheres

FOTO Maíra Cabral/Divulgação

BELO HORIZONTE – Se nos campos político e social, o feminismo tem sido um disparador para desestabilização da estrutura opressora hegemônica, os ecos dessa consciência chegam à arte de maneira também transformadora. No teatro contemporâneo, a narrativa do feminino – e inúmeras questões implícitas nele – ocupa decisivamente a cena não apenas pelo lugar de fala no sentido do discurso, mas, ainda, pelo corpo.

É o caso de Peixes, apresentado no âmbito da Mostra Mineira do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte (FIT-BH), que se concentra sobre a violência contra mulher. O trabalho interpretado por Ana Regis conta a história de Cláudia, que esfaqueou o marido durante uma briga para se defender das agressões que sofria.

O espetáculo se passa na sala de atendimento médico de um manicômio judiciário, onde ficam presas as pessoas acometidas de doença mental e, por isso, inimputáveis. Em narrativa fragmentada, Cláudia desfia memórias espaçadas da vida, nas quais conta de um passado infeliz. Quando criança, foi abusada sexualmente pelo tio, enquanto tomavam banho em um açude – ela precisou escolher entre não se afogar ou ter a mão do homem na sua vagina (o homem dizia à menina que eram “peixes” querendo brincar – daí o título da peça). Adulta, casada, a personagem sofre inúmeras pressões psicológicas e passa por situações de violências verbal e física do seu parceiro, até o dia em que decide revidar e, assim, mata-o com três facadas.

Quando usado como plataforma para expurgo de dores reais, o teatro se transforma em campo político de convergência de histórias comuns à vida, fora da ficção. Nesse sentido, a peça de Ana Regis se utiliza da confissão para aproximar plateia e personagem. Há, desde sempre, uma empatia do público com Cláudia, uma mulher vítima da sociedade machista.

Apesar da densidade da temática política, o espetáculo incorre em apropriações mais imagéticas do campo psicológico. A cena é atravessada por símbolos comprometidos em dar conta das marcas daquela mulher, a exemplos dos peixes desenhados aos poucos no corpo pela própria atriz. Essa cena especificamente me faz lembrar de BR-Trans, do coletivo As Travestidas, no qual o ator Silvero Pereira escreve nos braços e pernas os nomes de transexuais e travestis que conheceu nas cadeias do Rio Grande do Sul e são retratadas no espetáculo dele.


"Claudia não é uma estatística, e sim uma consequência social" FOTO: Maíra Cabral/Divulgação

Também autora e diretora da montagem, Ana Regis cria uma representação infantilizada de sua personagem, parecendo relembrar o espectador, a todo instante, da criança roubada desta mulher. Inclusive a atriz convida um voluntário do público para ser interlocutor, sentado à mesa do consultório, durante a apresentação – opção fragilizante para a emoção de algumas cenas, uma vez que ali não se pressupõe diálogo.

Fora isso, a dramaturgia não explora, no entanto, as nuances sociais dessa personagem, e passa, por exemplo, ao largo de uma discussão mais incisiva: a do silenciamento do Estado diante de Cláudia, forjada na violência sobre seu corpo e vítima da institucionalização do machismo.

Peixes me faz pensar nos mecanismos de biopoder sobre as decisões e a liberdade feminina. Esse controle está por toda parte, como na criminalização do aborto, na insegurança nas ruas e em casa, nas desigualdades no ambiente de trabalho, na sexualidade reprimida. "Cláudia não é uma estatística. Cláudia é uma consequência social", diz a sinopse da peça. Assim, o Estado decide quem deve morrer e quem deve viver na sociedade – e cabe aqui lembrar que há muitos de nós vivendo mortos, apagados e excluídos socialmente.

No caso deste espetáculo, está em jogo também o aparelhamento das estruturas judiciárias nessa violência contra a mulher. Nas palavras da Pastoral Carcerária: “Nos cárceres femininos, (...) as violações de direitos multiplicam-se: péssimo atendimento à saúde das gestantes, lactantes e mães; separação abrupta das mães e seus/suas filhos/as, incluindo adoções à revelia; falta de notícias dos/as filhos/as; ausência de materiais de uso pessoal e de roupas íntimas; restrições, quando não raro a impossibilidade, para viver a identidade afetiva, psicológica e física; pouquíssimas visitas, vivendo um verdadeiro abandono da família e da comunidade”.

Curioso pensar que Cláudia confessa seu passado para um psiquiatra dentro de um hospital-prisão criado e mantido pelo Estado. Uma estrutura que cuida de Cláudia somente depois de ela ter passado por toda mutilação histórica; uma estrutura que, no final das contas, chama Cláudia de "louca".


MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador, crítico de teatro e mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.


* O jornalista viajou a convite da organização do FIT-BH.

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