Cobertura

"'Curral' é uma ilustração, em escala menor, do jogo político"

Conversamos com Marcelo Brennand, diretor do único longa pernambucano na programação da Mostra de São Paulo, que narra, em ficção, uma eleição municipal no interior

TEXTO Luciana Veras

29 de Outubro de 2020

O diretor Marcelo Brennand durante as filmagens de 'Curral'

O diretor Marcelo Brennand durante as filmagens de 'Curral'

Foto Daniela Nader/Still/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Quando a Continente visitou o set de Curral (Brasil, 2020), o único longa-metragem pernambucano na programação da 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, era o último dia de filmagens em Gravatá, no agreste pernambucano. Animado com a perspectiva de encerrar a rodagem, o diretor Marcelo Brennand comentava sobre o que motivou seu retorno, agora sob as tintas ficcionais, para o universo da micropolítica em uma eleição municipal – seu primeiro filme, o documentário Porta a porta, era uma investigação sobre as relações entre candidatos a vereador e seus cabos eleitorais. “Entendi que precisava ir para a ficção, pois teria a liberdade para aprofundar essas dinâmicas que havia encontrado no documentário, só que agora com mais densidade e por outros ângulos”, nos explicou.

Produção da Zéfiro Filmes em parceria com a Querosene Filmes, com as pernambucanas Bárbaros Produções e Jaraguá Produções no rol de produtoras associadas, Curral é testemunho do que Marcelo disse naquele já longínquo novembro de 2018. No enredo, os amigos de infância Joel (Rodrigo Garcia, o Paulete de Tatuagem) e Chico Caixa (Thomás Aquino, que faz Pacote em Bacurau) passam a trabalhar juntos quando o primeiro se lança candidato a vereador na cidade que se projeta como a Suíça Pernambucana. Chico, que trabalha com abastecimento de água na zona rural do município, passa a ser uma espécie de “fiel da balança” para Joel conseguir penetrar em redutos eleitorais, em um cotejo e confronto de interesses que há de gerar tensão e questionamento.

O jogo das alianças, a falta d’água, o vínculo que se forja entre Joel e Caixa justamente para se angariar um maior capital político (ou seja, votos), as práticas anacrônicas inerentes às campanhas no Brasil e as tensões intrínsecas entre o que se vende como “nova política”, personificado na figura de Joel (impossível não se lembrar de candidatos das últimas eleições presidenciais, ou mesmo dos pleitos municipais de agora) e aquela postura de caciques da “velha política”, representada em Vitorino (José Dumont), o atual prefeito que busca a reeleição – tudo isso é combustível que turbina a narrativa de Curral, bastante apropriada para os tempos atuais.

Por telefone, conversamos sobre o filme com Marcelo Brennand. Curral pode ser visto na Mostra Play até o próximo dia 5. “Da Mostra, o filme vai para um festival na Espanha e espero que rode por alguns outros festivais, mesmo que de forma híbrida, online, antes de pensarmos em estrear, o que acredito que só vá acontecer no primeiro semestre de 2021. Essa experiência da Mostra é super nova e é como se o filme estivesse no streaming: as pessoas já estão assistindo e nos dando um feedback”, conta.


Still do filme. Foto: Daniela Nader/Divulgação

CONTINENTE Curral está sendo exibido pela primeira vez na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Se a pandemia não tivesse ocorrido, imagino que o filme já estaria circulando há mais tempo. Como foi o percurso para finalização neste 2020 pandêmico?
MARCELO BRENNAND Cerca de 80% da finalização se deu em março e a gente estava dando continuidade para lançar no cinema neste ano, mas aí começou a pandemia e tudo parou. Quando as coisas começaram a voltar a um “normal”, surgiu a oportunidade de aparecer na Mostra e retomamos a finalização. Curral ficou pronto em agosto. A gente estava se programando para finalizar no PortoMídia, no Recife, até porque toda a equipe do som é do Recife. Mas isso era ainda com o cronograma de lançar nos cinemas. Quando fechou tudo, tivemos que esperar e trazer a finalização para São Paulo.

CONTINENTE O filme foi rodado em 2018 e pensado para ser lançado nos cinemas antes, claro, da pandemia. Muito aconteceu no Brasil nesse período e agora a estreia, na 44a Mostra de São Paulo, surge muito próxima das eleições municipais. Isso repercutiu de alguma forma no resultado final? Você mexeu na montagem?
MARCELO BRENNAND Não. Não mexi em nada. O que acontece é que o filme vai se tornando cada vez mais atual. Em relação ao roteiro... Veja a nossa situação desde o início: filmamos em 2018, então o roteiro ficou pronto no começo daquele ano. Não tínhamos como saber tudo isso que aconteceria hoje. Acredito também que, quando a história nasce, já não tomo mais conta dela. O roteiro foi mudando, sim, nas filmagens, pois cinema é coletivo e os atores agregaram muito. Apesar de todo mundo ter uma função específica, no final todo mundo é um pouco cineasta. E havia muita gente com mais bagagem no set e de filmagem do que eu, então buscava dividir tudo. Mas, de fato, não teve nenhuma mudança no filme, nenhum corte para que ficasse com similaridade maior o que estamos hoje.

CONTINENTE Mas o enredo já traz muitos elementos semelhantes ao que estamos vivendo, principalmente porque estamos em ano eleitoral e as eleições serão justamente municipais.
MARCELO BRENNAND Curral é uma ilustração, em escala menor, do jogo político que acontece em qualquer lugar do mundo. Quando a carência leva as pessoas a negociarem seus direitos, a abrir mão dos seus ideais e perspectivas de mundo, acontece o que vemos no filme e no nosso cotidiano. Acredito que o debate dos protagonistas do filme é universal, não apenas do lugar ou da cultura a que pertencemos. Mas no Brasil tudo isso acontece numa proporção maior. 

CONTINENTE Em uma das sequências do filme, quando Joel e Chico Caixa vão até um assentamento, me chamou a atenção a participação da uma senhora bem combativa. Fiquei curiosa para saber quem era aquela atriz e, ao indagar a Anna Luiza Müller, que faz a assessoria de Curral, ela me respondeu que o nome dela era Gisleine e que, na verdade, não era atriz, e sim moradora do local. Como foi a experiência de incluir moradoras como ela em cena?
MARCELO BRENNAND O filme se passa em Gravatá e eu escolhi filmar em Gravatá mesmo. Queria que Curral tivesse uma narrativa com estética documental e que o elenco tivesse conhecimento do filme não só através do roteiro, mas com os personagens reais que iriam interpretar, com aquelas pessoas que vivem a realidade ficcionalizada no filme. Então, existia uma troca entre os atores e os não-atores, como se um desse o tom para o outro. Aliás, preciso falar do trabalho espetacular de Renê Guerra na preparação do elenco. Acho que o trabalho dele foi uma extensão da direção e conseguiu imprimir o que eu gostaria, que era trazer essa pegada documental.

CONTINENTE Mas como era essa química no set? Você ensaiava muito com o elenco e com os moradores que contracenavam?
MARCELO BRENNAND Não, era praticamente não ensaiado. Eles foram super espontâneos e naturais e reagiram muito bem. Na cena em que Gisleine aparece, por exemplo, ela e outros moradores vieram com força e eu fiquei preocupado em seguir o roteiro do filme, em não perder a linha narrativa, mas quando percebi a energia daquelas pessoas, a naturalidade com que faziam seus questionamentos, disse a Beto (Martins, o diretor de fotografia): “Vamo focar neles e trazer esse realismo para o filme”. Nada daquilo foi ensaiado, o que, para mim, só mostra a qualidade do trabalho de Renê. É como ele mesmo costuma dizer: a preparação do elenco foi não ter preparação. E me impressionei ali com cada pessoa que não se intimidou com a câmera e com o elenco, que seguiu em frente com o roteiro.

CONTINENTE Os personagens de Joel e Chico são amigos de longa data, e é essa amizade que os leva a trabalhar juntos na campanha de vereador do primeiro. Mas, durante esse processo de imersão na política, se percebem as contradições dos dois e a complexidade daquela relação. É interessante que Curral não idealiza nada. Não tem nenhum inocente.  
MARCELO BRENNAND Os personagens, assim como a própria cidade, são contraditórios. Você vê que em Gravatá existe uma zona rural, onde falta água, mas a cidade é também chamada de Suíça pernambucana. Tudo é muito contraditório porque os personagens e a cidade vivem em contradição. Curral é um filme com um olhar humano para a política, não é um filme político em si. Para me inspirar para fazê-lo, assisti a muitas falas de políticos e percebi como os valores morais dos candidatos eram ressaltados nas entrelinhas. Eles viravam personagens em cena. Acredito que a política deveria privilegiar o senso comum em torno das ideias e dos ideais transformadores, mas no Brasil a campanha termina sendo predominantemente em todo da moral da pessoa, dos dilemas e paradoxos daquele candidato. Curral retrata bem esse aspecto, na minha opinião, e é um drama pessoal e essencialmente humano.


Cena com Chico Caixa (Thomás Aquino) e o candidato Joel (Rodrigo Garcia).
Foto: Daniela Nader/Divulgação


CONTINENTE Ainda sobre a relação entre os personagens de Rodrigo Garcia e Thomás Aquino, à medida que Chico Caixa vai se envolvendo no jogo político, também vemos como os recortes de classe e raça se aplicam à amizade deles, como, aliás, em todo o Brasil.
MARCELO BRENNAND Sim, você vai descobrindo novas tensões entre eles. A ideia inicial era que os personagens são o que são. Vivem o seu paradoxo e eu não nego aquela realidade. Aliás, como diretor, não protejo Joel nem Caixa. Joel, quando sai do palanque depois de fazer um discurso carismático, tem uma postura machista, preconceituosa e homofóbica. Caixa vai entrando na política e agindo conforme as circunstâncias. É paradoxal: até que ponto é certo fazer o errado? Caixa é um homem que tem uma relação de subjetividade com a água, é sensível, mas, ao mesmo tempo, representa uma estrutura patriarcal.

CONTINENTE Curral tem um desfecho que percebo como aberto, como se não importasse muito o resultado eleitoral, e sim a travessia daquelas pessoas. Quando o filme termina, tudo pode ter acontecido com os personagens.
MARCELO BRENNAND Tem uma frase de Amos Gitai em que ele diz que é quando se acende a luz do cinema, que começa a reflexão. Acredito que é por aí, sim. O filme aborda a cultura política brasileira com uma visão antropológica e simbolismo forte entre os personagens. Mariana, a personagem de Carla Salle, tem uma relação afetiva com a terra, com raízes indígenas, e Joel é um outsider da política, que se diz um representante da nova política, enquanto Chico Caixa é negro e está esmagado por esses dois universos. E são pessoas contraditórias como a própria cidade em que elas vivem e como o nosso país.

LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.


EXTRA
Onde ver: mostraplay.mostra.org
Todas as infos: 44.mostra.org
Preço do ingresso: R$ 6

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