Cobertura

"A vida invisível", enfim, no Brasil

Na abertura do 29º Cine Ceará, premiado filme de Karim Aïnouz tem sua primeira exibição no país, em noite de homenagem ao diretor com a presença da atriz Fernanda Montenegro

TEXTO LUCIANA VERAS, DE FORTALEZA*

31 de Agosto de 2019

Intérprete e homenageado bailam no mais antigo cinema de Fortaleza

Intérprete e homenageado bailam no mais antigo cinema de Fortaleza

FOTO Celso Oliveira/Cine Ceará/Divulgação

Era a noite de abertura da 29ª edição do Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema e nela havia elementos ideais para uma equação com potencial de alta combustão: primeira exibição no Brasil de A vida invisível, filme de Karim Aïnouz que recebeu o prêmio máximo da mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes; uma homenagem que o festival prestaria ao realizador, cearense de raízes argelinas radicado em Berlim, mas vinculado profissional e afetivamente à Fortaleza; uma fila enorme na Praça do Ferreira, onde fica o Cinema São Luiz, a sala histórica de mais de meio século de existência que abriga as sessões do festival; a presença de autoridades como o governador Camilo Santana e o ex-governador Ciro Gomes e de professores universitários em protesto pela autonomia da Universidade Federal do Ceará; e por último, de supetão, a chegada do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, levando a plateia a entoar, em uníssono, o grito por Lula livre.

Porém, mesmo balanceando essas variáveis para almejar um equilíbrio químico, tanto no cinema como na vida se sabe que sempre há algo a (nos) escapar. E esse "algo" foi constituído ontem pela altivez de uma senhora de quase 90 anos, escalada para formalizar a Karim o tributo planejado pelo Cine Ceará. Claro que não era uma senhora qualquer: das maiores, a maior?, atrizes brasileiras, vencedora do Urso de Prata na Berlinale e indicada ao Oscar de melhor atriz por Central do Brasil (1998), senhora absoluta de teledramaturgia, palco e tela e intérprete da Eurídice na fase crepuscular em A vida invisível, Fernanda Montenegro foi chamada ao palco para entregar a homenagem.  

Sua entrada em cena foi mais ovacionada do que a aparição surpresa de Haddad, do que os discursos em prol da resistência contra o desmonte da cultura em curso no país. O público que lotava o São Luiz nesta sexta (30), penúltimo dia do mês de agosto, ainda não tinha visto o magnetismo de Fernanda em cena, posto que toda a cerimônia transcorreu antes da sessão de A vida invisível, mas já se deixava levar pela força que dela emana. "O Brasil vai dar certo", disse a veterana intérprete, acolhida por aplausos, arroubos, lágrimas até. "É na arte que o Brasil vai dar certo", emendou, antes de contar como recebeu, através de uma carta escrita pelo cineasta, o roteiro e o convite para rodar o filme. "Já tinha visto O céu de Suely, Praia do Futuro, olhava e dizia, 'Meu Deus, esse diretor', e um dia recebo uma carta."

Generosa que é, Fernanda não apenas serviu de vetor para que Karim fosse homenageado como também deu as mãos ao elenco de A vida invisível para ensinar como se sai do palco: tão logo terminaram os 139 minutos de projeção (e já era perto de meia-noite, mas a plateia permanecera, decerto hipnotizada pelo arrebatador melodrama tropical desenhado por Karim a partir do romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, da escritora pernambucana Martha Batalha), ela, o diretor, as atrizes Carol Duarte e Julia Stockler, o ator Flávio Bauraqui e outras integrantes da equipe saudaram as mais de mil pessoas presentes. "É na arte que o Brasil dá certo", ela já havia vaticinado. 

Equipe de A vida invisível no palco do São Luiz.
Foto: Chico Gadelha/Divulgação

E já que Fernanda Montenegro deu a deixa para se falar da arte, vale ressaltar que Karim Aïnouz, nome por trás de Madame Satã (2002) e Aeroporto Central THF (2018), sempre colocou o fazer e o pensamento artístico como "instrumentos de luta política", como pontuou em entrevista publicada na Continente de setembro/2018. Ontem, ao apresentar seu mais recente longa-metragem, depois de ratificar a importância de defender a universidade pública e gratuita no Ceará e no Brasil, resumiu: "O que mais me interessa é a potência que o filme tem para falar das histórais que quero contar, que emocionem e possam transformar alguma coisa. Mas também acho importante dar visibilidade ao nosso cinema, que é diverso, potente e conta várias histórias. É preciso sair em defesa da Agência Nacional do Cinema, que virou alvo de obscurantismo. Um país que não protege sua cultura é um país sem nome e sem história".

(Detalhe curioso: horas antes da abertura do 29º Cine Ceará, Christian de Castro, presidente da Agência Nacional de Cinema - Ancine, havia sido demitido. Ele estava em Fortaleza, fora visto no mesmo hotel onde as entrevistas coletivas são realizadas, mas não foi ao São Luiz, onde por sua vez estavam dois candidatos derrotados nas últimas eleições presidenciais. O que será da Ancine? O que se sabe, como Karim pontuou, é que é imperativo defendê-la e salvaguardar a política pública de investimento, descentralização e democratização do acesso instituída pela agência).

De volta à exibição de A vida invisível, o diretor exaltou mulheres que lhe foram e/ou são essenciais: sua mãe Iracema, a escritora Carolina de Jesus, a própria Madame Satã que lhe serviu de base para seu primeiro longa ficcional, Linn da Quebrada, Carmen Santos, Preta Ferreira e criaturas da ficção como a personagem Macabéa, criada por Clarice Lispector em A hora da estrela (1977) e transformada em filme na pela de Marcélia Cartaxo pelas mãos da diretora Suzana Amaral em 1985. Interessante a lembrança a essa criatura lispectoriana porque há algo da literatura de Clarice nas personagens Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), as irmãs que servem de esteio e combustível no longa que o Brasil conheceu na noite de ontem. Elas são frutos de uma época em que às mulheres pouca coisa, ou nada, era permitido a não ser seguir uma cartografia imposta pela estrutura patriarcal. 

A vida invisível é a expressão, sob a chave do "melodrama tropical" criado pelo diretor, da vontade de Karim Aïnouz de falar sobre mulheres como sua mãe ou sua tia, invisibilizadas ou silenciadas porque, na época em que vivem, a sociedade não lhes outorga um papel diferente da tríade esposa-mãe-dona de casa. Eurídice e Guida, filhas de imigrantes portugueses, adolescentes no Rio de Janeiro dos anos 1940, assistem ao corte do cordão umbilical que as une quando Guida, mais afoita, decide fugir de casa para seguir um namorado estrangeiro, enquanto Eurídice, mais contida, assume o script de casar com Antenor (Gregório Duvivier). Quando irão se reencontrar?

Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) em cena.
Foto: Bruno Machado/Divulgação

Em entrevista à Continente, as duas jovens atrizes falaram da intensidade do processo de composição das duas personagens (a diretora-assistente Nina Kopko revelou, na coletiva da manhã deste sábado, que a etapa de escolha do elenco abrangeu uma triagem entre mais de dois mil vídeos recebidos). "A Guida tem uma explosão que o Karim percebeu em mim, que eu trago, e a gente foi percebendo essas explosões. É muito forte, é uma coisa que está muito latente. A sensorialidade que fica... a Guida está mim na maneira como ela tive que olhar para aquele mundo", sorria Julia Stockler. 

"A primeira vez que vi o filme em Cannes, quando vi de fato a Eurídice projetada, e eu ainda não tinha visto nada, foi muito assustadora. Meu encontro com a Eurídice, não sei explicar até que ponto a gente converge. Quando fiz o teste e recebi a notícia de que ia fazer, eu não sabia nada, absolutamente nada do filme. A gente não se conhecia, eu e a Julia, e era muito importante que a gente tivesse uma conexão muito profunda. Eu sentia o cheiro da Júlia, eu sabia o perfume da Júlia, era um processo de set muito profundo, que trouxe muito instinto e muita inspiração. Era tudo mais à flor da pele. Minhas referêncais eram Clarice Lispector, a gente lia muito no set. E lá no set, ninguém me chamava de Carol: era a Eurídice", contou Carol Duarte. 

A vida invisível tem distribuição conjunta da Vitrine Filmes (a mesma de Bacurau, dos realizadores pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que somente nas rodadas de pré-estreias já tinha amealhado mais de 18 mil pagantes) e da Sony Pictures. Para atender aos critérios do Oscar, entrará em cartaz no dia 19 de setembro em algumas capitais do Nordeste (as praças ainda serão confirmadas, segundo a RT Features, produtora do longa, mas Fortaleza será uma delas - Recife a confirmar), no entanto a sua estreia no circuito ampliado se dará apenas em 31 de outubro. 

Dois meses, portanto, hão de separar esta memorável, antológica e politizada primeira exibição pública em Fortaleza da chegada do melodrama tropical de DNA híbrido às salas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Até lá, é provável que o horizonte político e cultural do país siga em turbulência, outros manifestos de resistência pela educação decerto se farão ecoar, mas o bom é que o fantasma da relação entre Eurídice e Guida estará a atravessar o cotidiano de quem passou pela sortuda e sublime experiência de conhecê-las em A vida invisivel

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.

* A repórter viajou a convite da organização do festival.

Publicidade

veja também

Dos desvios, rotas e outros ciclos

Passado, presente e futuro em colisão no Cine Ceará