Tradução

Uma carta para Jane Austen

Em seu livro 'Letters to dead authors' (Cartas a autores mortos), de 1886, o escocês Andrew Lang aponta a riqueza dos romances da autora inglesa

TEXTO Lucas Colombo

03 de Julho de 2023

Imagem A MEMOIR OF JANE AUSTEN, 1870/REPRODUÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]

Assine a Continente

O nome da inglesa Jane Austen (1775-1817) é presença constante nas (banais, mas que sempre fazem pensar) listas de escritores cujos trabalhos só foram de todo reconhecidos décadas, ou mesmo séculos, depois da morte – listas nas quais se incluem também o tcheco Franz Kafka (1883-1924), a norte-americana Emily Dickinson (1830-1886) e o brasileiro Lima Barreto (1881-1922), para lembrar só três.

Nascida em Steventon, vilarejo do sul da Inglaterra, filha de um pastor anglicano, Austen teve existência pacata e modesta e, numa época em que as mulheres detinham pouco poder decisório e mínima influência cultural, publicou os hoje clássicos Razão e sensibilidade e Orgulho e preconceito, respectivamente em 1811 e 1813, sob pseudônimo e após algumas recusas (ah, as indefectíveis recusas) das editoras. Obteve com eles um êxito apenas razoável. Divulgou ainda Mansfield Park (1814) e Emma (1815), romances que, se não chegaram a ser ignorados, também não lhe permitiram conhecer algo próximo ao que hoje chamamos de “prestígio”.

Pesou contra Austen, além disso, justamente uma característica que a faria, muito tempo depois, enfim ser celebrada como a grande escritora que é: suas personagens não são heroicas, nem trágicas, nem exatamente bonitas; são gente “comum”, mulheres provincianas de classe média envolvidas com questões cotidianas e familiares, personalidades contraditórias como as de todos nós, retratadas com humor fino e investigação psicológica. E esses traços aproximam Austen muito mais da literatura modernista do século XX – período em que ela, também por isso, foi “redescoberta” e passou a ser amplamente lida – do que da literatura romântica que predominava naquela primeira metade do século XIX.

Houve, porém, quem percebesse, ainda naqueles anos 1800, a riqueza latente dos romances da autora e imaginasse que ela, um dia, seria mais festejada do que fora até então. Foi o caso do escritor escocês Andrew Lang (1844–1912), conhecido pela série de Livros das fadas, compilações de contos de fadas e histórias de tradição oral adaptadas para o público infantil. Também crítico literário prolífico, Lang escrevia artigos de imprensa que, segundo relatos biográficos, eram recebidos com respeito, temor e risos, pela contundência e pelo tom ácido e espirituoso. Mas ele, é claro, igualmente sabia ser elogioso quando deveria, e é isso que se vê no livro Letters to dead authors (Cartas a autores mortos), de 1886, reunião de textos nos quais exprime admiração por escritores como Homero, Percy Shelley, Poe... e Austen.


Emma Thompson e Kate Winslet em adaptação para o cinema de Razão e sensibilidade (1995). Imagem: Reprodução

Naquela que é a oitava das 22 “cartas” contidas no livro, Lang busca “atualizar” Austen, quase 70 anos depois da morte dela, quanto à recepção da obra. Lamenta que ela não seja apreciada naquele final do século XIX, tempo de narrativas que ambicionavam ser grandes painéis históricos, carregadas de personagens intrépidas. Cita trechos de Orgulho e preconceito, Mansfield Park e do póstumo Persuasão (1818), lança mão de palavras frequentes nos diálogos austenianos – ‘tis, por exemplo, que é contração de it is – e ironiza a parcela do público que a considerava uma escritora “água com açúcar”. Não poderia mesmo deixar de empregar a ironia, o recurso preferido de Austen para se referir aos casamentos arranjados e às hipocrisias sociais que ela representava nos romances. A homenagem foi completa.

É impossível, neste século XXI, não ler a “carta” de Lang sem pensar no óbvio: conforme ele queria, o tempo fez justiça à obra de Austen, hoje uma das mais adaptadas para cinema e TV – o líder dos serviços de streaming tem várias dessas produções no catálogo, entre elas Persuasão, lançada em 2022 – e continuamente editada. A seguir, a íntegra do texto.

Para Jane Austen.

Prezada Senhora,

Se, à sua circunstância atual, faltar aos momentos de diversão uma perspectiva das pequenas debilidades e fraquezas dos homens, não posso deixar de conjecturar (fossem as conjecturas permitidas) que os seus prazeres ainda estão incompletos. Além disso, é certo que uma mulher de talento que já se envolveu com literatura jamais perderá totalmente a paixão pelas discussões a respeito desse tópico saboroso, nem perderá o apreço por aquilo que (no falar desta nova época) se denomina “mundo literário”. Por tais motivos, tento transmitir-lhe algumas vagas noções do estado atual dessa arte tão agradável, que a senhora elevou ao nível mais alto de perfeição.

Em relação à sua obra (imortal, acredito eu), tenho pouco de realmente animador para dizer a alguém que, entre as mulheres de letras, esteve quase solitária em seu distanciamento de vaidades literárias. A senhora não é uma escritora muito popular: seus livros não são vistos com capas chamativas nas livrarias; ou, se vistos, não são folheados com avidez pelas Emmas e Catherines (personagem de A Abadia de Northanger, 1818) da geração atual. Não faz muito que um golpe (na avaliação dos insensatos) foi desferido na sua imagem como autora, com a publicação das suas cartas à família. O editor dessas epístolas, infelizmente, não manteve muitas das suas observações espirituosas e adicionou outras que são inconfundivelmente dele mesmo. Enquanto os leitores mais apressados expuseram decepção pela ausência do seu estilo requintado e do seu humor fino, os parcimoniosos convenceram-se ainda mais da sua sagacidade. Nas cartas (conhecendo seus correspondentes), a senhora comenta pouco das coisas de momento, para eles o bastante; já para os seus livros a senhora reservou assuntos e palavras que são imperecíveis. Entre seus admiradores, ainda que não numerosos, incluem-se todas as pessoas de bom gosto, as quais, para seu benefício, tendem a anular um tanto dos preceitos ou livrar-se dos hábitos que comumente as limitam a fazer elogios apenas moderados.

É defeito de toda arte parecer antiquada e desbotada aos olhos da geração seguinte. Os modos da sua época não eram os de hoje, e os jovens senhores e senhoras que consideram (Walter) Scott “monótono” também consideram Austen “afetada” e “aborrecida”. Mesmo, no entanto, que a senhora pudesse voltar a andar entre nós, eu descreio fortemente que, falando a linguagem da hora, como poderia, e conhecendo os novos hábitos, a senhora ganharia a admiração geral. Pois quão pacatas, senhora, são as suas personagens, especialmente as suas heroínas favoritas! Quão módica é a vida que conheceu e descreveu! Quão circunscrito é o alcance dos seus incidentes! Quão correta é a sua gramática!

Para heroínas, por exemplo, a senhora escolheu damas feito Emma, Elizabeth e Catherine: mulheres que não se distinguem pelo esplendor, nem pela penúria, em que nasceram; mulheres envolvidas com suas próprias preocupações e com preocupações paroquiais, desconhecedoras do mal, ao que parece, e alheias a desejos vãos e a dilemas interessantes. Que leitor pode empenhar a imaginação nos casamentos arranjados e nos caminhos percorridos pelos afetos dessas personagens, quando tantas heroínas ousadas e deslumbrantes aproximam-se e solicitam a sua consideração?


Matthew Macfadyen e Keira Knigthley em cena do filme Orgulho e preconceito (2005). Imagem: reprodução

Falamos, aqui, de princesas vestidas em veludo branco estampado com flores-de-lis douradas – senhoras de corações gelados e lábios fogosos, que contam seus rublos (moeda russa; Lang estava, possivelmente, referindo-se ao romance Anna Karenina, de Tolstói) aos milhões; seus amantes, às dezenas, e mesmo seus maridos, muito frequentemente, com números de fartos algarismos. Ao lado delas, estão as filhas imaculadas de músicos italianos viajantes – donzelas cujas almas permanecem imunes à contaminação das ruas e cuja familiaridade com a arte de Fídias e Praxiteles, de Dédalo e Escopas de Paros, é mais admirável, pois totalmente derivada do dedicado estudo de livros baratos vendidos por um sujeito qualquer na esquina. Quando tais heroínas são cortejadas pelos sobrinhos dos duques, onde estão as suas Emmas e Elizabeths? Seus livros não despertam, nem satisfazem as curiosidades suscitadas por essa ficção moderna e científica, que é enormemente apreciada, eu soube, nos Estados Unidos, bem como na França e aqui.

A senhora errou, e isso é inegável, com total ciência do que estava a fazer. Conhecendo Lydia e Kitty tão intimamente como conhecia, por que fez delas personagens quase irrelevantes? Fosse Lydia a sua heroína, a senhora poderia ter ido muito mais longe; tivesse dedicado três volumes, além de fatia maior de seu tempo, às paixões de Kitty, e a senhora teria se mantido, ainda hoje, nas estantes dos leitores país afora. De que maneira Lyddy, encarapitada num canto do telhado, avistou pela primeira vez o seu Wickham; de que maneira, em desafio à moça, ele subiu por uma escada ao lado; como eles se beijaram, trocaram carícias, abriram e fecharam vários portões, encontraram-se em ocasiões e lugares dos mais estranhos, e enfim fugiram: tudo isso deveria ter sido colocado na boca de uma irmã mais velha e ciumenta, Elizabeth, por exemplo, e assim a senhora não seria, atualmente, menos popular do que muitos autores favoritos do público. Tivesse ambientado toda a narrativa no tempo presente e se demorado na descrição da espessura das pernas de Mary, na maciez das bochechas de Kitty e na delicadeza loura dos bigodes de Wickham, e a senhora teria legado um romance ainda estimado pelas jovens damas.

Ou, de novo, a senhora talvez ainda arrebatasse muitos e íntegros estudiosos, caso tivesse concentrado a sua atenção na Sra. Rushworth, que fugiu com Henry Crawford. Tais deveriam ter sido os protagonistas de Mansfield Park. A senhora, entretanto, timidamente se recusa a enfrentar a Paixão. “Deixemos que outras penas”, a senhora escreve, “se detenham na culpa e na miséria. Eu abandono esses tópicos odiosos tão depressa quanto posso” (na tradução de Rodrigo Breunig para Mansfield Park, ed. L&PM, 2013). Ah, eis aqui a razão do seu malogro! Devo ir além e observar que o plebeísmo e a pequenez dos círculos sociais que a senhora descreve não contribuem para a sua popularidade? Mal consigo recordar-me de alguma personagem que carregue título de nobreza, e lembro-me de muito poucos lordes (todos desimportantes) presentes nas suas histórias. Nestes tempos, em que todos nós desejamos frequentar a sociedade, demanda-se que os romances contenham um sem-número de nobres, de qualquer importância, e assim obtêm-se lordes (e lordes bastante esquisitos) mesmo da parte de autores republicanos, nascidos num país que, na época da senhora, não era reconhecido pela qualidade da literatura. Eu ouvi um comentário crítico, expresso com inegável elegância (o original, “with a decided air of fashion”, é uma referência de Lang à frase “His sisters were fine women, with an air of decided fashion”, do capítulo 3 de Orgulho e Preconceito), a propósito da brevidade dos bilhetes que as suas personagens remetem umas às outras quando fazem convites para jantar, “Um convite para jantar amanhã foi expedido”, e isso demonstra que as pessoas ao seu redor “saíam” muito pouco e não dispunham de muitos compromissos. Quão simplória, também, é uma de suas heroínas, que ordena ao sr. Darcy que “Poupe seu fôlego para esfriar o mingau” (na tradução de Celina Portocarrero para Orgulho e Preconceito, ed. L&PM, 2010). Enrubesço-me por Elizabeth! É desnecessário salientar que as suas personagens são depreciadas por serem, invariavelmente, meras integrantes da Igreja Anglicana conforme estabelecido por lei. Pelo dissidente entusiasmado, pelo espírito livre que flutua do Budismo Esotérico ao Exército da Salvação e do Panteísmo Superior ao Paganismo Superior, procuramos inutilmente em meio aos seus estudos de personagem. E não só isso: as palavras mesmas que emprego aqui soam-lhe desconhecidas; portanto, como pode a senhora ajudar-nos hoje no trato com as dores da alma?


Dakota Johnson interpreta Anne Elliot no longa Persuasão (2022). Imagem: reprodução

A senhora pode dizer que as dores da alma não lhe interessam, provando com isso que, deveras, tem concepção muito pequena das atribuições de um romancista. Lembro-me somente de uma referência, em todos os seus livros, à controvérsia que ocupa o centro das nossas atenções – a grande controvérsia sobre Criação e Evolução. A sua Jane Bennet afirma: “não tenho certeza de que exista tanta premeditação no mundo como acreditam algumas pessoas” (idem). A senhora também não aborda a nossa questão social mais forte, a Lei de Terras, salvo quando a Sra. Bennet aparece como defensora da reforma agrária e protesta com veemência contra a crueldade “de se tirar a herança de uma família de cinco filhas em prol de um homem com quem ninguém se importava” (ibidem). Aí, nessa ação cruelmente injusta, que matéria-prima a senhora tinha para um romance ideológico. E mais, a senhora permite a Kitty contar que um soldado foi açoitado, sem incluir um capítulo sobre açoitamentos no exército. A senhora formalmente recusava-se a estender as cenas, aqui e ali, com “tolices solenes e capciosas sobre algo sem relação com a história.” Com a senhorita Austen não há “lenga-lenga”! Na verdade, visto que nasceu antes da Crítica Literária surgir, ou do Romantismo, ou do Realismo, ou do Naturalismo, ou da Irreverência, ou da Liberalidade Religiosa, a senhora não pode realmente esperar equiparar-se a suas colegas literatas nos gostos de uma geração confusa. Suas heroínas não são passionais; nelas não vemos rostos vermelhos e pranteados e madeixas desgrenhadas à maneira de nossas jovens e diretas Ménades. O que diz a sua melhor sucessora, uma senhora que acrescentou novo brilho a um nome que, na ficção, se iguala ao seu? Ela (Anne Thackeray Ritchie, autora de um ensaio sobre Austen publicado em 1871) diz, a respeito de Austen: “Suas heroínas têm uma marca só delas. Têm uma dignidade suave e humor e corações de pedra… Amor, para elas, significa menos uma paixão e mais um interesse, profundo e silencioso.” Acredito que há quem as prefira assim, e que as inglesas deveriam ser mais como Anne Elliot do que como Maggie Tulliver. “O único privilégio que reivindico para meu sexo é o de amar por mais tempo quando o objeto ou a esperança já se foram” (na tradução de Fernanda Abreu para Persuasão, ed. Zahar, 2016), disse Anne; talvez ela insistisse num monopólio que nenhum dos sexos tem para si. Ah, senhora, que alívio é voltar aos seus livros tão graciosos e esquecer as loucuras de hoje em dia por meio das do Sr. Collins e da Sra. Bennet! Quão bela, ou melhor, quão nobre é a sua arte em sua delicada contenção, nunca insistindo, nunca forçando o tom, nunca empurrando o desenho em direção à caricatura! A senhora escreveu, sem consciência disso, no espírito dos Gregos Antigos, numa labuta alegremente limitada e primorosamente estruturada. “Queridos livros” – dizemos nós, com a senhorita Thackeray – “Queridos livros, brilhantes, reluzentes de humor e vivacidade, nos quais as heroínas mais simples fascinam, as horas monótonas voam e mesmo as maiores maçadas são encantadoras.”

LUCAS COLOMBO, editor, tradutor literário, jornalista e professor. Colabora com revistas e cadernos de cultura. Organizou os livros Os melhores textos do Mínimo Múltiplo (Bartlebee, 2014) e Políticos, pernósticos & lunáticos: textos de um dos maiores humoristas americanos de todos os tempos, de Will Rogers (Gryphus, 2021).

Publicidade

Banner Prêmio Cepe

veja também

Um olhar científico sobre Mozart

Boris Rýji: o último poeta soviético

Pereléchin: o desconhecido poeta russo que viveu no Brasil