Televisão

Crônicas de Xico Sá ganham a tela da TV

Com direção de Júlia Moraes e Tuca Siqueira, série "Chabadabadá", baseada em livro homônimo, é exibida no Canal Brasil, na sexta (27) e no domingo (29), e está disponível na GloboPlay

TEXTO Luciana Veras

27 de Setembro de 2024

Foto Victor Jucá/Divulgação

Nos dicionários, o verbete “chabadabadá” consta como “não encontrado”, o que pode ser explicado com facilidade pelo fato de que tal palavra é um neologismo riscado pelo jornalista e escritor Xico Sá em Chabadabadá - Aventuras e desventuras do macho perdido e da fêmea que se acha, livro que publicou pela editora Record em 2010. Se um novo dicionário da contemporaneidade, porém, fosse escrito no Recife neste setembro de 2024, decerto este termo estaria devidamente registrado como o título da série de seis capítulos que o Canal Brasil exibe em maratona nesta sexta, 27, às 21h, e no domingo, 29, às 18h, e que os assinantes do combo GloboPlay + Canais podem ver na íntegra a qualquer momento.

Chabadabadá (Brasil, 2024) é uma produção da Perdidas Ilusões encabeçada por Camila Valença, a partir de uma ideia original de Cláudio Assis e Cecília Araújo, por sua vez concebida em cima das crônicas de Xico Sá. Na trama, Quincas (Matheus Nachtergaele) é um cronista que mora no centro do Recife e acaba de ser abandonado por Rita (Laís Vieira), a mulher com quem dividia cama, mesa e o cão Bombom. Para além de alugar o ombro do amigo Leandro (Mário Sérgio Cabral, do grupo Magiluth e da série Chão de estrelas), que, por sua vez, desconfia da infidelidade do marido Pietro (Bruno Parmera, também do Magiluth), ele começa a paquerar com Joana (Hermila Guedes), a veterinária encarregada de cuidar do seu cachorro (que na vida real é Dom, o pet de Matheus).

Viabilizada com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e da Agência Nacional de Cinema - Ancine, a série tem roteiro de Anna Carolina Francisco e direção de Júlia Moraes e Tuca Siqueira, que assinam os episódios Psicologia para cachorro; Corpos em rede; Como se livrar de um amante; Lendo as linhas da vida com o coração na mão; A rosa amaldiçoada do rei; e Bença mãe. Em todos os capítulos, sobressaem a cadência do texto, a prosódia pernambucana, a força da paisagem urbana do nosso Recife maltratado mas ainda assim sedutor (enquadrado pela fotografia impecável de Beto Martins) e a sintonia do elenco, que criam personas verossímeis e semelhantes a qualquer tipo frequentador de bares do Mercado da Encruzilhada ao Parque 13 de Maio. Outro aspecto relevante é a aproximação escancarada com o público por meio da quebra da quarta parede - o recurso que leva os atores a falar diretamente para a câmera, como se estivessem dialogando com quem assiste tudo, estabelecendo assim uma cumplicidade imediata.

O time criativo por trás do projeto acalentado ao longo de uma década, aliás, já jogou junto várias vezes - Carla Sarmento na arte e no design dos créditos, Dedete Parente na direção de produção, Andréa Monteiro no figurino e Hilton Lacerda na consultoria de roteiro, além das próprias Camila e Júlia, são nomes que estiveram em outros projetos de Cláudio Assis, a exemplo de Big Jato (2015) e Piedade (2019), assim como Matheus, que interpreta o protagonista Quincas, atuou em Amarelo manga (2002), Baixio das bestas (2006) e Febre do rato (2013). “São seis episódios com cerca de meia hora cada, que filmamos em 2023 durante quatro semanas, concentrando boa parte das cenas num apartamento da Rua da Aurora, que é o apartamento de Quincas. Além do fato de que muitas pessoas já tinham trabalhado juntas em outros filmes de Cláudio, o próprio texto de Xico, a animação da equipe, a empolgação no set e a alegria de filmar no Recife e contar uma história centrada aqui nos instigou muito… Tudo mundo ficou bem ‘chabadabadá’”, brinca a produtora Camila Valença.

A Continente já viu os seis episódios desta temporada e atesta: Chabadabadá é mais do que o título do livro e da série, é mais do que aquela onomatopeia que se entoa com a canção Um homem, uma mulher, do filme homônimo de Claude Lelouch de 1966, entoada pelos franceses Nicole Croisille e Pierre Barouh, é mais do que os verbetes ainda não rascunhados no léxico oficial do nosso idioma. “Chabadabadá é uma atitude, um jeito de ser das pessoas que não têm vergonha de serem erradas e que têm a coragem de ser quem elas são e de expor. A gente sabe que a vida, os relacionamentos e o amor se afetaram por todas as mudanças da contemporaneidade. As pessoas ficaram um pouco perdidas e solitárias e passaram a se distanciar dos seus desejos e a viver aquém de si. A série é catalisadora de vários períodos, com várias histórias que se encontram, mostrando essa fragmentação do homem e da mulher. Nas transformações, os homens estão sendo empurrados pelas mulheres e as mulheres estão questionando seu papel e querendo um lugar novo. Apostamos no multiprotagonismo: nosso Quincas, personagem do Matheus, é machista e as contradições do machismo dele e de outros homens são expostas por essas mulheres fortes, interpretadas por Laís Vieira, Hermila Guedes, Aura do Nascimento, Mohana Uchôa e Hilda Torres”, conta a diretora Júlia Moraes, parceira criativa de Cláudio desde Amarelo manga.

Na visão de Matheus Nachtergaele, Quincas é um “alter ego de uma série de amigos nossos pernambucanos, representados, mais especificamente, pelo Xico Sá, um homem moderno, um cronista, um cara bacana, que tem uma visão inteligente sobre o mundo e é culto, mas foi criado no interior e vive carregando consigo um certo machismo estrutural”. “Quando a série começa, ele está terminando um relacionamento, por causa dos vícios antigos de comportamento, e vai conhecer uma mulher inteligente e vai ter que aprender que o mundo não gira em torno dele e a reeducar o seu comportamento amoroso. Ele vai ser abatido, abalado, tocado todo tempo pela nossa nova vida, porque tudo mudou e estamos numa era de libertação sexual imensa, com as sexualidades em câmbio e em mutação, ao mesmo tempo em que metade do mundo deseja permanecer na caretice”, observa o ator.

Para ele, Chabadabadá é uma tentativa de apreender, com bom humor e a picardia que caracterizam os textos de Xico Sá e a atualização com enfoque feminino e feminista do roteiro de Anna Carolina Francisco, “como é que faz para amar agora”. “É pra ser monogâmico? É pra ser fiel? O comportamento pornográfico através dos celulares é traição? Pode ter as duas coisas - o prazer cibernético e o amor verdadeiro? É pra viver como nossos pais ou isso já não serve de verdade? Eu gosto de Chabadabadá porque é na fervura da pergunta. O público vai estar se interrogando, o Quincas vai estar vivendo, às vezes aprendendo, às vezes desaprendendo. Não queremos dar respostas, e sim mostrar que o caldeirão está fervendo. O que acho bonito é justamente a não proposta de uma fórmula final, sabe? Não estamos aqui para condenar nem perdoar, muito menos para salvar ninguém. O mundo está em ebulição”, acrescenta Nachtergaele.

Xico Sá encara Quincas como um “macho jurubeba”, definição que criou no livro Modos de macho & Modinhas de fêmea (Record, 2003), inspirado na publicação Modos de homem, modos de mulher, de Gilberto Freyre. “Ele representa o que há de pior e mais arraigado na ideia de machismo, na ridícula ideia de ser machão, obsoleto, conservador, reacionário, uma caricatura do comportamento do homem latino. Fiquei besta como tudo foi feito e muito feliz com o resultado, pois melhoraram qualquer ideia da minha sugestão como cronista e fizeram um drama quase de carne e osso, atualizando meus textos sem perder a sugestão do que eu escrevi lá atrás”, diz o autor em uma conversa telefônica com a Continente.

Esta atmosfera “quase de carne e osso”, amplificada pelo “clima boêmio”, como Xico atesta, e pela trilha sonora original de Karina Buhr, faz com que a audiência reconheça o Recife, suas avenidas, sua gente, seu sotaque. O processo de feitura da série serviu tanto para realçar estas características como para estabelecer um aprendizado coletivo. “O personagem é extremamente datado e está tentando se encaixar no hoje, trazendo todas as feiúras que o machismo tem, mas também lidando com as porradas em uma tentativa de aprender. Estar numa equipe com muitas mulheres e perceber os homens que trabalhavam com a gente se avaliando nos bastidores, se perguntando ‘será que sou um pouco Quincas?’, foi muito interessante. Ao mesmo tempo, para nós, mulheres, foi um grande exercício também, porque não gostamos de muita coisa que Quincas faz, mas precisávamos contar esta história e mostrar os erros deste personagem. Foi um ótimo exercício pessoal, que nos ajudou a imprimir essa dicção feminina que a série tem”, situa a diretora Tuca Siqueira, de Amores de chumbo (2017), cujo cartaz aparece em cena no apartamento de Quincas (onde podem ser vistos também cartazes de filmes como o curta-metragem Texas Hotel, de Claudio Assis).

Precedida por uma pré-estreia ocorrida na quarta, 25, no Cineteatro do Parque, no centro do Recife, a exibição ocorre sob entusiasmo do Canal Brasil. “Chabadabadá é uma série maravilhosa... É autêntica, com um formato inovador e trata de assuntos contemporâneos com bom humor, aproximando o público de discussões atuais e interessantes. Além disso, ela conta com um elenco de peso e uma equipe muito competente, que se refletem num conteúdo leve e envolvente, que te prende do início ao fim. A visão feminina na direção também fez toda a diferença para o resultado final”, pontua Camila Roque, gerente de marketing do Canal Brasil. Ela deixa o recado: “Sobre segunda temporada, não temos nada confirmado ainda, mas adoraríamos fazer uma continuação!”.

Pelo jeito, os dicionários terão que se atualizar: Chabadabadá - o estado de espírito, a série, a malemolência, as canções - tem tudo para se prolongar.

LUCIANA VERAS, jornalista especializada em cultura.

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