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Decameron ou Big Brother

Netflix optou por fazer uma série mais com cara de reality show, do que uma adaptação direta do clássico de Giovanni Boccaccio

TEXTO Alexandre Figueirôa

06 de Agosto de 2024

Verniz pop aplicado por Kathleen Jordan ao Decameron é uma estratégia para conquistar o espectador jovem

Verniz pop aplicado por Kathleen Jordan ao Decameron é uma estratégia para conquistar o espectador jovem

Foto Netflix/Divulgação

Quem for assistir a um filme ou série adaptada de uma obra literária não pode exigir fidelidade absoluta ao original, sobretudo por se tratar de linguagens bem distintas. Enquanto o livro tem como signo a palavra, o audiovisual é composto por elementos verbais, sons e imagens. Ao transportar a narrativa literária para a tela, alguns ajustes e traduções precisam ser feitas e essas operações muitas vezes decepcionam espectadores que ao final da visualização de um filme ou série não hesitam em afirmar: o livro é melhor. Por isso muitos cineastas ao filmarem histórias contadas nos livros em vez de usarem o termo “adaptação”, preferem usar as palavras “baseado” ou “inspirado”, descartando cobrança de semelhanças com a matriz. E é assim que devemos ver a série Decameron que acaba de chegar na Netflix.

Embora tenha como fonte o clássico da literatura italiana, escrito por Giovanni Boccaccio entre 1348 e 1353, a obra que chega ao streaming, criada por Kathleen Jordan, com exceção do título, dos nomes de alguns personagens e de algumas situações narradas, passa bem longe do texto que assinala o início do realismo na literatura.

O ponto de partida da narrativa da série é o mesmo do Decameron de Boccaccio. Um grupo de nobres da cidade de Florença se isola em um castelo para tentar escapar da peste negra, um flagelo que matou entre trinta e sessenta por cento da população da Europa na Idade Média. No livro, esse grupo é formado por sete moças e três rapazes e são eles os narradores dos cem contos que compõem a obra.

Os contos narram histórias de amor, lições de vida, situações trágicas e cômicas, piadas eróticas e questionamentos morais. Ao mesmo tempo é um rico documento sobre o contexto e o cotidiano da vida medieval abalada com a devastação provocada pela pandemia que pôs em xeque a religião católica, as condições sociais e econômicas e provocou grandes mudanças em todo o continente europeu.

Em 1971, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini abriu sua Trilogia da Vida – composta ainda pelos filmes Contos de Canterbury (1972) e As mil e uma noites (1975) – exatamente com o Decameron, selecionando da obra de Boccaccio nove histórias e reinterpretando-as a partir de uma estética pessoal onde destaca o grotesco e o anedótico das situações de modo a mostrar como a comédia e a tragédia fazem parte da vida. Perpassado pelo humor, o filme de Pasolini aborda as desigualdades sociais, a corrupção social e religiosa, a sexualidade e a entrega desenfreada a luxúria e aos prazeres.

O cineasta incluiu no elenco atores não profissionais e construiu uma mise-en-scène que deram ao filme um aspecto de improviso onde o comportamento desajeitado dos personagens ressalta o realismo e a ruptura da obra de Boccaccio na qual a natureza é muito mais valorizada como agente da conduta do homem do que o amor espiritual.

Esse refinamento encontrado em Pasolini, todavia não tem lugar no Decameron de 2024, um produto concebido para uma fruição totalmente adequada aos modelos narrativos contemporâneos. Embora tenham como gancho para a série temas e situações presentes no texto de Boccaccio, Kathleen Jordan e sua equipe não seguiram a estrutura de histórias isoladas. Os oito episódios acompanham o desenrolar dos personagens abrigados no castelo, mas com eles próprios protagonizando inúmeros quiproquós onde tudo pode acontecer.

A viscondessa Pampinea (Zosia Mamet) e sua criada Misia (Saoirse-Monica Jackson), Filomena (Jessica Plummer) e sua serva Licisca (Tanya Reynolds), o nobre Tindaro (Douggie McMeekin) e seu médico Dioneo (Amar Chadha-Patel), o casal Panfilo (Karan Gill) e Neifile (Lou Gaia), além dos empregados do castelo Sirisco (Tony Hale) e Stratilia (Leila Farzad) formam um curioso painel de personalidades cujos arquétipos permitem um variado número de arranjos relacionais que alimentam a trama.

Diferente de Boccaccio, que dirige seu foco aos nobres, Jordan colocou tanto os nobres quantos seus servos tendo o mesmo destaque nos acontecimentos e vivendo situações em que põem à prova sua lealdade, e posições sociais. Eles se apaixonam, fazem sexo, cometem traições e atos violentos, mas também se ajudam e se perdoam. Esses ingredientes misturados a uma boa dose de humor negro e nonsense tem dado resultado, pois Decameron é uma das séries mais vistas do momento.

A dinâmica da trama do ponto de vista do roteiro e daquilo que ela se propõe – ser uma série de entretenimento – é bastante funcional graças às diversas reviravoltas que ela apresenta. Contudo, a sensação de que estamos assistindo um reality show é inevitável. Em pouco tempo já começamos a querer saber quem vai transar com quem, quem vai morrer ou sobreviver à peste, ou seja, quem vai ser eliminado do jogo. O suntuoso castelo com muitos salões e belos jardins onde os personagens circulam a maior parte do tempo lembra a casa do Big Brother em uma versão medieval.

Como nos realities, a câmera passeia por todos os espaços do castelo flagrando os jantares, as festas, os quartos e vai nos revelando as intrigas, os jogos de sedução, os segredos de alcova, as alianças que vão se desenvolvendo, mergulhando também nos espaços menos nobres como a cozinha, as adegas, a estrebaria, locais onde, muitas vezes, a distância social entre servos e nobres se desfazem, sem contar os quartos secretos cheios de surpresas e que são fundamentais no andamento da trama.

Esse conjunto de elementos se tornam ainda mais atraentes, graças ao esmero dos realizadores na composição do décor do castelo, do figurino e de toda a ambientação realçada por uma iluminação muito bem conduzida, pelo uso preciso das cores do cenário e figurino e por uma trilha sonora que estabelece um curioso contraponto com as imagens ao colocar como fundo musical conhecidos rocks dos anos 80.

Não resta dúvida que o verniz pop aplicado por Kathleen Jordan ao Decameron é uma estratégia para conquistar o espectador jovem, habituado a produtos que não aprofundam a experiência reflexiva que o audiovisual pode proporcionar. Embora os temas e sentimentos universais que pontuam dramas e comédias como o desejo, a ambição, o amor, a avareza, a vingança, o fanatismo, a servidão, o ódio estejam representados e manifestos nos personagens e nas pequenas tramas, uma melhor compreensão desses sentimentos é atropelada pela velocidade com que os fatos são mostrados.

A recente pandemia da covid-19 é outro fator de atração para a série, pois mesmo em outra proporção, o vírus da covid desencadeou em todo o mundo comportamentos e reações inesperadas, trazendo à tona fantasmas adormecidos que povoam a mente humana, não muito diferentes em alguns aspectos com o que aconteceu no século XIV.

Contudo, não podemos negar que o painel de personagens – a solteirona que quer um marido a qualquer custo, o médico charlatão, o cardeal corrupto, a serva que se passa por nobre, a beata que queima de desejos, o marido que prefere fazer sexo com rapazes – e o relato das crenças absurdas e atitudes provocadas pelo medo da peste despertam interesse e simpatia. Eles ganham destaque por serem encenados de forma convincente, graças sobretudo ao desempenho do elenco cujos atores e atrizes demonstram habilidade e desenvoltura na teatralidade histriônica de seus papéis.

Decameron é, portanto, um bom divertimento para quem gosta de comédias que tiram sarro com tudo que vê pela frente, embora certamente, logo será esquecida. Talvez seu mérito seja despertar em quem o assiste o desejo de conhecer o texto original. Se isso acontecer, já vale alguma coisa.

ALEXANDRE FIGUEIRÔA, jornalista, crítico de cinema e realizador