Resenha

Entre as latas d'água da resistência

Sete atrizes negras se revezam no papel de Elza Soares, em musical sobre a vida e obra de uma das vozes mais potentes da música brasileira, sob direção geral de Duda Maia

TEXTO DUDA MARTINS, DO RIO DE JANEIRO

26 de Julho de 2018

Em cena, as atrizes atuam em cima de baldes de lata e, juntas, lembram a composição de uma pintura

Em cena, as atrizes atuam em cima de baldes de lata e, juntas, lembram a composição de uma pintura

Foto Leo Aversa/Divulgação

É dever do artista refletir seu tempo.” Começo citando Nina Simone, que deu sua voz ao seu tempo. Uma das maiores cantoras e intérpretes do Brasil – ainda em atividade – partilha do mesmo pensamento de Nina: Elza Soares não só cantou o seu tempo, mas o subverteu, o transcendeu, e assim o faz até os dias atuais. Sua vida e carreira acabam de ganhar uma homenagem, nos palcos, com o musical Elza, cuja direção geral é assinada por Duda Maia, com texto de Vinícius Calderoni e direção musical de Pedro Luís, parceiro da cantora em seu mais recente disco, Deus é mulher. O espetáculo está em cartaz no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro, desde o dia 19 de julho – e assim segue até o dia 30 de setembro, com circulação prevista pelo país.

O momento não poderia ser mais oportuno: em ano de eleições, uma obra dessa magnitude, que enaltece a figura da mulher negra e direciona os holofotes para uma artista como Elza, torna-se uma potente ferramenta estética e política – um marco na história do teatro brasileiro. Coincidência ou não, o primeiro encontro que reuniu as sete mulheres do elenco (Larissa Luz, Khrystal, Késia Estácio, Laís Lacorte, Janamô, Júlia Dias e Verônica Bonfim), todas pretas, se deu logo após a execução da quinta vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco. Marielle, aliás, é citada nos primeiros minutos de espetáculo, ao lado de nomes como a da ativista norte-americana Rosa Parks e a guerreira escravizada Dandara dos Palmares. São as Elzas possíveis.

Na cena, as sete atrizes esbanjam seus cabelos naturais e seus corpos expostos na boca de cena, em cima de baldes de lata, lembram a composição de uma pintura. São mulheres cujas histórias certamente se misturam à da protagonista que estão ali para interpretar. No momento atual do teatro negro brasileiro, em que eclode a polêmica sobre o tom de pele da atriz que interpretaria a sambista D. Ivone Lara, não parece haver dúvidas sobre a escolha acertada do elenco desta produção. As atrizes são potentes e versáteis revezando-se no papel de Elza: cada uma narra uma fase da sua vida.


A musicista e atriz baiana Larissa Luz. Foto: Leo Aversa/Divulgação

Uma delas está presente em todos os momentos: Larissa Luz, a cantora, compositora e única atriz convidada. Mais conhecida na cena autoral da música baiana, Larissa já marcou presença em importantes obras teatrais, como Gonzagão – A lenda (substituindo Laila Garin, em 2012) e Ópera do malandro (2014), ambas dirigidas pelo diretor pernambucano João Falcão. Além da semelhança física, Larissa se aproxima de Elza por seu histórico de militância social dentro e fora dos palcos. Assim como nas outras montagens, a atriz conseguiu imprimir sua identidade à personagem sem se preocupar com imitações caricatas, mas não tem como escapar do que lhe é nato: quando abre a boca pra cantar é quase como ouvir a voz saindo das fendas da própria Elza. De arrepiar, “do coccix ao pescoço”. Destaque também para o timbre de Késia Estácio interpretando Dindi (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira), gravada por Elza em 1965, e a elegância permanentemente em cena da voz de Khrystal.

A trilha sonora é ao vivo, também executada só por mulheres: Antônia Adnet (violões, cavaquinho e voz), Georgia Camara (bateria e percussão), Guta Menezes (trompete, flugelhorn e gaita), Marfa Kourakina (baixo), Neila Kadhí (programações pandeiro, guitarra e voz), e Priscila Azevedo (teclado, sanfona, escaleta e voz).

O lugar da mulher é onde ela quiser estar.

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O olhar apurado e os tiros certeiros do musical Elza devem-se à diretora geral Duda Maia, que está em um grande momento da sua carreira. Depois de Auê, espetáculo mais do que premiado no qual dirige o elenco masculino da Barca dos Corações Partidos, ela agora se volta para o universo da mulher e, não por acaso, sua encenação é um tapa, ou vários, na cara do machismo, do racismo e de outros tipos de opressão ainda vigentes em nossos dias.

Em cena, Duda trabalha os corpos e as presenças de mulheres que, como Elza, estão muitas vezes no seu limite, na iminência das quedas, mas estão também na alegria, na sedução, no deboche, na coragem, nas bocas escancaradas, no grito que não sai, mas quando sai, é difícil conter a emoção. Como, por exemplo, na cena em que Elza perde o filho Garrinchinha, o dueto de Meu guri (Chico Buarque) interpretado por Larissa Luz e Khrystal deixa a plateia muda; ou no ato em que as meninas cantam e tocam a música Maria da Vila Matilde (Douglas Germano): “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, no momento em que Elza leva dois tiros do seu primeiro marido. A canção parece vingar o sentimento de todas as mulheres presentes no teatro e sim, elas vão ao delírio.


Foto: Leo Aversa/Divulgação

O romance com Mané Garrincha é um dos grandes conflitos apresentados na trama. Trata-se da paixão desenfreada versus a culpa que lhe imputaram por ter separado o jogador da família, e ainda a batalha que perdeu para o vício do “torto” em álcool. “Tu ainda vai apanhar muito, neguinha”, dizia o pai da cantora, outra presença masculina que ela fez questão que estivesse no texto. E apanhou realmente. Mas, em nenhum momento, a dramaturgia de Calderoni resvala para o coitadismo, para a melancolia. Isso também não combina com Elza.

As soluções cênicas são muito eficientes. Os baldes e latas d'água estão presentes em toda a encenação, fazendo alusão aos difíceis tempos da sua infância e juventude no morro. Além disso, ajudam a caracterizar personagens emblemáticos, como o primeiro marido que “mora” em cima de duas latas amarradas aos pés, ou o pai de Elza, que tem um balde na cabeça, ou o corpo de um louva-deus. Em vários momentos, os baldes sustentam as atrizes, além de todas as instrumentistas debaixo de um praticável, simbolizando resistência.

O texto, entre idas e vindas, é pouco linear, mas o que importa é a mensagem urgente que ele suscita; o que importa é a representatividade, e o lugar de fala finalmente ocupado por quem é de direito. Mulheres negras em cima do palco, com as vozes e os corpos amplificados, sendo protagonistas da sua própria história. Na plateia, não menos importante, um sem-número de negras de todas as idades, com sorrisos largos, pelo simples fato de, naquela noite, se sentirem, enfim, representadas.

DUDA MARTINS é jornalista pernambucana radicada no Rio de Janeiro.

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