Reportagem

O teatro do ser e do estar

Com elenco formado só por pessoas transgênero, intersexo e agênero, a peça 'Cabaret transperipatético', da Cia. Os Satyros, é documento vivo sobre corpo e representatividade trans em cena

TEXTO MATEUS ARAÚJO, DE SÃO PAULO

25 de Junho de 2018

Cena de 'Cabaret transperipatético' com Léo e Fernanda

Cena de 'Cabaret transperipatético' com Léo e Fernanda

Foto André Stefano/Divulgação

Sentada na plateia, uma menina saca o celular da bolsa e, tão logo o espetáculo começa, aperta o REC. No palco, está a atriz Fernanda Kawani, que faz a primeira cena da peça que marca sua estreia profissional no teatro. Embora atuando à vedete, com rebolado e sorriso largo, Fernanda não esconde certa timidez. A menina continua filmando. Guttervil, também em cena como apresentador de um programa de calouros, interrompe: “Você precisa apagar os vídeos. Não é permitido filmar”.

Ali, não se medeia. É cara a cara. O que nos primeiros minutos de apresentação parece caminhar para pornochanchada logo assume outra face. Mais séria, direta. Sem muito espaço para a graça, mas para a confissão. Desde o início de maio, Daniela, Fernanda, Gabriel, Guttervil, João, Léo, Luh e Sofia se apresentam na Estação Satyros, centro de São Paulo, onde falam um pouco de si. Eles estão na peça Cabaret transperipatético, que segue em cartaz até o final de julho. O trabalho da Cia. Os Satyros tem elenco exclusivamente formado por pessoas transgênero, intersexo e agênero.

Na semiarena do teatro d’Os Satyros, subsolo de um galpão na Praça Roosevelt, os artistas se performatizam. São oito corpos, oito vozes, oito histórias atravessadas por esse espaço heterotópico – expressão alcunhada pelo filósofo francês Michel Foucault. Espaço onde se “perfaz no retângulo da cena toda uma série de lugares estranhos”, lugares outros, “contestações míticas e reais do espaço em que vivemos”.

“É um teatro documental. A gente relata nossas experiências não só ligadas a gênero, mas à família, religião, sexualidade”, define Fernanda Kawani à reportagem. Há apenas dois anos trabalhando como atriz, ela encontrou nos palcos uma maneira “inspiradora” “para enxergar a vida de outra forma”. Fernanda é transexual, já foi prostituta e vendedora de sex shop. “Teve uma fase da minha vida que eu pensei que ia ficar presa àquilo [à prostituição], que tinha que me conformar”, conta. “Até ontem, só via corpos trans na rua, na boate. E entrar num teatro e conviver com um elenco por sete meses foi muito forte para mim.”

Fernanda se aproximou do teatro quando começou a namorar Guttervil, com quem hoje é casada. Guttervil é uma pessoa agênero, está em plena transição e “nasceu” há dois anos, mais ou menos, durante o processo de montagem de outra peça d’Os Satyros, Pink star, da qual fez parte. Hoje, prefere que lhe tratem pelo pronome masculino, mas, como explica, não se define homem nem mulher. Ele trabalha com Os Satyros desde 1997. Entrou para as aulas de interpretação oferecidas pela companhia em Curitiba e depois se mudou para São Paulo, passando a integrar a equipe dos espetáculos.

O Cabaré, no entanto, marca Guttervil de uma forma definitiva. “Eu conheci outras histórias, outras vidas, de pessoas que saíram e de pessoas que estão no processo [de transição de gênero]”, relata. “Me identifiquei com algumas. Descobri que essas pessoas são iguais a mim, que têm família, que têm amor, que têm paixões.” Em cena, por exemplo, ele e Fernanda contam ao público como se conheceram e como o flerte de uma mulher lésbica, na época, e uma mulher trans se transformou em um relacionamento de cumplicidade e parceria, no qual se apoiam nas descobertas e redescobertas da própria existência.

REAL
O espetáculo foi criado a partir de uma dramaturgia coletiva. Em esquetes curtas, os artistas falam sobre afeto, espaço social, opressão, transfobia, empoderamento, angústias e sonhos. Durante quatro meses de ensaio, o elenco debateu suas próprias narrativas e tomou como reflexão a obra do filósofo espanhol Paul B. Preciado (Manifesto contrassexual), o determinismo binário (padrão homem e mulher) e a arte como espaço estético plural.


A atriz Daniela em cena didática sobre o trato sexual ao corpo.
Foto: André Stefano/Divulgação

O trabalho é tido pelo grupo como um manifesto artístico e político de representatividade, como eles mesmos escrevem em texto publicado junto ao programa da temporada:

Aqui, nós provamos que somos capazes de atuar e representar uma classe que até ontem era interpretada por homens e mulheres
cis, mostrando para o mundo que, sim: nós somos atores, diretores, dramaturgos, capazes de criar e atuar no teatro, no cinema e em todas as outras expressões artísticas.

Surgido em meio à efervescência dos debates sobre representatividades trans nas artes, Cabaret transperipatético é, segundo o diretor Rodolfo García Vazquez, um marco na história da Cia. Os Satyros. “Temos o primeiro elenco inteiramente não-cis e isso fez com que discutíssemos as questões de gênero do ponto de vista identitário, biológico social, através de um olhar não-cis. Obviamente, é uma questão que assume um novo contorno, num projeto que radicaliza”, destaca.

Como lembra o diretor, a questão da representatividade trans foi levantada pelos Satyros há 14 anos, quando da montagem do espetáculo Transex – primeiro trabalho em que o grupo abordou a temática, com remontagem prevista para estrear este mês (dia 27/6). “Já naquele espetáculo nós abordávamos a questão de travestis e transexuais, no caso, mulheres transexuais. Tínhamos duas atrizes transexuais, que eram Phedra D. Córdoba e Savana Meirelles. Depois, em 2008, nós montamos Hipóteses para o amor e a verdade, que embora não tivesse a questão trans como temática central, tinha três travestis e um homem trans, ou seja, metade do elenco. Enfim, a representatividade trans sempre teve espaço na nossa pesquisa teatral”, conta Rodolfo.

Tratado como projeto político, o espaço dado pela companhia às comunidades minorizadas ou fragilizadas, como é o caso das pessoas T (os Satyros também têm um trabalho de acessibilidade com egressos do sistema prisional), é fomentado justamente para “impactar no mundo teatral”. Uma vanguarda que, assim esperam, dá força para transformar o teatro em lugar de fala e atuação dos artistas-narradores. “De forma que as pessoas deem mais espaço para essas pessoas se expressarem teatralmente, e que o teatro seja, de fato, um espaço amplo e democrático”, frisa o encenador.

Esse é o caso, por exemplo, da atriz Luh Maza. Crítica, pesquisadora, diretora, dramaturga e professora de teatro, há 14 anos ela não subia no palco para interpretar. Decidiu sair dos bastidores para assumir a cena, agora, e contar sua própria história porque “o convite para este trabalho me soou como uma convocação do teatro para colocar politicamente meu corpo a serviço de uma discussão da qual faço parte”. “Isso me imbuiu de responsabilidade, mas também segurança neste processo de exposição. O impacto performativo de que não somos personagens de uma ficção, mas nós mesmos contando nossas histórias, já me parece estabelecer um território relacional de outra natureza com o público.”

Há cerca de 10 anos, Luh experimentava a fluidez de gênero, mas só passou a se apresentar socialmente como uma pessoa de gênero fluído em 2016. “Foi nesse momento que o Rodolfo me convidou para entrar no processo do Cabaret transperipatético. No início, me senti receosa de que ali não fosse meu lugar, mas depois de ter um contato profundo com meus colegas de elenco, em especial com as outras atrizes, pude me reconhecer e entender como uma igual. Também já era evidente, pra mim, que neste momento não me interessaria mais por performar o masculino que me foi imposto e então me autodetermino uma mulher trans. Enquanto a maioria de transgêneros sofre numa transição solitária, eu tive o privilégio de transicionar ao lado de pares em um contexto criativo. É impossível imaginar minha transição tal como foi sem o teatro.”

Para a atriz, o espetáculo expurga dores e afirma essas pessoas na sociedade. “Leio muitas vezes que artistas e ativistas trans não entendem nada de teatro e da arte da representação. Sou uma pesquisadora, artista e também professora de teatro, imagino que minha formação e informação sejam relevantes nesta resposta para tirar da frente essa falácia de que somos ignorantes ao tema”, afirma Luh. “Ninguém está dizendo que são péssimos atores aqueles cis que fazem personagens trans, muitas vezes o desempenho é mesmo formidável. Também não temos poder de censura senão a pressão social (que é um poder à disposição de todos em uma democracia). É, sim, uma reivindicação: também adoraríamos que o mundo fosse lindo e todos tivéssemos as mesmas oportunidades, mas nós sabemos que não é assim. Em um país cuja transfobia é tão estrutural e violenta, é urgente que nossos corpos sejam naturalizados, humanizados, sociabilizados.”

MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador e crítico de teatro. Mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.

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