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Um mergulho no jornalismo policial

Dirigido por Guillermo Planel e roteirizado por André Teixeira, documentário "Abaixando a Máquina 3" traça perfil da imprensa sensacionalista de décadas passadas

25 de Julho de 2024

Documentário é ilustrado por páginas de veículos sensacionalistas

Documentário é ilustrado por páginas de veículos sensacionalistas

Foto Divulgação

Um mergulho na história da cobertura jornalística policial do século 20, passando pelas fake news e pela inteligência artificial. Tudo isso é abordado no documentário Abaixando a Máquina 3 - crônicas do jornalismo policial e outras histórias, que revela os bastidores da produção da notícia sobre crimes violentos, tanto a partir da questão textual, quanto das fotografias. Dirigido pelo fotojornalista Guillermo Planel, o filme de 1h17 minutos escancara o que o meio jornalístico chamava de jornal que espreme e sai sangue. Recheado de depoimentos de jornalistas e fotojornalistas que fizeram coberturas policiais nos anos 1980 e 1990, o filme revela o quanto os profissionais da época “enfeitavam o pavão” e enchiam os jornais de “cascatas”, as famosas mentiras. 

O formato de depoimentos misturados com imagens, comuns aos documentários, são aqui muito bem costurados, dando uma ampla dimensão da realidade das redações da época. O que faz do filme um importante registro histórico a serviço de pesquisadores, estudantes e interessados em descobrir os meandros da cobertura jornalística policial, que tinha os donos de jornal e a polícia como cúmplices. Não ficam de fora, portanto, questões éticas e até análise psiquiátrica do que leva o público a fazer fila nas ruas para ver pessoas mortas em condições de violência brutal.

“O roteiro foi construído em cima de dois pontos: por que o crime, a tragédia e o drama atraem tanto, e como essas histórias fantasiosas eram criadas e publicadas, com a aprovação dos editores, donos de jornal e até dos leitores”, comenta o roteirista André Teixeira. O jornalismo daquela época pode ser chamado de proto-fake news mas, segundo o documentário, não faziam, nem de longe, o estrago que fazem as notícias falsas do século 21.  

Mais para crônica do que para notícia, as matérias policiais daquela época literalmente criavam monstros e inventavam bandidos. Era comum os periódicos serem preenchidos com a técnica do “crescer na mão”. O escritor de novelas Aguinaldo Silva, que já atuou como repórter policial, fez muito isso, segundo depoimentos do documentário. O fotojornalista usava a boa e velha imaginação para fazer da foto de um cadáver encontrado na rua, sem lenço e sem documento, uma história fabulosa digna de primeira página. Foi assim com o Mão Branca, suposto justiceiro carioca que jamais existiu, mas levou a culpa por muitas das execuções realizadas pela PM carioca no início dos grupos de extermínio. Durante muitos meses os jornais creditaram várias mortes inexplicáveis ao personagem. 

O documentário volta no tempo em que o jornalismo brasileiro sequer era profissão e muitos “jornalistas” eram "semi-analfabetos". Mas como se tratava de pessoas que conheciam o métier das ruas, estavam mais próximos do povo e dos acontecimentos cotidianos. Então eles ditavam os textos para outras pessoas redigirem. Era comum produzir matérias com caráter ficcional, romanceadas às custas de mentiras bem recebidas e nenhum compromisso com verdades monótonas.  

“Até o final da década de 80, o jornalismo policial no Brasil tinha duas marcas registradas: matérias sobre crimes, inclusive com fotos explícitas – o “espreme que sai sangue” – e as famosas “cascatas”, informações exageradas, distorcidas ou claramente falsas. Essa receita fazia um sucesso enorme.  O roteiro, então, foi construído em cima desses dois pontos: por que o crime, a tragédia e o drama atraem tanto, e como essas histórias fantasiosas eram criadas e publicadas, com a aprovação dos editores, donos de jornal e até dos leitores?”, questiona Teixeira. 

Com 20 anos de experiência como repórter fotográfico e editor n’O Globo, André Teixeira conta que o processo de elaboração dos jornais sempre o interessou.  “Já tínhamos várias entrevistas e fomos fazendo outras, e nesse processo vimos que as cascatas não morreram com o declínio desses jornais populares. Elas continuam, como vemos atualmente com as fake news, e principalmente com a Inteligência Artificial. O documentário, então, seguiu esse caminho, e o roteiro acabou sendo construído em paralelo às próprias entrevistas, e depois, na montagem”, recorda o roteirista.  

 “Abaixar a máquina" é uma expressão usada no fotojornalismo para quando a pessoa se nega, por questão ética, a fazer uma foto. Essa expressão surgiu na época da ditadura, em 1984, quando os jornalistas responsáveis por cobrir a saída do então presidente golpista João Figueiredo, baixaram suas máquinas, deixando-as no chão. Havia uma analogia também com a questão do tráfico de drogas. Abaixar a máquina é abaixar o fuzil”, explica Guillermo, que dirigiu os anteriores Abaixando a Máquina 1 e 2, também focados no fotojornalismo. Ao todo, ele já dirigiu 18 documentários.  

“Queria dar voz a quem fica sempre atrás das câmeras. Nunca se falava da opinião de quem está fotografando”, justifica Planel que, primeiro, abordou a questão ética.  “Qual o direito que o fotógrafo tem de clicar uma pessoa morta? O fotojornalismo serve para mudar a realidade vigente ou apenas vender jornal e ganhar prêmio?”. O primeiro documentário, Abaixando a máquina: ética e dor no jornalismo carioca, ficou pronto em 2007. 

Quinze anos depois, Guillermo Planel viu a necessidade de realizar a continuação. Abaixando a Máquina 2: no limite da linha, após os conflitos de rua  de 2003, no Rio de Janeiro, que resultaram na morte do cinegrafista Santiago Andrade. “Quis mostrar a relação tensa que existia entre o fotojornalismo independente, o corporativo e a polícia”. 

Depoimentos de nomes consagrados do jornalismo policial e das áreas afins que pesquisam o tema como Mauricio Menezes, Michel Misse, Sergio Schargel, Ancelmo Gois, Joaquim Ferreira dos Santos, Ana Lúcia Araújo, Márcia Foletto e tantos outros são a alma do documentário, que é intercalado por imagens de páginas de jornal  e revistas sensacionalistas da época, além de outras geradas por Inteligência Artificial com intervenção autoral do irmão do diretor, Maurício Planel.  “Tivemos uma dificuldade enorme, absurda de conseguir material daquela época. Então fui criando com IA as cenas que pudessem ter relação com o que estávamos tratando. Mas usar somente IA não seria verdade, já que estamos falando de fake news. Foi aí que chamei meu irmão para interagir dentro da imagem”, revela o diretor.

O fotojornalista precisava voltar da rua com algum material, nem que fosse “produzido”. Entrava em cena o que a fotógrafa Ana Lúcia chama de de kit cadáver: um lençol branco e uma vela. Quando o profissional chegava ao local do crime e o morto já havia sido recolhido, não era raro o motorista fazer as vezes de cadáver, coberto com folhas de jornal, apenas com os pés de fora para não ser identificado. “Era impactante, mas foi o desenho de uma época”, disse o jornalista e escritor policial Joaquim Ferreira dos Santos. 

Alguns trechos do documentário podem ser mesmo impactantes, como a fotografia, devidamente borrada, de um corpo cravado com 37 facas. “A violência existe, mas você pode mostrar de outra maneira”, diz o fotojornalista Severino Silva. “A imagem pericial é fundamental para o crime, mas não para o fotógrafo”, argumenta o fotojornalista Domingos Peixoto da Silva. 

“Acho que o documentário tem um grande mérito: olhar tanto para o passado quanto para o futuro. Além de tentar explicar como o jornalismo era produzido e porque as cascatas eram aceitas com tanta facilidade. Ele mostra que a mentira continua presente entre nós. Mesmo tendo, felizmente, perdido espaço na imprensa tradicional, não sendo mais tolerada entre os jornalistas sérios, ela continua disseminada na sociedade em geral, através das redes sociais, com impactos ainda mais extensos e perigosos. Se não encerra, ele aprofunda as discussões sobre ética jornalística que os dois Abaixando a máquina anteriores vêm levantando há quase 20 anos”, resume Teixeira. 

Notícias falsas seguem firmes, principalmente com o advento das redes sociais e da inteligência artificial. “O mundo digital entra no mercado de notícias de uma maneira muito irresponsável, leviana e pouco ética. Há muita idiotice, muita truculência, muita intolerância, muito pitbull na rede”, declara o jornalista Ancelmo Gois. 

Para Planel, o jornalismo policial deixou de existir. “Os jornalistas, principalmente na televisão, deixaram de usar os próprios meios de investigação para se basear apenas nas filmagens feitas por câmeras de segurança”, lamenta. 

O documentário pode ser visto no link abaixo:

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