Impromptu para Elyanna Caldas
O legado da pianista recifense e membro da APL, falecida na quinta-feira (12), aos 88 anos, estende-se às ações institucionais musicais que promoveu, especialmente nas duas gestões à frente do Conservatório Pernambucano de Música
TEXTO Carlos Eduardo Amaral
13 de Junho de 2025
Foto Divulgação
Nascida em 27 de setembro de 1936, Elyanna Silveira Varejão, née Caldas Silveira, foi assim batizada com a justaposição dos nomes do avô paterno, Alberto Elysio, e da avó materna, Anna Poggi e iniciou os estudos de piano aos cinco anos de idade — primeiramente com Hilda, depois com a irmã desta, Nysia Nobre, primas do compositor Marlos Nobre.
Elyanna me presenteou com um exemplar autografado de sua autobiografia Caminhos de uma pianista (edição independente, 2002), que recém-abri encontrando inúmeras anotações minhas à caneta. Infelizmente, pela urgência para que esta matéria vá ao ar, terei de transformar tais anotações em algum outro texto vindouro.
Toda a sua infância e adolescência foram dedicadas ao instrumento do coração, visando a uma carreira internacional — que começaria a se delinear após ter sido selecionada para participar do V Concurso Internacional Frédéric Chopin, em Varsóvia, no ano de 1955. Sem recursos para comprar a passagem de ida (pois a organização do evento só concedia a hospedagem e o bilhete de volta), foi um outro professor Waldemar de Almeida, que a ajudaria a embarcar para o Leste Europeu.
Waldemar, pai de Cussy de Almeida, vendera um terreno para ajudar a aluna e amiga, que o reembolsaria tempos mais tarde com a renda de um recital no Santa Isabel. Na Polônia, Elyanna tomaria o primeiro café na vida (de origem brasileira) e conheceria os maiores intérpretes mundiais de então. Na volta ao Brasil, a pianista promoveu concertos e participou de concursos nacionais: um promovido pela Rádio MEC, em 1956, vencido por Arthur Moreira Lima; outro, que levava o nome da célebre pianista Magda Tagliaferro.
Neste último, obteve uma das três bolsas concedidas pelo governo brasileiro e voltou à Europa, para se aperfeiçoar com Tagliaferro e Lazare Lévy em Paris, participando, posteriormente, de cursos e festivais na Áustria e na própria Polônia. No entanto, como assinala Maria de Lourdes Costa de Aguiar na apresentação de Caminhos de uma pianista, uma conjunção de fatores precipitou a volta de Elyanna ao Recife: uma gastrite decorrente de uma alimentação inadequada, os atrasos angustiantes no pagamento da bolsa e, sobretudo, o chamado da mãe, D. Esther, que queria que a filha garantisse o futuro como professora universitária.

Licenciou-se em Música pela École Normale de Musique de Paris, em 1968, e em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco, ingressando, no final dos anos 1960, como professora no curso de Música da UFPE e no Conservatório Pernambucano de Música, onde desenvolveu sua atuação mais notável em nível institucional, dirigindo esta entidade por duas gestões, de 1987 a 1991 e de 1995 a 1999 — e sucedendo, respectivamente, a Clóvis Pereira e Cussy de Almeida.
No livro Conservatório Pernambuco de Música – 85 anos: uma apreciação (Cepe Editora, 2015), o maestro e professor Sérgio Nilsen Barza conta que Elyanna, com sua polidez e discrição, relutou à inclusão de seu nome na lista tríplice enviada à Secretaria de Educação do Governo do Estado na primeira ocasião, mas cedeu, por apostar que não fosse escolhida.
Tornou-se a primeira mulher a assumir posto principal do CPM e marcou história com uma série de iniciativas pioneiras: a retomada da série Quartas Musicais; a inauguração da série Música aos Sábados (que incluía uma mostra de filmes e documentários sobre música, cedidos pelos Consulados da Alemanha, França e Japão); e a criação de uma orquestra experimental, do Memorial Ernani Braga (para preservação da documentação da entidade), da biblioteca e do núcleo de musicoterapia.
Não apenas isso, enumera Barza. Elyanna promoveu a admissão de crianças e adolescentes com necessidades especiais, delimitou a concessão de bolsas de estudos para alunos que eram de fato carentes (como os Meninos de São Caetano), incentivou a implantação do Método Suzuki para o ensino de instrumentos de cordas friccionadas, estimulou a formação de coros e logrou o benefício de vale-refeição para funcionários de baixa renda e a abertura de concursos públicos para o corpo docente. “Em sua gestão, Elyanna ouvia a todos e buscava, com os recursos que tinha, resolver os problemas e fazer música com soluções criativas”, ressalta o maestro.
Janete Florêncio, atual diretora do CPM, enfatiza as contribuições de Elyanna no campo pedagógico: “Como eu trabalhei com ela no segundo mandato dela [à frente do CPM], eu participei da visão dela, de melhorar o Conservatório. Não só as paredes e os tetos: ela trabalhou muito a questão da capacitação dos professores, com muitos cursos de alto nível. Graças a ela, a gente pôde ter aqui acesso a grandes professores do Brasil e do mundo, e isso deu um resultado incrível à instituição”.
Essas atividades didáticas englobaram, ainda, inéditos cursos de regência (com o ex-diretor Henrique Gregori) e luteria (com Fernando Arantes Ferrão, trazido do Rio de Janeiro), implantados em 1988. Paulo Sérgio Nunes, principal aluno da turma inaugural de luteria, relembra: “Ela trouxe o Fernando Arantes Ferrão, discípulo de Guido Pascolli na época. Ele veio ministrar um curso aqui para mim e outros sete alunos, que eram da Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco. Como o Conservatório não tinha espaço nem maquinário, o curso foi ministrado na Etepam (Escola Técnica Estadual Agamenon Magalhães), na sala 10”.
Já durante a segunda gestão de Elyanna, Nunes assumiu a manutenção dos instrumentos de cordas friccionadas do CPM, que era feita por Ferrão na primeira. “Ela enxergava que a manutenção periódica do instrumento musical frutifica no músico”, pontua o lutiê.
No CPM, a gestora ainda capitaneou as campanhas de arrecadação de recursos para a recuperação e reequipamento do estúdio de gravação, bem como para a ampliação das instalações físicas. E idealizou a criação da Associação de Amigos do Conservatório Pernambucano de Música, que permitiria a captação de recursos de forma mais flexível, desvinculada de limitações burocráticas estatais.
Devido às reformas, os eventos mais importantes do CPM foram transferidos para o auditório da Academia Pernambucana de Letras, de cuja programação musical Elyanna viria a cuidar anos mais tarde. Da relação com a APL, deu-se o natural convite para que ela ingressasse na instituição, sendo eleita para a Cadeira n° 14, em lugar do médico e escritor Rostand Paraíso.
A atuação como produtora cultural também é digna de nota. Com o patrocínio da Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, por exemplo, Elyanna dirigiu três grandes eventos que reuniram destacados pianistas pernambucanos e de outros estados no Teatro de Santa Isabel: os festivais Chopin/Schumann (2010), Liszt/Mendelssohn (2011) e Debussy/Albéniz (2012).
Por fim, Elyanna é lembrada pelo estímulo ao surgimento de diversos grupos representativos do Conservatório Pernambucano de Música. “Nós tivemos uma relação muito interessante com a gestão, até porque foi criado — nesse momento em que o SaGrama nasceu, em 1995 — um grupo de música antiga que se chamava Allegretto, e nós propusemos a Elyanna que fôssemos grupos representativos do CPM, abatendo uma carga horária como professores para nos dedicarmos a esse trabalho de música de câmara. Ela aceitou e criamos um regimento, em que foi determinado que a gente se apresentaria no mínimo duas vezes por semestre”, explica Sérgio Campelo, diretor artístico do SaGrama e professor de flauta do CPM.
Outro grande capítulo de sua vida que mereceria uma abordagem à parte é a sua atuação musical, inclusive para além do universo da música clássica. Além de exímia na execução de grandes obras de Chopin, Schumann, Grieg e afins, Elyanna abraçou — com igual competência e fluidez de execução — o jazz, o choro e a música pernambucana, especialmente as obras de Capiba (interpretações que, afortunadamente, foram disponibilizadas no YouTube, no canal do Instituto Piano Brasileiro).
Construir a lista de parceiros musicais de Elyanna, por sua vez, é uma tarefa de responsabilidade. Citemos, por ora, o amigo e também pianista Caneca, com quem ela gravou o CD duplo O piano em Pernambuco (2000), álbum inigualável em importância histórica, com produção da LG Projetos e Produções Artísticas — selo pelo qual Elyanna havia lançado Simplesmente Capiba, em 1995, reunindo valsas, maracatus e choros de autoria do compositor surubinense.
José Renato Accioly, regente assistente da Orquestra Sinfônica do Recife e regente titular da Orquestra Criança Cidadã e da Orquestra de Câmara de Pernambuco, resume a personalidade de Elyanna, relembrando a última atuação junto à pianista, antes da pandemia, em um concerto com a Orquestra de Câmara de Pernambuco promovido pelo CPM:
“Elyanna Caldas é referência, para quem conviveu com ela, de alegria, de leveza, com um envolvimento visceral com a música. Na última vez em que a gente trabalhou junto, em um concerto de Mozart para piano e orquestra (não me recordo qual, especificamente), foi muito interessante como ela, mesmo com a idade já avançada, mantinha essa jovialidade e essa relação tão linda com a música. Ela deixou para nós um exemplo de como se deve estar emocionalmente ligado à música”.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico de música, pesquisador e biógrafo.