Aguinaldo Silva escancara sua vida querubina
Autobiografia "Meu passado me perdoa - Memórias de uma vida novelesca" revela a trajetória, antes da fama, do autor pernambucano de novelas da TV Globo
TEXTO Carol Botelho
09 de Setembro de 2024
Autor de novelas exibe seu talento literário ao revelar vida antes da fama
Foto Divulgação
Eram onze horas da noite quando um bebê resolveu trocar o escurinho do ventre materno pela luz da sala de parto. A luz, porém, durou pouco: um trovão berrou no céu tão alto quanto o brado do mais novo ser humano que chegava a este mundo, num breu danado. A trovoada causou um curto-circuito. Antes fosse. Naquele 7 de junho de 1943, Carpina, município pernambucano a 43 quilômetros do Recife, não contava com as benesses da luz elétrica. O efeito especial do nascimento de Aguinaldo Silva foi invenção de sua mãe, Maria do Carmo Ferreira da Silva, que queria fazer crer ao filho que sua estreia aqui tinha sido especial, uma espécie de premonição para o sucesso profissional que o filho viria a ter ao longo da vida.
Foi nesse realismo fantástico usado por Maria do Carmo que Aguinaldo Silva foi buscar inspiração novelística - basta lembrar de Tieta (1989), Pedra sobre pedra (1992) e Fera ferida (1994). Mais recente e realista, Senhora do destino (2005) tornou-se popular principalmente por conta da vilã Nazaré Tedesco, vivida por Renata Sorrah. Maria do Carmo - não por acaso o nome da mocinha da novela, interpretada por Susana Vieira - estava certa: Aguinaldo ficaria famoso. Mas só dali a um bom tempo. A infância e a adolescência do carpinense correu como a de todo pobre, feio, esquisito e efeminado, como ele mesmo se define, no primeiro capítulo da autobiografia Meu passado me perdoa - Memórias de uma vida novelesca (Editora Todavia, 2024). De fato, daria um folhetim para a televisão, cheio de histórias e personagens complexos, que ele trata de nos revelar com a maestria literária que o fez escrever oito livros - nenhum deles, porém, alcançou o sucesso das novelas. Foram 16.
Atualmente o dramaturgo reside em Lisboa e talvez a distância geográfica tenha lhe dado a coragem necessária para expor de maneira tão escancarada sua vida particular, seus relacionamentos amorosos, a descoberta do sexo e da homossexualidade, e a convivência com personagens da vida real tão absurdos que viraram inspiração para as novelas. O livro é quase uma conversa de pé de ouvido. Ficamos íntimos de Aguinaldo, como se ele fosse um personagem de um romance. Um herói e anti-herói com o qual prontamente nos identificamos, sinceramente.
Se, na primeira infância, Aguinaldo aceitou calado as provocações e violências dos colegas da escola, abusos e assédios sexuais nas ruas, logo tratou de aprender a se defender já no início da adolescência queer, nos anos 1950. Tais histórias, garante o autor, nunca haviam sido reveladas até agora. "Quero que meus possíveis leitores sejam os primeiros a tomar conhecimento desses meus verdes anos tão melodramáticos".
Em aventuras noturnas pelos lugares underground do Recife, como o Quem-Me-Quer, um jardim às margens do Capibaribe, na rua da Aurora, e os arrecifes de corais do Porto do Recife, ao lado da turma inseparável de amigos que se autodenominava "arlequetes" e chamavam uns aos outros carinhosamente de "frangos". Quem passava a fazer parte do grupo era "batizado" com novo nome. Aguinaldo virou Querubina. "Meninos entre os 14 e os 16 anos, mas já entregues aos tortuosos prazeres da chamada vida airada", descreve o autor. Não era incomum levar carreira e surra da chamada Turma da Lambreta, os “filhinhos de papai” da época. "Eles eram irresponsáveis, cruéis, violentos e pérfidos", descreve Aguinaldo. Um deles, aliás, revela o autor, era filho mais velho de um usineiro, "que anos depois virou político em Brasília a ponto de chegar a ministro de alguma coisa inútil e cara", denuncia o autor.
Essa é a melhor e mais eletrizante parte do livro que, para sorte do leitor, segue por quase toda a autobiografia. A parte destinada às novelas talvez seja mais monótona, porque é monótona a existência de uma pessoa com um lar, um emprego, uma rotina. Mas para quem curte obras-primas da teledramaturgia como Roque Santeiro (1986) e Vale Tudo (1988), vai gostar de entrar nos bastidores da produção.
As arlequetes levavam uma vida dupla - de dia estudavam e trabalhavam, vestidas como manda a normalidade. À noite, se transfiguravam, "como borboletas que saíssem do casulo logo que escurecia para regressar a ele só no final da madrugada”. Para o leitor recifense ou íntimo das paisagens da capital pernambucana, muitos lugares citados por Aguinaldo são facilmente reconhecidos. "Lembro-me como se fosse hoje das muitas vezes que corri pela Avenida Guararapes com os lambreteiros no meu encalço, entrei no prédio dos Correios cujos meandros conhecíamos nos mínimos detalhes", recorda.
De família "pobre de jó", Aguinaldo não pode se dar ao luxo de fazer faculdade. Mas sempre foi um leitor voraz e na escola se apaixonou pelo estudo do latim. Até os 14 anos, os pais se esforçaram para pagar as mensalidades do Colégio Americano Batista, no bairro da Boa Vista. Aguinaldo correspondeu ao investimento tirando ótimas notas. Depois dessa idade, teve que arrumar emprego para pagar os estudos. Foi trabalhar na zona portuária do Recife, quando passou a frequentar os bares e bordéis da região. “Em matéria de experiência de vida, foi nesse período que adquiri todos os diplomas de que precisava para seguir na minha caminhada até este momento em que agora escrevo, e você, que porventura me lê, decide se cumpro ou não essa empreitada com algum êxito".
Também vale muito a pena conferir a face jornalista de Aguinaldo. Ele mergulhou no gênero policial e se tornou referência, trabalhando em diversas redações do Jornal do Commercio e Última Hora Nordeste, do Recife, e O Globo, do Rio de Janeiro. Também foi um dos fundadores de um jornal underground revolucionário, Lampião, primeiro periódico dedicado ao público queer, lançado em plena ditadura militar.
Quando eclodiu o golpe de 1964, o jornalista passou a morar no Rio de Janeiro, na Lapa, quando aquele bairro ainda não tinha sido revitalizado, num processo de higienização e gentrificação, varrendo bares, boates e as pessoas underground que os habitavam, dia e noite. Aguinaldo conheceu prostitutas, cafetões, ladrões e golpistas. Ficou amigo de alguns deles da mesma forma que, mais tarde, de estrelas de alto quilate da poderosa TV Globo.
De volta ao Recife aos 80 anos, em celebração com a família, um satisfeito e feliz Aguinaldo concluiu: “não sou mais feio, nem pobre, e muito menos esquisito. Agora, quanto a ser afeminado… Bem, a verdade é que de vez em quando, como se diz, ainda solto a franga”.
CAROL BOTELHO, repórter especial das revistas Continente e Pernambuco