Indicações

Jean-Claude Bernardet, um crítico incontornável do cinema brasileiro

Obras escritas pelo crítico, historiador, teórico do cinema, escritor, ator, cineasta e roteirista são fundamentais para conhecer e entender os caminhos da arte cinematográfica no país

TEXTO Alexandre Figueirôa

14 de Julho de 2025

O teórico de cinema, crítico cinematográfico, cineasta e escritor brasileiro Jean-Claude Bernardet participa da Mostra de Cinema de Tiradentes (MG), em janeiro de 2013

O teórico de cinema, crítico cinematográfico, cineasta e escritor brasileiro Jean-Claude Bernardet participa da Mostra de Cinema de Tiradentes (MG), em janeiro de 2013

Foto Overmundo/Wikimedia/Creative Commons

A importância do crítico, historiador, teórico do cinema, escritor, ator, cineasta e roteirista Jean-Claude Bernardet para o cinema brasileiro é inquestionável. Ele produziu algumas das obras fundamentais para conhecer e entender os caminhos da arte cinematográfica no país, sobretudo a partir da publicação, em 1967, de Brasil em tempo de cinema. Qualquer estudo ou pesquisa sobre os movimentos do Cinema Novo, do Cinema Marginal e a produção de documentários, terá que recorrer aos seus trabalhos incontornáveis como O nacional e o popular na cultura brasileira: Cinema (1983), em colaboração com Maria Rita Galvão, O voo dos anjos (1991), Historiografia clássica do cinema brasileiro (1995), e Cineastas e imagens do povo (2003), entre outros.

Como muitos cinéfilos de sua geração, Bernardet se aproximou do cinema participando do movimento cineclubista, o que o levou a escrever as primeiras críticas. Com apoio do crítico e historiador Paulo Emílio Salles Gomes, Bernardet foi trabalhar na Cinemateca Brasileira e passou a colaborar com o jornal O Estado de S.Paulo e se notabilizou por seu olhar preciso, acurado e muitas vezes provocador. Concentrado, desde então, na análise da produção brasileira, suas observações sempre primaram pela originalidade e estímulo à liberdade de pensamento.

Bernardet sempre afirmava que um dos trabalhos do crítico era o diálogo com a produção e a criação. Em seus escritos, alinhava abordagens ideológicas, estéticas, com o contexto social e cultural, algo muitas vezes incompreendido pelos seus interlocutores, entre eles, os realizadores do Cinema Novo, sobretudo Glauber Rocha. O diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) não concordou com o diagnóstico de Bernardet feito em Brasil em tempo de cinema sobre o caráter revolucionário do movimento cinemanovista, pois, segundo o crítico, os filmes refletiam muito mais as questões da classe média intelectualizada a qual pertenciam os cineastas do que os anseios populares.

Bernardet ajudou a criar o curso de cinema da Universidade de Brasília e foi professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Cassado em 1968, pelo Ato Institucional nº 5, foi reintegrado a ECA pela Lei da Anistia em 1979. Apesar da origem europeia - nasceu na Bélgica, viveu em Paris até os 13 anos e veio para o  Brasil com os pais, se naturalizando em 1964 - ele se integrou ao pensamento cultural brasileiro, propondo diálogos e desenvolvendo reflexões sobre a função social do cinema. Nesse sentido, outra obra-chave por ele produzida foi o livro Cineastas e imagens do povo em que analisa os documentários Aruanda (1959), de Linduarte Noronha; Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, e Opinião pública (1967), de Arnaldo Jabor. Nele, Bernardet mostra as tensões estéticas e ideológicas na representação dos temas populares e um certo incômodo pela forma como a miséria era filmada no Brasil. Numa edição posterior, em 2003, ele acrescentou um estudo sobre Cabra marcado para morrer (1981), de Eduardo Coutinho, filme que considerava um marco do documentário brasileiro.

Bernardet foi um crítico cujas reflexões e escrita nunca se cristalizaram, algo que pode ser mensurado em O Voo dos Anjos (1991), obra em que ele, mais do que escrever um ensaio sobre filmes de seus cineastas brasileiros prediletos – Júlio Bressane e Rogério Sganzerla –, reavivou sua própria trajetória crítica. Ele repensa o modelo de análise de textos cinematográficos, ao qual estávamos habituados, e defende a necessidade de transformação para buscar outros caminhos que permitam uma abordagem mais atual de uma obra cinematográfica.

Além da crítica e estudos teóricos, Jean-Claude Bernardet viveu o cinema com intensidade, escrevendo roteiros, dirigindo filmes e atuando como ator, principalmente após passar a conviver com o HIV e ter problemas com a visão. Entre os seus trabalhos mais relevantes estão o de roteirista com Luis Sergio Person do filme O caso dos irmãos Naves (1967), assistente de direção de João Batista de Andrade em Gamal, o delírio do sexo (1970), co-roteirista de Sérgio Ricardo em A noite do espantalho (1974), diretor de São Paulo, sinfonia e cacofonia (1994) e ator em Filmefobia (2009), de Kiko Goiffman, que lhe rendeu o prêmio de Melhor Ator no Festival de Brasília.

O crítico aparece também como ator no filme Pingo d’água (2014), produção paraibana de Taciano Valério. Um trabalho experimental em que Bernardet, ao lado do ator Everaldo Pontes, atua como fio condutor da narrativa. Em 2017, atuou com Helena Ignez no misto de documentário e drama Antes do fim, de Cristiano Burlan, Bernardet e Ignez confrontam as suas próprias mortes e as de suas imagens no cinema nacional. Esta diversidade de papéis no cinema é reveladora da inquietação de Bernardet, algo que o levou também a literatura em que não podemos esquecer os livros que escreveu, mesclando ficção e memória pessoal; como pode ser visto em Aquele rapaz (1990) e que prosseguiu, em 1996, com A doença, uma experiência, a partir de suas vivências e, em 2021, com Corpo crítico. Na ficção ele publicou ainda Os histéricos (1993) e Céus derretidos (1996).

Em terras pernambucanas

Em Pernambuco, na década de 1970, Jean-Claude Bernardet, por conta de sua ligação com a pesquisadora Lucila Bernardet, com quem era casado, e pela aproximação com o cinema produzido em Super 8 e as pesquisas em torno do cinema documentário, teve sua presença e contribuição cultural no Recife registrada. Lucila Bernardet era colaboradora da Fundação Cinemateca Brasileira de São Paulo e esteve no Recife realizando uma pesquisa para sua tese O cinema pernambucano de 1922 a 1931. Em 1972, ela retornou e passou quase uma semana na cidade colhendo depoimentos dos pioneiros do Ciclo do Recife, entre eles, Jota Soares.

Fernando Spencer noticiou a visita no Diario de Pernambuco. Segundo a reportagem, o filme seria em 35 mm, em cores, e teria direção e roteiro de Jean-Claude Bernardet, que era apresentado como o autor de Brasil em tempo de cinema. Além da Cinemateca Brasileira, noticiava-se que o filme tinha também o apoio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a direção de fotografia estava a cargo de Jorge Bodanzky. O filme, porém, nunca foi concluído.

A relevância de Bernardet no cenário do cinema brasileiro não era ignorada pela crítica pernambucana. Em outubro de 1967, Spencer resenhou o filme O caso dos irmãos Naves e assinalou o trabalho dele como roteirista: “com um roteiro bem trabalhado por Jean-Claude Bernardet, o diretor Sérgio Person conseguiu realizar um trabalho válido, sério e digno para o cinema nacional”. Na Jornada de Cinema da Bahia de 1973, em que uma grande quantidade de filmes de Pernambuco estava na mostra competitiva, Bernardet foi um dos jurados. Em  uma nota sobre o evento, Spencer conta que indicou ao superoitista Ricardo de Almeida, co-autor de O manicômio, a presença de Bernardet em um debate. Para sua surpresa, o jovem lhe perguntou “Quem é ele?” Spencer usou o episódio para assinalar que “a juventude 70 não é mais aquela da década de 60”. Ao explicar ao jovem realizador que “se tratava do famoso crítico responsável pelas excelentes análises do semanário Opinião, o rapaz lhe responde: já li muito suas críticas, mas não ligo para nomes”.

Se tivesse ouvido essa conversa, Jean-Claude Bernardet certamente não ficaria chateado. Na sua trajetória ele sempre mostrou uma grande capacidade de lidar com o novo e revisar sua opinião sobre os temas que o interessavam. Na década de 1980, quando o entrevistei para meu trabalho sobre o Ciclo do Super 8 em Pernambuco ele me falou que  considerava os filmes feitos em Super 8 obras cuja principal característica eram serem efêmeras. Mas durante a Jornada de 73 ele acompanhou de perto as produções de Pernambuco e Bahia e reconheceu o valor dessa movimentação como afirmou na época: “se quisermos dizer que se cumpriu um objetivo foi se ter mantido durante um certo tempo uma produção em ação, possibilitando a determinadas pessoas uma aprendizagem da técnica - embora fraca devido ao equipamento - e da linguagem cinematográfica”.

Nos anos seguintes, Bernardet esteve no Recife algumas vezes para participar de encontros e seminários. Em novembro de 1974, junto com Alex Viany, Geraldo Sarno, Paulo Emílio Salles Gomes, José Carlos Avelar, entre outros, ele participou da I Mostra e I Simpósio do Filme Documental Brasileiro promovido pelo então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Em abril de 1977, aconteceu no Teatro Hermilo Borba Filho, em Olinda, um seminário sobre o cinema brasileiro, promovido pela Federação Nordestina de Cineclubes e Instituto Goethe de Salvador, onde Bernardet trabalhava. Além de coordenar o seminário, o crítico lançou seu livro A Guerra dos Contestados. No mesmo ano, em novembro, Bernardet realizou a palestra “Por um documentário de intervenção” na II Mostra e II Simpósio Sobre o Filme Documental Brasileiro.

O Som ao Redor

A presença do cinema feito em Pernambuco com destaque no cenário nacional a partir da Retomada não passou despercebida por Bernardet. No Festival de Cinema de Tiradentes, em 2013, em uma mesa sobre descentralização no cinema brasileiro ele observou que “por mais que se afirme o contrário, nos estados fora do eixo Rio-SP, mesmo o cinema dito independente, vez por outra, expressa um receio da perda de identidade regional”.

Bernardet lembrou que os filmes produzidos em Rio e São Paulo até os anos 90 eram considerados nacionais e, os produzidos fora de lá, regionais. Naquele momento o regionalismo estava atrelado a uma questão de poder político e econômico e era preciso lutar para acabar com aquilo. Quando esta relação se tornou mais complexa, houve um receio da parte dos realizadores das particularidades regionais se diluírem. Bernardet lembrou o movimento pernambucano Árido Movie. “Ele rompia esteticamente com o passado e ao mesmo tempo propunha uma reconstrução da identidade regional”.

Concluindo sua reflexão, Bernardet argumentou ainda que os “filmes vindos de diversas partes do país, hoje, são marcadamente urbanos e a construção de um novo imaginário passa pela cidade”. Ele evocou o filme O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, aceito como filme nacional, mas por outro lado, para ele, um filme extremamente pernambucano que revisita o pensamento de Gilberto Freyre. O crítico lançou então a provocação: “esta revisitação que se faz por meio da cidade é uma questão só nordestina ou também brasileira?”. Uma resposta que mesmo após duas horas de discussão ninguém conseguiu dar com muita convicção. Bernardet vai fazer falta.

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