Depois do incêndio
Refugiado na arte, na história e na arqueologia, o escritor Fernando Monteiro critica mundo atual
TEXTO Marcelo Abreu
01 de Abril de 2024
FOTO Leopoldo Conrado Nunes/Divulgação
Na noite do domingo, 2 de setembro de 2018, o escritor, poeta e cineasta Fernando Monteiro assistiu ao vivo pela televisão, aterrorizado como muitos brasileiros, o incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista. Tinha uma profunda ligação com o local, devido ao seu interesse por arte, história antiga e pelo acervo egípcio mantido no local. Naquela noite, nem conseguiu dormir.
Monteiro conta em detalhes como algumas múmias e artefatos egípcios vieram parar no Brasil, transportadas por um mercador italiano chamado Nicolau Fiengo, que se dirigia à Argentina, no início do século XIX. Ao fazer uma escala no Rio de Janeiro, o acervo acabou ficando em solo brasileiro, sendo posteriormente comprado por José Bonifácio de Andrada e Silva, em 1826, em nome do imperador. O acervo foi posteriormente incrementado por D. Pedro II, numa viagem ao Egito, e depois incorporado ao patrimônio público, sendo mantido por quase dois séculos, até ser quase todo queimado no incêndio.
Inspirado pelas imagens horrorosas da Quinta da Boa Vista, Monteiro escreveu um poema longo, intitulado Museu da noite, publicado em livro ainda naquele ano, “para descrever o Museu ardendo/ em frente do lago de cisnes / importados”. No poema, ele diz: “Eu não dormi nesta / – Recife de lama entre as pontes – / eu não preguei olho / na sopa fervente do vermelho / e do negro do Ibope marcando / pontos top para a TV mais perto / do calor da fogueira gigante”.
Mal sabia o poeta que, um ano depois, em 2019, um curto-circuito em um ventilador iria provocar um incêndio no seu próprio apartamento, onde morava havia 33 anos, no Bairro de Boa Viagem, destruindo 80% de sua biblioteca, o equivalente a cerca de 1.800 livros. O fogo atingiu diretamente o quarto onde mantinha seu acervo, com duas das quatro paredes repletas de livros, do piso ao teto. A alta temperatura e a fuligem danificaram outros cômodos. Felizmente, ninguém se feriu.
Muita coisa foi perdida. As telas que mantinha nas paredes queimaram facilmente. Havia obras de artistas como Plínio Palhano, Aprígio Fonseca, Francisco Brennand, Alberto Lacet, Odilon Cavalcanti e José Barbosa. Perderam-se também algumas telas pequenas, compradas no exterior. As obras em madeira ficaram muito chamuscadas.
Sobre a perda dos livros, a atitude de Monteiro é de resignação. Ele conta que alguns amigos lhe mandaram exemplares “com a melhor das intenções” para repor alguns volumes perdidos. Mas o escritor afirma que não quis repor. Encara a posse de exemplares diferentes das obras que já tinha lido como uma “coisa melancólica demais”. “Você lê um livro, faz umas anotações, marca, então o livro é seu de direito. Tudo anotado, tem um postal dentro, uma marca na página e você não substitui isso com uma coisa de sebo.” Dá como exemplo a obra O leopardo do italiano Tomasi di Lampedusa. “É um livro que me apaixona, li e reli duas vezes. Poderia ter comprado de novo, mas eu queria aquele meu exemplar que estava todo anotado. Eu não ia trocar um livro que eu tinha lido e relido por um exemplar novo em folha. Tenho uma grande saudade, às vezes vontade de comprar. Mas prefiro ficar com os livros que foram salvos, como é o caso dos de Lawrence. Mesmo chamuscados, dá para suportar.”
Thomas Edward Lawrence (1888-1935), mais conhecido como Lawrence da Arábia, arqueólogo e militar britânico que atuou na luta dos povos árabes contra o Império Otomano, no início do século XX, é há muitos anos uma das grandes fascinações de Monteiro. O autor recifense publicou um livro sobre o explorador pela primeira vez em 1987, T.E. Lawrence: o triunfar da náusea (Editora Expressão). Em 2000, saiu pela Record uma nova edição, bastante modificada, com o título de T.E. Lawrence: morte num ano de sombra. Em 2005, Monteiro traduziu uma das obras de Lawrence intitulada A matriz. No seu apartamento atual, no Bairro das Graças, mantém na parede da sala de visitas uma reprodução pequena de uma tela do famoso retratista galês Augustus John, que mostra o amigo Lawrence. Ao lado, Monteiro mandou fazer e expõe uma cópia maior do mesmo quadro de John, em tamanho idêntico ao original, feita sob encomenda pelo peruano Rolando Villa.
O escritor guarda também um pequeno espelho militar (da primeira década do século XX) encaixado em estojo de madeira que pertenceu ao então tenente Lawrence, lotado na seção cartográfica do exército imperial inglês no Cairo, durante o início da Primeira Guerra Mundial. Lawrence era até então conhecido como um arqueólogo de Oxford que atuava na região de Carchemish (atualmente fica entre a Turquia e a Síria) quando foi recrutado para ser oficial especialista em mapas. O espelho que lhe pertenceu foi arrematado na Sotheby’s, tradicional casa de leilões londrina. Há também na casa de Monteiro uma pequena carteira plastificada com uma foto de Lawrence em 1889, com um ano de idade. Um singelo objeto de família que entrou no comércio online e acabou vindo parar na mão de um colecionador da América do Sul. E, claro, não poderia faltar em sua casa uma antiga edição brasileira da principal obra de Lawrence, Os sete pilares da sabedoria.
De alguns livros danificados no incêndio, Monteiro resgatou algumas capas, mesmo com bordas chamuscadas, que mantém hoje em duas pastas cuidadosamente guardadas. Entre elas, está um exemplar do seu próprio livro sobre T. E. Lawrence, que tem uma etiqueta colada no verso da capa indicando que pertenceu à “Library of Peter O’Toole” (a Biblioteca de Peter O’Toole”). Como assim? Uma edição em português fazia parte do acervo do ator inglês que interpretou o personagem Lawrence da Arábia, no filme homônimo de 1962, realizado por David Lean, um dos clássicos do cinema? Fernando Monteiro explica a história: A biblioteca de O’Toole (1932-2013) foi desmembrada, após a morte do ator, e o exemplar de T.E. Lawrence: morte num ano de sombra, de sua autoria, foi colocado à venda num site de internet. Adquirido por Monteiro, voltou, dessa forma, às mãos do próprio autor do livro, no Recife. E recentemente ainda foi resgatado de um incêndio caseiro, num episódio digno de uma trama romanesca.
A CABEÇA NO ENTULHO
Fiel ao seu interesse por antiguidades e Oriente Médio, Fernando Monteiro mantém em sua posse uma escultura representando a cabeça de Nefertite (1370 -1330 a.C.), rainha da 18 dinastia do Egito, mulher do faraó Aquenáton. A peça foi adquirida em 1983 num antiquário da cidade de Jericó, na região que chegou a ser dominada pelo Egito na fase expansionista, no segundo milênio a.C. A cabeça provavelmente fez parte, num passado remoto, de uma estátua de corpo inteiro, e vem sobrevivendo ao longo de milênios. Desta vez, durante o incêndio, caiu de uma estante em Boa Viagem e se partiu em três partes. A parte central, compreendendo nariz e boca, foi recuperada depois do incêndio, no chão, quebrada, e é mostrada como curiosidade no seu apartamento atual.
Ao ouvir a observação do repórter de que a cabeça de Nefertite “já resistiu a 3 mil anos de terremotos, guerras e saques”, Fernando Monteiro rebate, bem-humorado, que ela “nunca havia resistido a um incêndio em Boa Viagem”. “Ela tinha restos de cor, não era toda acinzentada. Mas eu gosto do pedaço que deu para recuperar, achei até bonito como ficou. Agora decepada, ficou mais parecida com a rainha. A perda da coroa eu lamento. Eu encontrei (a parte que mostra o nariz e a boca) no meio da bagunça.” O fato, ironicamente, lembra o título de um dos seus romances mais conhecidos, A cabeça no fundo do entulho, de 1999.
Entre excentricidades de colecionador, Monteiro comprou, também pela internet, uma cópia em 35 milímetros do filme Ivã, o terrível, do diretor soviético Serguei Eisenstein. A cópia foi exibida pelo escritor numa sessão no Cinema São Luiz, em 2017, numa dessas ocasiões que fazem a festa de cinéfilos e entusiastas do cinema clássico, feito em película. Como o filme chegou às mãos de Monteiro é mais uma dessas pequenas aventuras curiosas. Ele comprou pelo site Mercado Livre e recebeu, por remessa aérea, uma cópia em boa qualidade, legendada em português, do filme soviético realizado em 1944 (a cópia, desde então, está guardada no próprio São Luiz). De quebra, recebeu do vendedor um trecho de película que contém o trailer do cultuado filme Os brutos também amam (1953), de George Stevens. Shane, título original como gosta de usar o escritor, é considerado um clássico do faroeste, estilo que representa uma outra paixão de Monteiro, sobretudo os filmes considerados como “westerns psicológicos”, que ressaltam a dualidade e as contradições dos personagens, fugindo da simplificação do bem contra o mal de muitos fitas comerciais.
Uma outra aquisição curiosa foi a de um púgio, uma espécie de punhal usado pelos gladiadores na Roma Antiga. A arma havia sido encontrada por um soldado da Força Expedicionária Brasileira, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, numa casa bombardeada. Há alguns anos, o neto do pracinha propôs a Monteiro, pela internet, a troca da arma por uma peça que faz parte do motor de uma lancha. O escritor comprou a peça e mandou. A estranha transação foi concluída e o púgio romano veio parar no Recife para tornar-se mais um sobrevivente do incêndio.
FILMES “PERDIDOS”
Ironicamente, o incêndio não contribuiu para o desaparecimento de cópias dos seus filmes guardados no apartamento porque eles já haviam se dispersado antes. Trata-se de um conjunto de 15 documentários de curta-metragem, realizados nas décadas de 1970 e 1980, e que, ao longo dos anos, foram se deteriorando, alguns em casa, outros em laboratórios de cinema até que, hoje, Monteiro os dá como desaparecidos.
Em parte de sua obra literária e em sua vida pessoal, o “ex-cineasta”, como se define, tem cultuado o gosto pelas referências históricas, artísticas e, de certo modo, arqueológicas. Agora é a sua própria obra cinematográfica que poderia estar precisando de uma escavação arqueológica.
Mas ele não demonstra arrependimento por não ter conservado melhor os seus filmes. “Não quero ser nenhum filósofo, mas acho que as coisas são para se perder, de certa forma. Tem gente que perde o casamento, o passaporte, a vergonha”, afirma, resignado, com um leve sorriso. “Tudo é para se perder.”
E vai mais além: diz que “dá uma sensação agradável” que os filmes tenham desaparecido. “Eu não gostaria de ficar conservando como uma coisa refrigerada, com medo (de perder). Porque filme é uma coisa que se data pela própria impregnação do tempo.”
Monteiro conta, aparentemente sem muito interesse, algumas peripécias envolvendo a manutenção do acervo. Um dos filmes, Simetria terrível e mecânica de João Câmara, de 1974, foi perdido dentro da TV Globo para onde o pintor tinha levado os rolos de película, que lhe pertenciam. Um outro, Sociologia do caminhão, com roteiro inspirado num livro de Marcos Vinicios Vilaça, nem chegou a ser concluído. “Foi perdido no laboratório, que me indenizou ridiculamente.”
Outros, ele mesmo colocou dentro de uma caixa de isopor em casa. Tempos depois, viu que alguns filmes tinham derretido parcialmente, provocando um furo que atravessava a caixa. “O material estava colado no chão, junto da parede externa. Provavelmente o calor provocou o derretimento.” Nesse episódio, lá se foram suas cópias pessoais de filmes como de Brennand: sumário da oficina pelo artista, Saideira, Bumba-meu-boi da vida, Leilão sem pena, e, talvez, O pharol, de 1982. Ele encaminhou o material ao Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe), mas foi informado de que o material estava inutilizável. “Enfim, não tenho negativo nenhum.”
Outros curtas, ainda, foram encaminhados ao laboratório de revelação Líder, uma prática usual entre cineastas. A ideia era que o laboratório armazenasse os filmes em condições melhores para, quando fosse necessário, fazer cópias deles. Certa vez, o laboratório lhe avisou por carta que ele devia retirar os filmes de lá porque a empresa ia se desfazer do arquivo. “Eu não fiz nada. Pegar um avião, ir lá, entrar em contato com eles, sei lá. Deixa isso se perder. Talvez seja um pouco da minha natureza, já que tendo a achar que as coisas são para serem perdidas mesmo, entendeu?”.
O cineasta conta que não chegou a passar nada para DVD porque tem “certa antipatia por esses recursos”. “Fiz cerca de 15 filmes em uma outra época, em outro planeta. Fiz filmes ainda na época em que havia um artesanato, você pegava nos filmes, montava em uma sala. Tive a experiência deles desaparecerem e não ficar nada no lugar. Você vê curta no cinema hoje? Não tem nem cinema mais.”
Apenas um dos filmes, Cultura marginal brasileira, pode ser encontrado no Youtube, fato que o próprio Monteiro, com sua habitual nonchalance, disse que nem sabia. Ele pode não ter cuidado de suas próprias películas mas, por sorte, existem as instituições que mantém seus acervos e guardam parte da obra do cineasta. O Mispe, por exemplo, tem cópias em 16mm dos filmes Visão apocalíptica do radinho de pilha (1972), Brennand: sumário da oficina pelo artista (1973), Filme de percussão mercado adentro (1974), Escuriais rústicos (1976) e O sono da pedra (1982).
A Fundação Joaquim Nabuco tem no seu acervo cópias em 16mm e em DVD de filmes como Cultura marginal brasileira (1974), Saideira (1978), Bumba-meu-boi da vida (1979), Oh! Segredos de uma raça (1980) e Leilão sem pena (1981) – este em bitola super-8. Portanto, mesmo considerando-se a eventual fragilidade das cópias em película, uma parte considerável da filmografia está, de algum modo, preservada.
Além dos títulos citados, compõem a obra cinematográfica de Monteiro o curta Arquitetura rural nordestina (1976), e um projeto não concluído, The masters and the slaves, baseado no livro Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre. Além disso, realizou três curtas para a Fundação Friedrich Naumann, da Alemanha, sobre cooperativismo no Nordeste. Desses, lembra apenas de um dos títulos: O senhor de Camaragibe. Por volta de 1970, fez também pequenos filmes educativos para a TV Universitária, para serem inseridos nas transmissões de aulas de um Curso de Alfabetização de Adultos.
Fernando Monteiro recorda que os cineastas brasileiros ligados ao Cinema Novo tinham a sensação de descobrir o Brasil e ao mesmo tempo revelavam o país para seus próprios habitantes. “Não tinha essa vulgaridade de obter imagens a toda hora, até no celular. É uma coisa que ficou vulgarizada hoje.”
Sua trajetória no cinema começou com a participação, como assistente de produção, no filme A compadecida, de George Jonas, filmado na cidade de Brejo da Madre de Deus, em 1968. Depois fez cursos de cinema em Roma, na Itália, onde acompanhou, em palestras, e viu de perto, ídolos seus como o cineasta Pier Paolo Pasolini, o ator Marcello Mastroianni e o escritor Alberto Moravia.
Quando fazia documentários, Monteiro chegou a elaborar um “Projeto Cinematográfico de Pesquisa Sociológica, Antropológica e de Comunicação Social”, inspirado por seu amigo Alberto Cavalcanti (cineasta brasileiro então radicado na Europa), que poria em prática uma certa “antropologia da emergência”, isto é, a necessidade filmar coisas que estavam desaparecendo. O primeiro filme realizado neste sentido foi Visão apocalíptica do radinho de pilha, de 1972, que foi selecionado para o Festival de Guadalajara, no México, e tratava do pequeno aparelho como agente modificador de costumes no ambiente sertanejo nas últimas décadas do século XX. O segundo título foi Bumba-meu-boi da vida, de 1979.
Todos esses curtas eram produzidos no formato profissional, em bitola de 35 milímetros, e exibidos para cumprir a chamada Lei do Curta-metragem, instituída em 1975, que obrigava os cinemas a passarem, antes do filme principal estrangeiro, sempre um curta brasileiro. Os produtores dos curtas tinham retorno financeiro baseado em um percentual da bilheteria. Na época, não havia anúncios comerciais no cinema. Antes do filme principal eram exibidos trailers das próximas atrações, alguns cinejornais (como o Canal 100, sobre futebol), e um curta-metragem. Os curtas percorriam, assim, os cinemas de todo o Brasil. A produção deles era uma atividade profissional que não dependia das atuais leis de incentivos. Entretanto, esse modelo de produção ruiu com a extinção da Embrafilme, em 1990, no começo do governo Collor.
Após as temporadas de exibição já concluídas, Monteiro recebia os filmes de volta, alguns com duração bastante reduzida porque iam quebrando e sendo emendados nos próprios cinemas. “Alguns chegavam até remontados”, lembra Monteiro, divertindo-se com a lembrança. “A gente tinha altas discussões teóricas na hora de montar o filme e um projecionista qualquer, em um cinema por aí, remontava o filme de qualquer jeito, desatento, conversando sobre futebol.”
Os filmes de Monteiro compõem um interessante retrato da cultura periférica nordestina nos anos 1970 e 1980, com uma abordagem etnológica, ainda mais curiosa hoje por estar distante dos modismos da militância identitária que dominam a atual produção audiovisual.
Monteiro sempre trilhou um caminho independente de grupos. Havia até um certo afastamento entre ele e o pessoal que fazia um cinema mais alternativo e pobre em recursos. Um reflexo ainda disso é que na Antologia Cinema Pernambucano, acervo de mais de 200 filmes feitos no estado desde 1920, lançada em 20 DVDs, apenas três obras de Monteiro estão presentes, enquanto outros realizadores locais chegam a ter mais de 10 trabalhos incluídos.
VULGARIZAÇÃO DO PÚBLICO
Apesar de já ter uma trajetória consolidada no cinema de documentários em curta-metragem e como poeta, Fernando Monteiro ficou mais conhecido no final dos anos 1990, com a publicação de dois romances: Aspades, Ets, etc, que havia saído em Portugal, em 1997, e foi publicado pela Editora Record e, logo em seguida, A cabeça no fundo do entulho (1999), premiado pela revista Bravo na categoria Literatura/Revelação. Nos anos seguintes, publicou ensaios como Armada América (2003) e outros romances como A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro (2001). Voltou a publicar poesia com Vi um retrato de Anna Akhmátova (2009) e lançou o que considera o seu último romance em 2013, O livro de Corintha.
Há mais de uma década ele se confessa sem ânimo para grandes aventuras literárias e para voltar ao romance, devido ao seu profundo desprezo pela indústria cultural e pelo perfil do leitor atual. Em uma entrevista longa, dada a este repórter em 2010, já dizia: “Como escritor, não estou muito interessado em vender livros porque eu não me interesso pelo perfil de leitor que existe hoje. Eu tenho um raciocínio muito radical a respeito disso. O leitor é de péssima categoria.”
Atualmente, aos 74 anos de idade, ele diz que novos fatores vieram a complicar essa relação com o leitor, fazendo com que as coisas se vulgarizassem “numa dimensão que jamais imaginei”. A difusão da chamada inteligência artificial é uma delas. “Digamos que, agora, as coisas emanadas do território da futurologia até nos ameaçam. Você não pode mais acreditar em nenhum depoimento porque é possível gravar com movimento labial uma pessoa dizendo qualquer coisa. Não serve mais de prova em juízo, tudo pode ser manipulado. Na nossa conversa anterior isso estava implícito mas não imaginava que chegasse tão cedo. A realidade não é mais crível, a realidade perdeu a realidade. Tudo é passível de manipulação, de intervenção.”
Monteiro volta às suas referências literárias e cinematográficas. “Você hoje realizar uma obra-prima como O leopardo não significa nada. O leopardo é uma obra-prima absoluta, tanto o romance de Tomasi di Lampedusa quanto o filme de Luchino Visconti. Se você fizer isso agora, acabou-se. Perde-se no meio de tudo, do programa de domingo idiota na TV, no meio do ruído.”
LIVES
Perguntado sobre as estratégias de sobrevivência durante a pandemia, Monteiro diz que se manteve quieto, cuidando da família. Participou de alguma live na internet? “Eu não participei de nenhuma porque achava aquilo ainda mais triste, as pessoas falando como se fossem astronautas. Às vezes tinha quatro pessoas nos quadrados da tela falando com a base, como se fosse a Nasa, o Cabo Kennedy. Eu não tinha ânimo de participar daquilo, sabe?”.
Ultimamente tem visto pouco cinema, o mais recente foi Elvis, de Baz Luhrmann. Acompanha algumas coisas pela TV, nos serviços de streaming. Resta a poesia, que continua praticando. “Poesia estou escrevendo para mim mesmo. Poesia pra mim é um vício.”
VAN GOGH NO PARQUE DE DIVERSÕES
Também não tem ido a exposições de arte para exercitar o antigo ofício de crítico de arte, praticado em publicações como Bravo, Rascunho e nesta revista Continente. “Eu realmente abandonei a crítica de arte. Totalmente. Não consigo nem sequer acompanhar. Os artistas não me impressionam a ponto de eu sair de casa.”
“Fui ver esse negócio de Van Gogh e saí chocado”, conta, referindo-se à exposição imersiva Van Gogh Live 8K, que atualmente percorre alguns shoppings centers do país. “Aquilo não é Van Gogh, é um jogo de luzes feito para pessoas que não têm nenhuma informação sobre o pintor. É mais um parque de diversão, talvez mesmo uma caverna do trem fantasma. No final, você fica noiado por aquelas luzes supostamente vangoghianas. É a vulgarização total. Vulgarização do significado que Van Gogh tem, mas não está ali presente.”
TEMPO APOÉTICO
Há alguns anos, Monteiro costumava comprar pela internet fotogramas de filmes antigos, também oferecidos no site Mercado Livre. Era uma forma de retomar uma prática comum na sua infância, entre os meninos das décadas de 1950 e 1960: a troca de gibis por fotogramas nas portas dos cinemas de bairro e do interior. Esses pedações de película, cortados dos filmes quando eles quebravam e eram emendados, faziam a delícia da garotada.
Uma vez, quando morava na Imbiribeira, foi à casa de um jovem da sua idade, que tinha “fita para vender”, como se dizia. “Ele trouxe uma bacia cheia de fitas que tinha colhido no cinema. As fitas tinham caído lá de cima (da cabine de projeção) como chuva, pedaços de filmes.” O jovem Fernando examinava avidamente o material e via fotogramas, por exemplo, de Rastros de ódio, faroeste de John Ford. “Eu via, mas não dizia nada, para ele (o vendedor) não ficar mais avaro e mais difícil de me vender. Mas eu dizia para mim mesmo coisas como: ‘Isso é do filme com Gary Cooper, Tambores distantes’. Essa poesia toda, num tempo apoético como nós estamos vivendo, essa poesia toda foi embora. Ela não está mais presente.”
Décadas depois, descobriu também que podia comprar, pela internet, antigos álbuns de figurinhas, hábito que também cultuou na infância. Muitos desses álbuns tinham como temas – como ocorre até hoje – filmes de sucesso e faziam parte da estratégia da indústria do cinema para conquistar a garotada.
Monteiro é assim mesmo: por um lado, um intelectual erudito, rigoroso, rebelde contra os esquemas de produção, talvez até irredutível. Trata de temas aparentemente pesados, sombrios, com um gosto por tempos remotos e personagens esquecidos. Por outro lado, não perde o lado terno do antigo menino fascinado por boas histórias. Fascinado por aventuras, estejam elas na arqueologia ou no velho oeste do cinema. E expressando tudo isso no artesanato sofisticado de sua linguagem literária, empregada nos ensaios, no romance e na poesia.
MARCELO ABREU, jornalista, autor de livro como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder - Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.