Amara rebatizou-se aos 29 anos, quando iniciou seu processo de transição e as experiências de sexo pago. Escolheu por nome uma sentença, inspirada em Ulisses, de Homero: “amargo destino”. E resolveu segui-lo como profecia, ao mesmo tempo em que decidiu desafiá-lo como teimosia. Múltipla, Amara é, aos 32 anos, além de militante e escritora, também doutoranda em Teoria Literária pela Unicamp (SP) – onde estuda a obra de James Joyce, um dos autores canônicos e mais herméticos da área –, pesquisadora da produção trans na literatura e, em 2016, foi candidata a vereadora em Campinas, pelo PSOL. Amara foi ainda a capa da revista Trip, em setembro deste ano, entrevistada pela cartunista Laerte Coutinho, em seu programa da TV Brasil, e protagonista de um dos episódios da série Liberdade de gênero, do GNT. “Mesmo sendo poucas, estamos nos tornando referências”, proclama.
Ouvi-la (e lê-la) é se deparar com um pensamento crítico verbalizado e incorporado que mescla vivências próprias de sua transição, bissexualidade e programas nas ruas, com a crítica social aguda, articulada e atravessada por uma elaboração política complexa e um conhecimento acadêmico acumulado. Incisiva e com uma segurança invejável, Amara é contundente sem abandonar a serenidade e o didatismo de uma vocação pedagógica.
Nos encontramos a primeira vez em novembro de 2016, no saguão de um hotel, onde estávamos hospedados a convite da Flupp – Festa Literária das Periferias, realizada na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Trocamos livros (o meu pelo dela) e, em seguida, assisti a uma das mesas mais impactantes da minha vida (além de Amara, estavam presentes Linn da Quebrada, Marcelo Caetano e Aretha Sadick). Nesta segunda vez, em outubro deste ano, dividimos uma mesa sobre literatura e visibilidade trans na Bienal do Livro de Pernambuco e conversamos sobre o que viria a se tornar essa entrevista que segue.
Optei por enviar um rol de 30 perguntas sobre temas variados (vida, obra, militância, academia etc.) e deixá-la livre para escolher aquelas que mais lhe instigassem. “Essa foi a entrevista que me deu mais trabalho”, me contou ao entregar as respostas das seis perguntas que pinçou. “Mas aprendi muita coisa (durante a elaboração das respostas) que vou usar para um futuro artigo”, emendou Amara, demonstrando que está a todo vapor em suas produções.
A seguir, Amara responde sobre a construção do conceito “mulher”, as imposições sociais normativas e também por que geralmente opta por se autonomear travesti (em vez de mulher trans). A entrevista também aborda o papel das pessoas cisgêneras (oposto de transgênera) no combate à opressão, a importância do “lugar de fala” e os impactos de um conhecimento construído desde o ponto de vista transdissidente. “Fala-se de pessoas trans há décadas nas universidades, mas ainda hoje existem lá enormes resistências ao conceito de ‘cisgeneridade’, uma das principais contribuições que o movimento trans trouxe aos debates de gênero”, diz em um trecho, ressaltando que o oposto de trans não é normal, mas, sim, cis. “Vigilância e autocrítica são insuficientes, dadas as limitações da nossa própria percepção e o quanto naturalizamos nossos privilégios, e daí a importância de aprender a ouvir e dialogar com quem constrói as lutas e vai de fato lidar com a consequência delas”, ressalta em outro.
Foto: Guilherme Santana/Divulgação
CONTINENTE Os signos não são estáticos, se transformam ao longo dos tempos. E os corpos, da mesma forma, são devires, construções. O que para você é “ser mulher” hoje? AMARA MOIRA “Mulher” é uma palavra polissêmica que pode adquirir sentidos variados dependendo de onde a utilizem. No verbete do Houaiss destinado à palavra, verifica-se que “mulher” pode ser, dentre outras coisas, até “o homem que é passivo com outro homem numa relação sexual”, mas, curiosamente, nenhuma das acepções oferecidas dá conta de expressar o que é uma mulher trans. Compreensões tradicionais tentam entender essa palavra como o resultado da criação destinada à pessoa que nasceu com vagina, mas a visibilidade recente que homens trans (homens que nasceram com vagina, como Thammy Miranda, Tarso Brant, Buck Angel, João W. Nery e o Ivan da novela A força do querer) vêm conquistando, assim como a aceitação cada vez mais tranquila de que mulheres trans e travestis também são mulheres, pouco a pouco vai tornando insustentável a manutenção dessa definição. “Mulher” é o que se entende por mulher no nosso tempo e exatamente agora estamos assistindo a uma transformação radical do que essa palavra é capaz de dizer, seja por já termos visto uma mulher eleger-se presidente da república (coisa impensável nos tempos da minha avó, quando mulheres sequer tinham direito ao voto), seja por paulatinamente estarmos concedendo o direito a ser denominada mulher não apenas à pessoa que supomos ter nascido com vagina (supomos sim, pois em 99,9%, das nossas interações sociais não temos qualquer prova dessa suposição), mas também à que, tendo nascido com pênis, reivindica para si essa palavra.
CONTINENTE Pessoas com experiências transfronteriças optam por se designar de maneiras distintas. Algumas desejam ser reconhecidas como mulheres, mulheres trans, mulheres com pênis, com pau; já outras recusam o signo mulher e optam pela ressignificação do termo travesti – historicamente usado como depreciativo (assim como também o fazem as bichas e sapatões). Por que razões você opta pela designação travesti? AMARA MOIRA “Travesti” é uma palavra que, ao meu ver, escapole melhor das tantas imposições normativas que costumam acompanhar as palavras “homem” e “mulher”, ainda que ela também possua o seu rol todo particular de imposições. Até 10 anos atrás, não era consenso sequer dentro do movimento trans que essa palavra estaria inscrita no espectro feminino (tanto que o tratamento no masculino era predominante mesmo dentro da comunidade), mas hoje, graças à força que as expressões “mulher de pênis” e “homem de vagina” vão ganhando e, por conseguinte, à compreensão cada vez mais nítida de que gênero independe de genital, vai se fazendo viável entendê-la como sinônimo de “mulher trans”, ou seja, uma identidade também feminina. Eu sou capaz de me identificar com ambas as expressões, mas também estou atenta à forma como me identificam, e é nítido que, em eventos, por exemplo, as pessoas muitas vezes preferem me dizer “mulher trans”, por medo de “travesti” soar como xingamento ou termo depreciativo. Eu rechaço veementemente as tentativas oficiais, genitalizantes, de distinguir “travesti” de “mulher trans” (quem quer fazer cirurgia e quem não etc.), pois essas são questões de foro íntimo, que podem variar ao longo da vida, e não faz sentido querer que a palavra pela qual nos identificamos diga também da relação que temos ou deixamos de ter com nosso genital (“sou travesti, gosto do meu pênis”, “sou mulher trans, logo lhe tenho aversão”). No meu caso, mesmo entendendo as duas palavras como sinônimos, politicamente tendo a preferir o termo “travesti” por acreditar que é necessário libertarmos esse termo da teia de associações forçosas de violência, pobreza e exclusão social, lutarmos para que essa palavra possa frequentar, em pé de igualdade com as demais formas de existir, todo e qualquer espaço da sociedade.
CONTINENTEA transexualidade é uma designação medicalizada (conceituação de trans) para uma identidade de gênero cunhada por pessoas cisgêneras. O termo cisgeneridade, por sua vez, foi cunhado por pessoas trans na tentativa de colocarem em xeque o conceito de “universalidade” e “normalidade”. As pessoas cis muitas vezes têm uma dificuldade de aceitarem essa designação – por vezes a recusam sem sequer a entender. Me fale sobre o que você acha do conceito de cisgeneridade e de sua importância. AMARA MOIRACis e trans, sendo partículas de sentido oposto desde o latim, mas também em nosso idioma (trans aquilo que cruza uma dada linha, transamazônica, transatlântico, cis aquilo que se mantém sempre de um mesmo lado dessa linha, sem nunca cruzá-la, Cisplatina, Cisjordânia), implica que, ao nos designarem “pessoas trans”, automaticamente estavam dando a quem não é nós o nome contrário, “pessoas cis”. Coube a nós, no entanto, escancarar essa segunda denominação, demonstrar que a progressiva legitimidade que nossas identidades iam conquistando também tinha, por efeito, paulatinamente retirar as identidades que existiam antes de nós da narrativa da “normalidade”, “naturalidade”: em outras palavras, à medida que as identidades trans vão ganhando status de legítimas, à medida que vamos podendo chamar de nossa a sociedade, vai-se junto revelando o caráter construído das identidades que não são trans, das identidades que existiam antes de que pudéssemos reivindicar existência, ou seja, das identidades cis. E nisso é como se outros sentidos, impossíveis de serem imaginados à época, fossem aflorando daquelas palavras proféticas de Simone de Beauvoir em O segundo sexo (1949): “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.
CONTINENTEVocê incorpora, na sua fala e escrita militante, a sua própria experiência como travesti e trabalhadora sexual, e nos oferece a possibilidade de escutar perspectivas historicamente silenciadas. Para mim, essa possibilidade de deslocar os sujeitos que falam e escutam é a principal contribuição do que se tem chamado de “lugar de fala”. Por outro lado, algumas pessoas interpretam o conceito, se levado à sua radicalidade, como a morte da possibilidade de falar sobre qualquer assunto que não seja o vivenciado, restando a toda produção intelectual a obrigatoriedade de ser autorreferente, autobiográfica e autorretrato. Como você vê isso? AMARA MOIRA A filósofa Djamila Ribeiro acaba de lançar um livro para discutir essa questão, O que é lugar de fala? (Letramento, 2017), e acredito que com a leitura desse livro, a alegação de que “lugar de fala” se configuraria uma espécie de censura torna-se insustentável. Esse é um conceito que joga luzes sobre quem tem podido falar e sobre as limitações do olhar que acompanha essa fala, sobre as coisas que muitas vezes não se consegue perceber a partir da perspectiva que se assumiu. O olhar do estrangeiro, da pessoa de fora, muitas vezes consegue ver coisas que escapam ao olhar de quem está dentro, de quem aprendeu a naturalizar funcionamentos. Nisso, esse olhar pode ser muitíssimo útil. Mas é fácil esse olhar arrogar-se poderes que não possui (ou não deveria) e impor um peso de verdade a isso que lhe foi possível notar e registrar, perdendo de vista que “isso que lhe foi possível” pode ser somente fruto da distorção que sua perspectiva impõe e que essa visão distorcida pode ter consequências violentas para essa comunidade de que se fala. É o que acontece quando a psiquiatria estipula que as identidades trans são um transtorno mental e defende, por exemplo, que a mulher trans “verdadeira” é aquela que quer ter o corpo de uma mulher cis, aquela que gostaria de ter nascido com vagina, nunca a que se dá bem com o seu genital de nascença (e o mesmo argumento vale para os homens trans). O que faz esse discurso senão legitimar que há um jeito certo de existir-mulher e existir-homem, o jeito de quem nos categorizou doentes? E, em relação à ideia de “pessoa trans verdadeira”, o que isso faz senão reafirmar que ser mulher é ter ou querer ter vagina e ser homem, pênis? Oras, um dos postulados centrais do transfeminismo é justo que o genital não determina o gênero e, se estão pensando em construir uma sociedade onde possamos existir de fato, da qual nos sintamos parte, será necessário, antes, uma revisão das verdades e normas que orientavam o funcionamento dessa sociedade, ou então essa será só uma aceitação de fachada.
CONTINENTEEm visita recente ao Recife, você participou de uma mesa sobre literatura e visibilidade trans na Bienal do Livro de Pernambuco e nela falou de sobrecarga – poucas pessoas trans precisando assumir muitas funções nesse momento em que o debate está na ordem do dia. A estada, por isso mesmo, foi rápida – bate-e-volta – para te permitir participar quase que simultaneamente do evento Desfazendo gênero na UEPB, em Campina Grande. Quais mudanças você enxerga a partir desse conhecimento produzido por pessoas trans? O que seria possível para diminuir essa sobrecarga? AMARA MOIRA Nesse debate da Bienal, foi dito por uma pessoa cis da plateia: “Já existem várias pessoas trans se tornando referência nos debates acadêmicos, então é mentira essa história de que pessoas trans não conseguem nem terminar os estudos básicos”. A intenção foi boa, percebia-se, mas o que essa fala propõe tem aspectos bastante perversos. Um deles é ignorar que, na verdade, somos pouquíssimas sim nesse espaço privilegiado das universidades – e que, além de tudo, a grande maioria dessas pessoas trans é branca, classe média e, no mais das vezes, transicionou depois de passar no vestibular. Se mesmo sendo poucas estamos nos tornando referências, isso se deve, em larga medida, a uma sobrecarga absurda de tarefas que estamos assumindo. Com as distorções que têm sido feitas sobre o conceito de lugar de fala (“só pode falar de trans quem for trans”), a coisa ainda piora, pois agora quem não é nós se sente legitimado, inclusive, a nem precisar estudar ou conhecer com propriedade as nossas lutas. É nítida a extenuação que nos acompanha por precisarmos ser militantes em todos os momentos do nosso dia a dia, na academia, inclusive, e ainda por precisarmos nos pautar pela produção de um conhecimento que a universidade, com seus padrões orientados por um pensamento cissexista, transfóbico, seja capaz de reconhecer como válido e legítimo. Fala-se de pessoas trans há décadas nas universidades, mas ainda hoje existem lá enormes resistências ao conceito de cisgeneridade, uma das principais contribuições que o movimento trans trouxe aos debates de gênero... Ou seja, fala-se de pessoas trans, “aquelas pessoas lá”, mas, em parte considerável dos casos, esses acadêmicos ainda não sentiram a necessidade de nomear o que não é nós, quem não é trans, justamente as pessoas que têm tido autorização para falar o que somos ou deixamos de ser. E por aí já se vai percebendo que pessoas trans talvez só interessem à universidade enquanto objetos de estudo, não enquanto pessoas que produzem um saber que transforme aquele espaço e o conhecimento possível de se produzir ali. E nisso fica a dúvida se esse conhecimento produzido ali nos serve de alguma maneira ou se não é talvez apenas mais uma forma de nos manter presas, subjugadas.
CONTINENTE Qual seria o papel do cisgênero na construção de um mundo trans includente? Ou mais: qual é o papel das pessoas que se beneficiam dos privilégios sociais, no combate das opressões (a pessoa branca frente ao racismo, o homem frente ao machismo, o/a hétero frente à homo e bifobia)? AMARA MOIRA Para que serve o conhecimento que você produz, as lutas de que participa? Eis perguntas que toda pessoa deveria fazer cotidianamente a si mesma, a fim de identificar se o resultado de suas ações está em acordo ou desacordo com as expectativas de ser aliada contra as opressões. Mas vigilância e autocrítica são insuficientes, dadas as limitações da nossa própria percepção e o quanto naturalizamos nossos privilégios, e daí a importância de aprender a ouvir e dialogar com quem constrói as lutas e vai, de fato, lidar com a consequência delas. Às vezes, também, temos a falsa impressão de que, só por nos colocarmos como aliados, imediatamente deixamos de ser agentes que reproduzem violência e é talvez esse o momento em que a nossa atuação é mais nociva. Lembro de ter nomeado uma palestra minha de O mundo pelos olhos trans e, de repente, descobrir que a pessoa que falaria antes de mim era deficiente visual... Teria eu me obrigado a pensar as implicações capacitistas dessa metáfora (“pelos olhos trans”), não fosse essa circunstância específica? O que essa metáfora significava para ela, o que significou? Em outra ocasião, vi uma multidão, na presença de pessoas cadeirantes, pulando e gritando eufórica “quem não pula quer a cura”. Coisas que a gente nem se dá conta. Aliás, será que já estamos nós, pessoas brancas, suficientemente sensibilizadas para detectar e problematizar discursos racistas na nossa música, pintura, literatura? Se não estamos, quando estaremos? Vejo pessoas brancas defenderem acriticamente a forma como Portinari retrata os corpos negros, sem nem se darem ao trabalho de conhecer os pontos de vista de uma Renata Felinto, por exemplo. Vejo a indignação, mesmo dentro da esquerda, da simples proposta de supressão de marchinhas como “O teu cabelo não nega, mulata”. Vejo o incômodo que suscita a discussão sobre o racismo nas obras de Monteiro Lobato, com intelectuais brancos se insurgindo contra o que entendem ser “censura” e “ditadura do politicamente correto”. Será que já percebemos quanto o nosso corpo se retrai quando guardamos o celular, a bolsa na presença de pessoas negras? Pequenas mensagens diárias que os corpos passam, o mais das vezes de forma inconsciente, mas que são eficazesíssimas em dizer a quem pertence a sociedade e quem será eternamente considerado elemento intruso. A mesma coisa em relação ao machismo, com mulheres (brancas) até hoje não conseguindo entrar no acervo dos grandes museus senão pintadas nuas por homens (brancos), com críticos literários renomados (brancos) denominando de “literatura erótica” obras que retratam abusos sexuais e estupros etc. E, como se percebeu mais acima, até hoje as referências no debate de gênero no Brasil se sentindo à vontade para falar de pessoas trans, mas não sentindo a menor necessidade de dar nome a quem não é nós, de dizer a partir de onde falam, e com isso reforçando esse discurso que entende a cisgeneridade como normal, natural. Os desafios para se romper com essas limitações são gigantes, mas passam, em primeiro lugar, por percebermos que essas lutas não dizem respeito apenas às pessoas que sofrem na pele essas opressões e, sim, à sociedade como um todo. Passam, também, por entendermos que ninguém é altruísta por se aliar a essas lutas e que a pessoa não deve ser tratada com condescendência, café com leite, só por ela acreditar que é uma aliada.
CHICO LUDERMIR é jornalista, escritor e artista visual. É integrante dos movimentos Coque Vive e Ocupe Estelita e mestrando em Sociologia PPGS-UFPE. É autor do livro A história incompleta de Brenda e outras mulheres.