Entrevista

As ambivalências da curadoria

Dois curadores, duas experiências, duas visões curatorais: conversamos sobre o tema com Eder Chiodetto (SP) e o francês Jean-Michel Bouhours

TEXTO Bárbara Buril

22 de Agosto de 2017

"Gosto da ideia de pensar o curador como alguém que tem uma sensibilidade específica para investigar o universo poético, estético e ideológico de um acervo", Eder Chiodetto, curador

Foto Divulgação

O curador possui atualmente um papel de destaque no campo das artes visuais. Há quem vá visitar uma exposição mais pela curadoria do que pela autoria das obras, mostrando que o exercício curatorial pode ser considerado hoje tão ou mais importante do que a criação artística. Tanto que há quem persiga a carreira curatorial, em tempos nos quais proliferam cursos especializados sobre o ofício. Ao realizar “exposições assinadas”, existem galerias que mais parecem vender a assinatura do curador do que a obra. O prestígio do curador é tanto que o título passou a ser usado nos mais variados contextos: há quem “faça curadoria” de festivais de música, de orquídeas a serem exibidas em feira, de roupas de brechó e assim vai. É assim que o curador parece ser simplesmente aquele profissional especializado em algo, cuja tarefa principal é a de escolher o que vale a pena ser mostrado.

No entanto, a origem da palavra “curador” alude a significados mais profundos. Curare, do latim, significa cuidar. Não que precisemos aqui defender que as palavras hoje usadas correntemente devam ter os mesmos sentidos daquelas das quais derivaram. Os sentidos das palavras mudam com as exigências de um tempo presente, que não deve ser subvalorizado em favor do passado, em um saudosismo improdutivo. No entanto, o resgate do significado primevo de algumas palavras pode enriquecer os seus sentidos atuais, tornando-os mais nobres em suas polissemias. Diante da visão de que curadoria é tudo e mais um pouco, as origens do ofício remontam a uma atividade que envolvia (além de competência) cuidado, atenção e afetividade com os objetos. Um curador não é um mero editor-operante. Ele pensa e cuida.

Diante das ambivalências do fazer curatorial, a Continente Online entrevistou os curadores Eder Chiodetto e Jean-Michel Bouhours, que estiverem no Recife, no fim de julho, para ministrar o curso Curadoria fotográfica, promovido pelo Instituto 3emeio com apoio do Funcultura. Ambos possuem não apenas repertórios artísticos e culturais distintos, como também se inserem de maneira bastante diferente no circuito artístico. Enquanto Eder Chiodetto, residente em São Paulo, é curador independente, mais voltado para projetos expositivos ligados, principalmente, à fotografia contemporânea, Jean-Michel Bouhours esteve durante muitos anos à frente do Centre George Pompidou, em Paris, realizando uma série de mostras ligadas ao cinema experimental. Devido às diferentes posições que ocupam no campo da arte, possuem envolvimentos distintos com galeristas, instituições, colecionadores e artistas.

Jean Michel
"A ética do métier curatorial deve se situar abaixo dos limites do ego", Jean-Michel Bouhours 

A fim de confrontar o que parece ser duas visões diferentes sobre o que supostamente é o mesmo ofício, fizemos as mesmas perguntas para ambos, em entrevista por e-mail. Eles contaram o que pensam sobre a atividade curatorial, o que precisam fazer durante os seus processos criativos, com quais figuras precisam negociar e se relacionar e o que, para eles, significa ser um curador ético. Põe-se em diálogo, então, visões distintas sobre uma profissão que também tem as suas ambivalências.

CONTINENTE Como vocês começaram a se envolver com o processo curatorial em suas trajetórias profissionais?
EDER CHIODETTO Sou fotógrafo e jornalista de formação. Comecei a trabalhar no jornal Folha de S. Paulo em 1991 como repórter fotográfico. Depois me tornei editor de fotografia e crítico de temas relacionados à imagem contemporânea no caderno cultural. O exercício diário de edição e escrita crítica acabou me levando para o caminho da curadoria à minha revelia. Quando saí do jornal em 2004, o circuito de arte me reconhecia como um potencial curador. Era o momento em que a fotografia começava a surgir com força nas grandes mostras de arte contemporânea. Peguei gosto pela pesquisa, edição e escrita com enfoque mais voltado para a fotografia contemporânea. Nesses 13 anos atuando como curador, já fiz mais de 100 exposições no Brasil e no exterior.
JEAN-MICHEL BOUHOURS No início, eu era curador de cinema no Centro Pompidou. Minhas funções eram principalmente duas: constituir uma coleção de obras e organizar as programações desses filmes. Eu trabalhava em um campo artístico que se nomeia “cinema experimental” ou “cinema de artistas”. A maior parte desses criadores tinha uma maneira de criar multidisciplinar: alguns eram simultaneamente pintores, escultores, performers, poetas concretos etc... E, assim, os artistas eram demandados a não se “encaixotarem” apenas no campo cinematográfico. Apesar disso, era difícil admitir a passagem desses artistas nos espaços importantes de exposição. O processo exigiu uma boa vintena de anos (1977 – 2000), quando eu deixei de ser curador de filmes para ser curador de exposições. Em 1994, Jean de Lois, atualmente presidente do Palais de Tokyo em Paris e comissário-geral da exposição Hors limites no Centro Pompidou, me convidou para ser curador de cinema no projeto. A primeira exposição que eu assumi integralmente o trabalho curatorial foi a exposição Len Lye, em 2000.

CONTINENTE O que significa, para vocês, curadoria?
EDER CHIODETTO São muitos os significados. Mas gosto muito da ideia de pensar o curador como alguém que tem uma sensibilidade específica para investigar o universo poético, estético e ideológico de um acervo para propor linhas de força que possam dialogar de forma contundente com o público. Fazer essa ponte entre o discurso autoral do artista e o público é algo que me mobiliza bastante.
JEAN-MICHEL BOUHOURS Primeiramente: queiramos ou não, o trabalho curatorial é um olhar sobre uma obra que se quer transmitir ao público; esse olhar não deve substituir ou trair o projeto do artista, que é sempre o sujeito-chave. Há, então, um equilíbrio frágil a ser encontrado, principalmente quando o artista é um artista vivo. Evidentemente, cada situação é particular, já que é preciso levar em consideração as características dos indivíduos envolvidos. Segundo: a exposição é um relato construído a partir de elementos. Uma obra é sempre a história de uma vida, de um indivíduo, de sua relação com o mundo, de sua psiquê. É isso que a exposição deve poder contar. Esse relato será fundado de modo secundário pela linguagem. Trata-se dos elementos linguísticos que inventamos: rotas, cenografias, luz, vitrines, imagens animadas, sons etc. Terceiro: o trabalho curatorial é inseparável da publicação de um trabalho que deve ser um trabalho útil, documentado, fruto de pesquisas que fazem avançar o conhecimento desta obra. Quarto: o trabalho curatorial é como o de um chefe de orquestra. É necessária certa plasticidade pessoal para se adaptar às condições que lhe são dadas em termos de espaço disponível, dinheiro etc. Em uma grande instituição como o Pompidou, onde trabalhei por muito tempo, também é preciso animar as grandes equipes de profissionais durante um projeto.

CONTINENTE As suas práticas curatoriais compreendem que tipos de atividade? Pergunto isso porque parece que a prática curatorial compreende atividades diferentes segundo o perfil do curador: alguns curadores prezam mais pela expografia, enquanto outros se preocupam mais com a narrativa da exposição, por exemplo.
EDER CHIODETTO Sim, há curadores de diferentes perfis. Sou mais ligado à produção de imagens contemporâneas, ainda que, por vezes, investigue acervos de caráter mais histórico. Para mim, é fundamental pensar a seleção de trabalhos em função do espaço que a mostra vai ocupar. A expografia, assim como a luz, as informações textuais, a cenografia, tudo deve se reportar a um conceito que predetermino para que toda a atmosfera da exposição ajude a clarear o discurso do que será exposto. Outra atividade que exerço com afinco e que considero ser um importante sustentáculo das minhas pesquisas que levam a projetos curatoriais é o acompanhamento do trabalho de artistas em ateliês ou nos grupos de estudos que mantenho no Ateliê Fotô, meu espaço de trabalho. São conversas intensas na qual atuo como uma espécie de coach, testando as possibilidades dos trabalhos que estão em gestação, questionando o artista, trazendo aportes de referência. Como os artistas entram em pesquisas profundas, por vezes eles necessitam desse diálogo para conseguir ver suas pesquisas por outros ângulos. Adoro essa atividade.
JEAN-MICHEL BOUHOURS Presumivelmente, cada curador conhece a sua missão a partir de seu próprio passado ou background. Por minha parte, vindo do mundo da imagem animada e do filme experimental em particular, minha concepção curatorial é, de uma maneira geral, transdisciplinar e multidisciplinar. Eu não estabeleço hierarquia entre os objetos apresentados e eu gosto, ao contrário, de fazer valer as ideias-forças que atravessam as disciplinas apreendidas por um artista. No entanto, detesto a “espetacularização” da exposição, como fazem alguns colegas. Sim, concebo o trabalho curatorial como uma expografia: por exemplo, a imagem fotográfica ou cinematográfica (ou qualquer outra imagem em movimento) concede muito frequentemente a dimensão do “vazio” à obra. Sou de uma geração totalmente impregnada pelo slogan A arte é a vida confundida (Allen Karprow). A arte da segunda metade do século XX é, assim, demarcada por aquela que a precede. Assim, o curador não pode, quando ele faz uma exposição sobre um artista contemporâneo, ignorar esta aspiração do artista; ele deve, ao contrário, integrá-la dentro de seu trabalho, mostrar a arte e a vida do artista, tentar, através dos objetos inertes, fazer surgir o elã vital do criador. No entanto, cada exposição que fiz tinha uma dimensão narrativa no seu desenvolvimento. O fato de conceber uma exposição em seções temáticas ou cronológicas é, em si, uma narração.

CONTINENTE Que tipos de diálogo vocês, como curadores, mantêm com o campo da arte de uma maneira geral? Em outras palavras, quais são as relações que vocês possuem com figuras como o galerista, o artista, o colecionador ou a instituição museológica? A depender do curador, ele pode manter mais contato com a instituição museológica do que com galeristas ou artistas, caso seja curador de um acervo museológico de arte antiga, por exemplo, ou então ele pode manter uma relação mais próxima com o galerista e o artista, se ele for um curador independente de arte contemporânea. Há diferenças, então.
EDER CHIODETTO Sou um curador independente com pesquisa mais focada na produção de fotografia contemporânea. Quando o nosso trabalho começa a ser reconhecido num campo tão específico como esse, é natural que artistas, galeristas e instituições comecem a te procurar para realizar projetos. E da minha parte também procuro esses canais para propor parcerias, exposições, cursos, pesquisas. 
JEAN-MICHEL BOUHOURS Você tem razão e esta questão também é verdadeira para a sua pergunta anterior. O métier curatorial possui formas diferentes em função do campo dentro do qual se intervém: os critérios para uma exposição de arqueologia são bastante diferentes dos de uma exposição de arte do século XX. O século XX permite mais liberdade e também mais fantasias. Para voltar a sua questão, meu próprio trabalho curatorial sempre foi um trabalho de escuta e atenções em direção principalmente ao artista, para a ou as galerias envolvidas com esse trabalho. Suas experiências passadas (principalmente, a experiência das galerias) é sempre útil e não pode ser ignorada. Evidentemente, é necessário também superar as experiências anteriores, tentar ir mais longe. A parte “relacional” também é necessária: são as relações com os colecionadores e as instituições. Eles são os credores da exposição que você organiza e, de uma certa maneira, você não pode contornar as preconizações ou exigências deles.

CONTINENTE Pelo que um curador deve sempre prezar? Enquanto um jornalista precisa cuidar de ouvir e registrar os dois lados de uma história antes de contá-la, qual seria a ética do curador?
EDER CHIODETTO A figura do curador passou a ser vista como alguém que é capaz de legitimar e, consequentemente, valorizar artistas e obras no mercado de arte. Com isso, não é raro ocorrer um assédio no sentido de “comprar” a opinião desse curador. Eu digo “não” a esse tipo de aproximação. Só trabalho com artistas e obras que, de fato, me interessam do ponto de vista da discussão da arte, dos costumes, de uma visão de mundo que acredito. É muito importante que a gente construa, ao longo de uma carreira, uma lógica interior pautada pela nossa crença. E isso, no meu caso, não significa jogar o tempo todo com artistas consagrados. Pelo contrário, gosto de pesquisar e lançar novos nomes, de misturar o novo com o consagrado, de fazer recortes curatoriais que desafiem o protocolar. 
JEAN-MICHEL BOUHOURS A ética do métier curatorial deve se situar abaixo dos limites do ego ou, para dizer de outro modo, não é o curador que está exposto. Quero dizer com isso que o curador não é o artista: esse é um trabalho de acompanhamento de uma obra que necessita de uma certa modéstia nessa missão. Mesmo que o trabalho sobre uma exposição seja considerável, tanto do ponto de vista da concepção, do estudo científico da obra, do trabalho do historiador de arte fornecido nessa ocasião, este aqui (o curador) deve se situar abaixo disso. Conheço exemplos em que o curador quer, custe o que custar, afirmar um conceito ou uma interpretação inédita; em regras gerais, estas não são mais do que pretensões estéreis que respondem a uma necessidade absurda de querer sempre suscitar uma expectativa sensacional. Esta atitude me parece trair aquilo que deve ser a ética da atividade do curador.

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