Ensaio

O espetáculo da natureza na arte cristalina de Denise Milan

Artista extrai das rochas e das pedras a poesia concreta, em harmonia com a ciência e o cosmos

TEXTO Mario Helio

25 de Setembro de 2025

Foto Lucas Mandacaru/Divulgação

“E como se cada pedra
Fosse todo um universo”
Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Tudo é forma. Tudo é forma de vida na arte de Denise Milan. Há como uma música da Criação, no sentido primordial, na inteligência que pulsa e vibra nos seus minerais. Quartzo a quartzo. Basalto a basalto.  Paradoxo da melodia dura e rude ser feita de ásperos silêncios e ruídos da matéria.

O que Denise Milan expressa: a memória das coisas que se incrustou nas rochas e nas pedras. Simetrias e assimetrias. Concreção da Poesia de árdua e pura imanência. Basta olhar para os objetos e constatar: o resultado de sua arte é sempre um encontro com o Sempre. Ela promove-o incitando os olhos e a pele. Todos os sentidos da (sua) arte vêm desses sentidos.

 Basta ver suas obras para saber que não teve razão o poeta, quando escreveu a frase de efeito, quase blague: “pensar é estar doente dos olhos”. Poderíamos dizer, ao contemplar suas criações: melhor alcançam os olhos que pensentem. São estes olhos os que perceberão de modo mais profundo a arte diante de si: a arte de Denise Milan, um cosmo de harmonias dinâmicas cristalizadas. Num jogo aberto tanto à surpresa quanto ao dejà vu, animado por um mecanismo de ver-imaginar.

Denise Milan é a única artista brasileira cujo trabalho provoca a sensação de ter sido feito no futuro. Ou fora da terra, paradoxalmente, porque vem de dentro dela. Da Terra. E é feita com terra, com pedras deniseadas, mais do que, somente, delineadas. Engendra, assim, novos abismos. Uma arte ou uma ontologia-epistemologia. Que traz a ideia de ser a Soma de certas inquietações de filosofia com poesia, de ciência com música.

Ao discutir o que chamou de arqueologia da obra de arte, Giorgio Agamben lançou a pergunta: qual é o lugar da arte no presente? Denise Milan oferece uma resposta. O frisson dessa arte “futura” que pratica não tem apegos futuristas, tampouco enamora-se de artificialismos ou geometrismos. É do hic et nunc mais cotidiano, sem preocupações de hierarquizar arte pura e aplicada.

O mistério que parece emanar das suas peças nada tem a ver com sentimentalismos nem esoterismos. Vem de dentro das coisas. Como um corpo inteiro feito de silício e dotado de vida inteligente. Ideia menos absurda do que parece.

Há cerca de sete anos, a revista Science divulgou um artigo que relatava um experimento. Os cientistas tinham conseguido que uma bactéria “aceitasse” a introdução de átomos de silício dentro de suas moléculas. Punha-se à prova uma nova possibilidade. Não restrita à intrigante mania da vida na Terra pelo carbono. Dos cientistas aos poetas. Alguns com o acento mórbido cujo melhor exemplo está em Augusto dos Anjos, autodefinindo-se:

“Eu, filho do carbono e do amoníaco,Monstro de escuridão e rutilância.”

O mesmo poeta que, ao dizer-se vindo de “outras eras”, prefigura-se, ontologicamente, como sombra, e assume o tempo do incognoscível:

“Do cosmopolitismo das moneras… Pólipo de recônditas reentrâncias, Larva de caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias!”

Afirmando-se em cosmos, o poeta, no “Monólogo de uma sombra”, remete-se:

“A saúde das forças subterrâneas E a morbidez dos seres ilusórios!”

Quase nada disso tem a ver com Denise Milan. Não é o mundo das sombras nem da escuridão o seu. Tampouco o da química orgânica. Mas é o da vida. “A vida apenas, sem mistificação”, como diria Carlos Drummond de Andrade. A vida sem odes patológicas, pode-se acrescentar. No lugar da sombra, a luz, por vezes solidificada na matéria.

Ao invés da escuridão associada ao “cósmico segredo”, ela encanta-se pela “rutilância”. Elege iluminar-se de imensidão, como a aurora de Ungaretti. A luz baliza-a com clareza e nitidez tão vitalizantes quanto o entusiasmo exuberante de Walt Whitman: “Eu sou um cosmos, filho da Ilha de Manhatan”. Denise Milan é um cosmos nascido no continente de São Paulo. Acrescente-se: ancestralmente, vindo sua família do “cosmopolitismo das moneras” dos fenícios, inventores do principal alfabeto com que se escreve no Ocidente. Porém, sua arte remete a outros alfabetos, e o primeiro deles é o da Vida.

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