Se pensar plural (ainda) é um exercício complexo, não só no âmbito artístico como em outras áreas da vida, talvez uma boa oportunidade para “suar” a cabeça – e a pele – seja a segunda edição do Festival Transborda de Cultura sem Gênero, que segue até 21 de abril em diversos espaços culturais do Recife, incluindo a reabertura do Teatro Valdemar de Oliveira. A programação, em boa parte gratuita e totalmente transfree, conta com debates, espetáculos, performances, shows, exposições, oficinas e festas, trazendo um total de 22 artistas e grupos brasileiros.
O evento tem como foco a visibilidade e representatividade trans, mas abraça também temáticas sobre negritude e feminismo. “Uma cultura sem gênero é uma cultura sem segregação. A cultura está para ser aproveitada, para ser curtida. É um sistema de educação, de formação, então por que segregar? Eu acredito numa cultura que não delegue o que uma pessoa deve saber mais do que a outra, que não delegue os conhecimentos que um gênero deve adquirir e outro não”, reflete a atriz Sophia William, integrante da DIG d’Improvizzo Gang (PE) e uma das curadoras do festival. Apesar de não acontecer na periferia da cidade, estabeleceu parcerias com o Centro de Referência em Cidadania LGBT, Grupo Gestos e Rede Monalisa, que trabalham com profissionais do sexo e pessoas trans. “No processo curatorial, a gente começou a entender que essa unificação dos grupos faria com que o projeto tivesse mais força e faria com que as lutas tivessem mais voz. É uma luta por conquistas, por espaço e por lugar de fala”, complementa.
Cena da peça A mulher monstro (RN), da S.E.M. Cia de Teatro. Foto: Divulgação
Acompanham Sophia na curadoria Rhommel Bezerra (fundador do Transborda e diretor do Grupo Itinerante de Teatro da Cidade do Rio de Janeiro), Marciolino Teixeira e a atriz Aurora Jamelo. Também na equipe está a artista plástica pernambucana Brenda Bazante, co-curadora e “madrinha” da edição recifense, já que a anterior fora realizada em São Paulo. “Como curadora, tive uma grande dificuldade, porque vi que existem grupos de teatro e dança muito fortes aqui no Recife, mas poucos trabalham com a questão da diversidade, de identidade de gênero. Essas questões ainda não são tão discutidas aqui”, diz Sophia, que ressalta também a existência de grupos pernambucanos que falam sobre as questões de gênero em suas obras, mas sob olhar de pessoas cisgênero.
“Quando a gente viu que não existiam muitos grupos, percebi que tinha muita gente fazendo performance e trabalhando sobre isso em suas individualidades. Daí é que vem a potência do festival, é trazer a individualidade de cada artista para dentro do projeto e transformar isso num grande grupo de fala. Uma potência unificada”, explica a curadora. Um dos destaques do festival – que traz ainda projetos do Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte – é justamente o diálogo com a cena pernambucana, que ocupa a maior parte da programação, como, por exemplo, as exposições de Sócrates Alexandre, Júnior Foster, Guilhermina Velicastelo, além das próprias curadoras Aurora Jamelo e Brenda Bazante.
“Nós trouxemos pessoas que muitas vezes nós, que frequentamos a cena cultural da cidade, conhecemos, mas não temos contato com o trabalho. Na curadoria, vi que não existem muitos grupos aqui, mas existem indivíduos pensando politicamente essas diversidades, colocando seus trabalhos nesse ambiente político de fala, de dizer ‘eu existo, eu faço isso, meu trabalho é sobre isso, ele me representa’. Ter esses indivíduos que se autorrepresentam é muito importante”, diz Sophia.