Antes de tudo, o aviso básico dos dias de hoje: pode ser que haja spoilers abaixo, mesmo que eles tenham sido evitados ao máximo. Continuando, é preciso saber que Coringa não é um filme de quadrinhos normal. Primeiro, não é baseado em nenhuma história em quadrinhos específica, mas no universo da DC Comics. Ou seja, não segue nenhum cânone. É a história de origem de um dos grandes vilões da DC e um dos principais inimigos do Batman.
Para mostrar a metamorfose de Arthur Fleck em Coringa, o diretor Todd Phillips inspirou-se mais no cinema americano dos anos 1970 e 1980, especialmente nos longas de Martin Scorsese como Taxi driver e O rei da comédia – não é à toa que Robert De Niro faz o papel de um apresentador de talk show. Ou seja, não há nada de Homem de aço ou mesmo Batman: O cavaleiro das trevas, que marcou época com seu tom sombrio, muito menos da coleção de produções da Marvel que apostam na ação quase incessante. Na verdade, Coringa não tem sequências de ação nesses moldes. Tem, sim, cenas de violência, que são chocantes quando acontecem.
O ponto mais interessante do filme, e também o que já causa polêmica, é mesmo a transformação de Arthur num dos inimigos mais poderosos do Batman – o Coringa estabelece uma ligação entre o vilão e o herói. Arthur é um sujeito estranho, claramente com problemas mentais, que ri sem controle em especial quando está triste, e que quer ser um comediante de stand-up, mas só consegue ser maltratado em seu emprego como homem-placa vestido de palhaço. Ele ouviu a vida inteira de sua mãe que era para sorrir e fazer cara de feliz. Mas na maior parte do tempo ele não tem por que sorrir e fazer cara de feliz – quem tem? Para a sociedade, ele é invisível, a não ser para ser humilhado. “Nem eu mesmo sabia se existia”, diz. Mas, um dia, ele consegue poder. E, logo, começa a enxergar inimigos. Não é à toa que Todd Phillips precisava de um ator do calibre de Joaquin Phoenix, que só melhorou com os anos e oferece a atuação de sua vida.
A controvérsia é porque, para muitos, a trajetória de Arthur pode empoderar ainda mais os “incels” e os supremacistas brancos que são os principais responsáveis pelos ataques terroristas hoje em dia nos Estados Unidos. Não seria a primeira vez que um personagem de histórias em quadrinhos é mal interpretado. Rorschach não foi criado como herói por Alan Moore em Watchmen, e, no entanto, tornou-se um para muitos – algo que deve ser abordado na série da HBO criada por Damon Lindelof e que estreia em outubro. Mas aderir ao argumento se assemelha a dizer que os videogames são os responsáveis pelos ataques feitos por jovens brancos em escolas e supermercados americanos. O Coringa aqui é resultado do sistema injusto que deixa de lado certas pessoas, seja pelo abismo entre pobres e ricos ou pela falta de suporte no caso de problemas de saúde mental, e que ainda coloca armas em suas mãos. Mas também é uma jornada individual – ou todas as pessoas oprimidas do mundo tomariam a mesma atitude.
Só o fato de uma produção mainstream, com um personagem popular, já interpretado no cinema por Jack Nicholson, Heath Ledger e Jared Leto, levantar essas questões parece um avanço, quando tantos outros produtos hollywoodianos usam e abusam da violência sem discussão. Com o Leão de Ouro, Coringa ganhou a chancela de filme "sério" e, por isso, vai suscitar debates. E, claro, tem grandes chances de ir para o Oscar.
MARIANE MORISAWA é jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.