Ironicamente, no incêndio do Museu Nacional ocorrido na noite do último domingo, só salvaram-se quatro gatos: um macho, uma fêmea e dois filhotes. Estavam em meio à fumaça no espaço onde ficava o refeitório do Museu. Já os "Rembrandt" queimaram todos. Pelo menos 90% do acervo de um dos mais importantes museus das Américas viraram cinzas.
Em 2016, quando se completava um mês do incêndio ocorrido no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo – que matou um funcionário e destruiu o prédio da Estação da Luz – estive como repórter do jornal O Globo em 10 grandes museus no Rio de Janeiro para checar se estavam liberados pelo Corpo de Bombeiros. Sete deles não tinham o alvará: o Museu da República, o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu Histórico Nacional, o Museu Villa-Lobos, o Museu da Chácara do Céu – onde em 2006 houve o maior roubo de obras de arte da história do Brasil –, o Museu do Açude e o Museu da Imagem e do Som. Todos armazenam coleções de arte, história e cultura popular de valor inominável ao país.
Os diretores me tomavam pelo braço e mostravam o que era possível contornar: hidrantes na parede, saídas de emergência desobstruídas. Mas as fiações elétricas expostas, as gambiarras escorando janelas centenárias e a falta de brigadistas de incêndio de plantão não havia como disfarçar. São catástrofes tão anunciadas quanto a do Museu Nacional. Principalmente o MIS, a instituição que meses antes havia recusado o piano no qual Ary Barroso compôs Aquarela do Brasil, uma relíquia ofertada pelo neto. O museu que abriga a história do pensamento musical brasileiro padece entre o esqueleto do prédio antigo e o sonho mil vezes adiado do prédio novo. Uma das imagens mais chocantes que já vi num acervo cultural foi lá, em 2006, desta vez a trabalho pelo Jornal do Brasil: ao digitalizar uma raríssima bolacha 78 rotações, o funcionário a via craquelar na vitrola enquanto girava, tocando pela última vez. Depois, recolhia os cacos.
Em 2013, estive seis vezes na Biblioteca Nacional para reportar seu ocaso. Na maior coleção de livros da América Latina, o incêndio é só uma das desgraças que a ameaçam. Há ainda as enchentes, as quedas de reboco e a deteriorada rede elétrica. Escrevi numa das reportagens, publicada em março daquele ano: "O local está sujeito a um desastre a qualquer momento. Não há saída de emergência, os telhados têm infiltrações, as janelas estão quebradas, e não há qualquer sistema de combate a incêndios. Em julho, parte do piso cedeu. Em outubro, houve um princípio de incêndio, amainado pelos próprios servidores". De lá, guardo a cena dos servidores levando ventiladores de casa porque não aguentavam trabalhar sem ar-condicionado – que não podia ser ligado para não comprometer ainda mais a rede de energia.
Completando a tríade de excelência da memória nacional com o Museu e a Biblioteca, há ainda o Arquivo Nacional, outra instituição que também conheço muito pelos problemas estruturais – muitos documentos estão interditados à pesquisa por risco de manuseio, dadas as condições precárias de armazenamento dos últimos anos. No bloco onde ficam as principais peças, como a Lei Áurea, a equipe de engenharia do Arquivo Nacional já detectou falência no sistema de hidrantes e,segundo a Associação de Servidores, as denúncias a esse respeito são feitas há quase dois anos.
Toda essa tragédia publicada tantas vezes, avisada por servidores, pesquisadores, associações – e diretamente associada à queda vertiginosa dos repasses federais às três instituições nos últimos anos – infelizmente não responde à dialética de Giacometti, aquela em que a vida vale mais do que a arte. No Museu Nacional, na Biblioteca Nacional, no Arquivo Nacional, as perdas tiveram, têm, e terão, sempre, o peso da morte.
MARIANA FILGUEIRAS, jornalista, mestranda em Literatura pela UFF.