Cobertura

Como deve ser a nossa revolução?

Os pensamentos de alto nível desenvolvidos no seminário 'Os fins da democracia', em São Paulo, apontam, mesmo nas entrelinhas, para algo em comum: é preciso se mover. Mas como?

TEXTO Bárbara Buril

10 de Novembro de 2017

Visão geral do seminário internacional 'Os fins da democracia', em São Paulo

Visão geral do seminário internacional 'Os fins da democracia', em São Paulo

Foto Erika Mayumi/Divulgação

A dimensão propositiva do seminário internacional Os fins da democracia, realizado nos últimos três dias no Sesc Pompeia, em São Paulo, extrapolou aquilo que normalmente se espera de um evento acadêmico. O que se encontrou, no evento, foi o pensamento em sua radicalidade: a reflexão que não se rende ao lugar restrito normalmente reservado para ela.

Mais do que reunir teóricos críticos cujos trabalhos são referenciais em várias partes do mundo (como Judith Butler, Wendy Brown, Rahel Jaeggi e Susan Buck-Morss), com objetivo de reforçar o diagnóstico de que a democracia liberal está em declínio, o que se viu, se não de maneira clara, mas pelo menos nas entrelinhas, foi a provocação que nem sempre ousa dizer o seu nome. A saber: como deve ser a nossa revolução? Quais tipos de estratégias políticas deveríamos assumir hoje, a fim de que a mudança que almejamos não seja apenas uma troca de posição dos elementos no espaço, mas uma transformação mais ampla dos motivos pelos quais os elementos ainda se situam de determinada maneira, em determinado espaço?

Na sua apresentação, o filósofo Vladimir Safatle, professor na Universidade de São Paulo (USP), trouxe uma provocação que poderia escandalizar a direita brasileira, se ela tivesse ao menos se interessado em assistir à palestra daquele que se transformou em um dos principais representantes da “esquerda corrompida” pela “pedofilia do comunismo” (o par alucinatório que mais parece, para a direita brasileira, condenar a pedofilia do que o comunismo). Ele fez um convite: “O conceito de revolução está esquecido, é muito questionado, mas precisa ser reconstruído”.

A reconstrução do conceito de revolução, no sentido amplo, precisaria levar em conta que uma revolução não seria exatamente uma mudança de posicionamento dos elementos no espaço. Nesse caso, como ele interpreta, a revolução copernicana, tão utilizada na Filosofia como metáfora para aludir a mudanças radicais nas formas de pensamento, não seria propriamente uma revolução. O que haveria de revolucionário na descoberta de Nicolau Copérnico (1473-1543) de que o centro do universo não era a Terra, mas, ao contrário, o Sol? O que mudou, com a descoberta do astrônomo, foi a localização dos astros, mas o movimento circular ao redor de um centro permaneceria o mesmo. A revolução, de fato, teria acontecido, segundo defendeu Safatle, quando Johannes Kepler (1571-1630) descobriu que a órbita não era circular, mas elíptica. Nesse caso, teria havido uma verdadeira mudança de paradigma.

A metáfora das revoluções astronômicas tem um paralelo político. Não bastaria, para Safatle, trocar a posição dos sujeitos no espaço, mas questionar esse mesmo espaço. Para ele, a revolução, portanto, significaria o fim de determinadas concepções que a democracia liberal teria produzido, e não um movimento cuja intenção seria a de se localizar em uma posição melhor dentro desta mesma lógica de democracia. O intelectual propõe o fim de um sujeito que só é "livre" quando se posiciona como identidade; o fim de um indivíduo que precisa possuir a si mesmo e possuir coisas; o fim da ideia de que um espaço político só pode funcionar enquanto representação. “A representação tem suas regras e existir politicamente é aceitar se submeter a essas regras. A essa submissão, chamamos ‘democracia'”, provocou Safatle, em tom de manifesto. Assim, no novo espaço individual e político vislumbrado por ele, o sujeito seria livre da identidade, as coisas seriam livres dos sujeitos e todos poderiam falar, independentemente da representação. Só a partir de uma desidentificação social generalizada seria possível uma revolução.

Apesar de sedutora, a proposição de Safatle pode facilmente ser atacada como utópica, pouco prática ou inclusive negligente em relação aos regimes de poder que não podem ser desmontados assim tão automaticamente, como apontou a teórica política Wendy Brown, em resposta à apresentação de Safatle. Antes de teórico uspiano, quem se apresentou foi a filósofa norte-americana Susan Buck-Morss, uma das intelectuais referenciais da teoria pós-colonialista e autora de livros como Hegel y Haiti e Dreamworld and catastrophe: The passing of mass utopia in East and West (este último, aliás, ganhará, em breve, uma tradução para o português). “Os nossos dois revolucionários”, brincou Brown, referindo-se a Buck-Morss e Safatle.


Wendy Brown, Vladimir Safatle e Susan Buck-Morss. Foto: Erika Mayumi/Divulgação

Diferentemente de Safatle, Buck-Morss pensa as revoluções como movimentos que acontecem dentro das democracias liberais. E defendeu: “O modo de impedir o fim da democracia é tornar a democracia um meio”. A partir de uma variedade de movimentos sociais em vários lugares do mundo, Buck-Morss argumentou que a prática revolucionária é um laboratório que deve estar sempre em funcionamento. Aqui, os “ocupes”, as manifestações, os movimentos, as estratégias de resistência, mesmo que inspirados por questões identitárias, seriam, para ela, formas de políticas revolucionárias.

As reflexões de alto nível desenvolvidas no seminário apontam para algo em comum: é preciso se mover. “É importante que nós permaneçamos visíveis uns para os outros”, defendeu Buck-Morss. “Precisamos reagir ao totalitarismo na esfera pública, se ela ainda existir”, ironizou a intelectual turca Zeynepp Gambetti, professora de Ciência Política na Universidade Bogazici, na Turquia. “Não podemos nos render ao medo”, apontou o chileno Rodrigo de la Fabián, professor da Faculdade de Psicologia na Universidade Diego Portales, em Santiago, no Chile.

É preciso se levantar e, com as mãos ao alto, dizer “não”, como sugere o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman, curador da exposição Levantes, em cartaz no Sesc Pinheiros, também em São Paulo. “O levante é um gesto sem fim, incessantemente retomado, soberano como pode ser chamado soberano o próprio desejo ou essa pulsão, esse ‘impulso de liberdade’ (Freiheitsdrang) de que falou Sigmund Freud”, escreveu em seu texto curatorial da exposição, cujas obras mostram corpos que, de braços erguidos, reagem ao peso do mundo. O que parece estar claro, para além do diagnóstico quase irrefutável de que vivemos tempos sombrios, é que o campo dos levantes é o nosso único campo de possibilidades. E ele se trata de um campo infinito.

BÁRBARA BURIL*, jornalista e mestre em Filosofia.

*A repórter cobriu o evento em São Paulo, a convite da Continente Online.

Publicidade

veja também

Os corpos que existem, mas não importam

Um pesadelo (ou um sonho) chamado Brasil

Narciso acha feio o que não é espelho