Cinema

Linduarte Noronha é lembrado em documentário e livro

Obras resgatam trajetória do pernambucano que fez história na Paraíba e influenciou o Cinema Novo com seu filme "Aruanda"

TEXTO Marcelo Abreu

29 de Agosto de 2025

Linduarte Noronha era um crítico engajado, muito comum na imprensa da época, onde se destilava uma militância de esquerda com forte antiamericanismo

Linduarte Noronha era um crítico engajado, muito comum na imprensa da época, onde se destilava uma militância de esquerda com forte antiamericanismo

Foto Acervo Cinemateca Pernambucana

O cineasta e crítico Linduarte Noronha, nascido em Ferreiros, zona da Mata Norte de Pernambuco, e que fez sua trajetória profissional no vizinho estado da Paraíba, é tema do documentário intitulado O homem por trás do Cinema Novo, em fase de produção e com previsão de estreia em 2026. O filme está sendo dirigido pelo professor, jornalista e produtor cultural Lúcio Vilar e pretende resgatar a história de Noronha (1930-2012), autor do clássico Aruanda, filme seminal para o movimento do Cinema Novo no Brasil.

Aruanda se insere na tradição documental que vem de O homem de Aran (1934), do norte-americano Robert Flaherty, e dos documentários etnográficos do francês Jean Rouch. O filme de Noronha foi reconhecido por Glauber Rocha, que o elogiou em artigo no Jornal do Brasil ainda antes da estreia, em 1960. De lá para cá, o filme tornou-se referência em cursos de cinema. Aruanda reconstitui, em 21 minutos de duração, a trajetória de uma comunidade quilombola isolada que, no século XIX, começou a produzir cerâmica para trocar na feira por alimentos, no sertão da Paraíba. Elogiado pelo uso inteligente dos escassos recursos de produção, o filme teve fotografia do também pernambucano Rucker Vieira (1931-2001).

Linduarte Noronha faria 95 anos neste mês de agosto. Além de realizar filmes, foi radialista, professor universitário e jornalista da imprensa escrita. O interesse pela temática retratada no seu filme mais famoso surgiu depois que ele fez uma reportagem de jornal sobre o assunto.

Para produzir o novo O homem por trás do Cinema Novo, Lúcio Vilar passou uma semana na Serra do Talhado, no município de Santa Luzia, no sertão da Paraíba, que serviu de tema e cenário para o filme de 1960. Lá entrevistou participantes do filme original e constatou mudanças na paisagem humana e física da região.

O mesmo Lúcio Vilar, que está fazendo o documentário, organizou e lançou recentemente o livro Luz, cinefilia...crítica! – Arqueologia e memória do crítico Linduarte Noronha, que resgata textos sobre cinema publicados no jornal A União, de João Pessoa, entre os anos de 1956 e 1967. A crítica de Linduarte se insere na tradição de textos engajados, muito comuns na imprensa da época, onde se destilava uma militância de esquerda com forte antiamericanismo. Em se tratando de cinema, alguns textos reunidos no livro demonstram uma relação de amor e ódio - amor ao cinema e ódio a Hollywood, se isso é possível.

Fiel a essa tradição, Linduarte criticava grandes lançamentos do cinema norte-americano, comentava trabalhos europeus mais requintados, refletia sobre experiências no cinema brasileiro e na sua própria obra, sobretudo o documentário Aruanda. O grande mérito do livro é resgatar parte dessa obra jornalística que, de outra forma, estaria amarelando nos poucos arquivos que mantêm coleções de jornais impressos. Uma curiosidade: mantido pelo governo do estado, A União é o último jornal diário ainda com circulação impressa na Paraíba, em tamanho standard, com 26 de páginas.

Como diz o organizador Lúcio Vilar, o livro reúne textos que “exalam aromas literários no flerte aberto com a crônica [...] entre acertos e erros, comuns no ofício em que esteve envolvido de forma ininterrupta, escrevendo todos os dias”.

Luz, cinefilia...crítica! traz também textos e depoimentos de alguns críticos sobre a obra cinematográfica e jornalística de Noronha. Entre eles, João Batista de Brito, crítico e professor aposentado da UFPB, afirma: “Aqui brota uma personalidade forte, aguerrida, que, aliás, não confere com o Linduarte idoso e pacato que conheci”. Brito faz a ressalva necessária de que “o leitor deve considerar que estas crônicas foram redigidas às pressas, na labuta jornalística, sem chance de pesquisas e correções, por isso, dando às vezes a impressão de serem descuidadas”. Realmente isso salta aos olhos, uma certa falta de esmero no texto. Outra curiosidade são as páginas do livro que reproduzem, em fac-símile, as páginas do jornal onde foram publicadas. As reproduções mostram que a diagramação em A União, e em muitos jornais brasileiros da época, era caótica e misturava notícias internacionais, crítica de cinema e colunismo social de forma aleatória, lado a lado.

O tom abertamente polêmico dos textos é instrutivo para os dias de hoje, dominados pelos melindres do politicamente correto e influência das assessorias de imprensa. Como ressalta o crítico de cinema Luiz Zanin Oricchio: “O conjunto é muito estimulante, ainda mais nessa nossa época em que o medo das palavras tem como efeito colateral o rebaixamento de nível do debate cinematográfico. No tempo de Linduarte não havia esse medo paranoico da polêmica. Cinema é conversa. Se todo mundo estiver de acordo, não existe diálogo possível”.

A série de oito textos publicados no jornal apresentando seu filme (entre os dias 23 de setembro e 1º de outubro de 1960) é encerrada por Noronha com uma frase curiosa: “Se este documentário não tiver contribuído, humildemente, para a jornada brasileira de reconhecimento a nós próprios, não teremos concretizados nossas intenções e, como tal, deverá ser eliminado da história do cinema nacional”. Aconteceu o contrário: Aruanda parece cada vez mais atual e vai ganhando importância com o passar dos anos.

MARCELO ABREU, jornalista e autor de livros de viagens.

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