Mas o corpo-objeto reclama seu direito de corpo-sujeito. No país onde mais se matam travestis e transexuais (em 2016, foram 127 assassinatos, segundo dados do Grupo Gay da Bahia; e em 2017, o número foi de 179, conforme o levantamento divulgado no último dia 25/1, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e onde menos se emprega essa população, um recente protesto de artistas tem levantado a discussão, principalmente nas redes sociais, sobre lugar de fala também nas artes cênicas. Tanto Carol Duarte quanto Silvero Pereira têm sido recorrentemente citados em críticas do movimento Representatividade Trans, formado por travestis e transexuais que trabalham com teatro, cinema e televisão.
Segundo o movimento, Carol e Silvero, por serem cisgênero (pessoas que se identificam com o gênero que nasceram), não deveriam interpretar personagens como Ivan e Gisele Almodóvar. “Estamos lutando por representatividade, oportunidade, emprego e distribuição de renda. Porque falar da gente, dar visibilidade a gente, não nos tira da marginalidade”, disse a atriz e diretora travesti Renata Carvalho em entrevista recente ao jornal O Estado de S. Paulo. Renata é protagonista da peça O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, na qual Cristo é uma travesti. No Sesc Jundiaí (SP), a montagem chegou a ser cancelada por um juiz, ou seja, censurada, após uma onda conservadora contrária à apresentação, no ano passado.
Em seu manifesto, publicado em março de 2017, o movimento Representatividade Trans frisa que “não existe meia representatividade”:
Será que sabem o que é crescer sem entender o que você é ou o que está acontecendo com você, por falta de um modelo a seguir? Também nos perguntamos: por que não tem atores cis interpretando as heroínas das histórias? Ou atrizes cis fazendo papel de galã? Não faz sentido, né? Então por que, quando se trata de personagens trans, convidam pessoas cis para os papéis? É liberdade artística? E sobre o ator não ter sexo? Nós artistas trans gostaríamos de conhecer de perto essa tal liberdade artística.
DILATAÇÃO DOS CORPOS Para Silvero Pereira, saído do interior do Ceará para morar em Fortaleza, são anos dedicados à temática trans. Na cidade, o ator integra o coletivo As Travestidas, cujas peças abordam questões ligadas a gênero e sexualidade. Entre um dos trabalhos, o primeiro da cronologia do grupo, está Uma flor de dama (2002), monólogo para o qual criou a personagem Gisele Almodóvar e que, desde então, é seu alter ego – conforme trecho da montagem:
Gisele nasce como uma personagem, mas com o passar do tempo, ela vai se apropriando da minha vida de uma forma que hoje vai além do palco. É até uma sensação meio engraçada, meio esquizofrênica. Eu não sei dizer exatamente onde, hoje, termina o Silvero e onde começa a Gisele.
Silvero Pereira em Br-Trans. Foto: Caique Cunha/Divulgação
BR-Trans foi todo construído como uma cartografia artística e social, num projeto de pesquisa em Porto Alegre, onde Silvero Pereira conviveu, na rua e em presídio, com mulheres transexuais e travestis. O ator desenvolveu a dramaturgia do espetáculo usando esses depoimentos como forma de abordar suas existências e denunciar as violências sofridas por elas – e muitas outras como elas. Em cena, ele “tatua” no corpo o nome de cada personagem como símbolo do quanto elas lhe marca(ra)m. A peça revela um ator transpassado pela sua narrativa, num trabalho de interpretação premiado em vários lugares do Brasil. Para mim, entretanto, esse olhar se estendeu além do corpo e da palavra; vejo uma autorreflexão sobre a sua feminilidade.
Carta do grupo das travestis com quem Silvero Pereira trabalhou
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É indiscutível o apagamento de artistas transexuais – historicamente, inclusive. Em Pernambuco, por exemplo, nas décadas de 1960 e 1970, o Vivencial, formado em sua maioria por gays e travestis, foi massacrado por críticas da intelectualidade artística local, acusado de ser um “não-teatro”:
Sinceramente, eu gostaria até de não contar na história do teatro do Recife como realmente um conjunto. Não era teatro. Meramente o striptease ou o tipo de espetáculo meio.... Eu não quero criticar. Um espetáculo que eu não apreciava. Acho que não adiantava muito no Teatro com T maiúsculo esse tipo de espetáculo. Não adiantava muito.
Eis a declaração do diretor e ator Reinaldo de Oliveira no livro TAP: sua cena e sua sombra (2011), de Antonio Edson Cadengue.
O grupo Vivencial em cena no Recife. Foto: Arquivo/Reprodução
Por outro lado, estamos diante de um debate sobre o próprio fazer teatral, que perpassa um dilema acerca do papel do ator/atriz, e sua livre possibilidade de interpretação. É inerente às artes cênicas a expansão do corpo, a dilatação dele a partir daquilo que se quer escrever. A transmutação dos atores e das atrizes em seus pensamentos é construtora de um “corpo utópico”, termo cunhado por Michel Foucault e que acompanha a ideia do teórico Richard Schechner – sumidade no estudo da performance – sobre teatro, ritual e jogo. “Quando temporariamente se transformam ou expressam um outro, elas [as pessoas] performam ações diferentes do que fazem na vida diária. Por isso, ritual e jogo transformam pessoas, permanente ou temporariamente”, escreve Schechner em texto publicado na compilação de artigos Antropologia e performance de Richard Schechner (2012).
Nos últimos anos, tenho me dedicado a uma pesquisa sobre masculinidade no teatro. Como o olhar político e a bagagem social do artista influenciam no seu discurso cênico? De que forma o movimento feminista refaz o homem contemporâneo, seus pensamentos, suas atitudes e, por consequência, sua arte? Eis algumas das minhas questões. Ao me deparar com o instigante e necessário debate sobre representatividade trans, aciono na memória a figura de Silvero Pereira e sua construção de Gisele – uma colcha de reconstruções, livre e inclassificável, para nos apropriar do pensamento de Antoin Artaud, defensor de um corpo sem órgão.
Estamos falando de um teatro performático, não de um teatro realista. O teatro das várias camadas redesenhadas e impulsionadoras do corpo, cuja obra se faz por aquilo que ergue através do contato, da troca. É óbvio que há uma potência insuperável na narrativa de quem vive o que se narra em detrimento à narrativa de quem narra o outro – isso é, a voz de uma atriz travesti ao contar de si é imensamente diferente da voz de um ator cis ao narrar a vida da travesti. No entanto, a experiência da performance é justamente criada pelos contatos, movimentada pela performatividade dos signos, dos símbolos e dos traços que tocam o artista. Aqui novamente recorro à teoria de Schechner, desta vez em seu livro Between theater and anthropology (1985): “Sequências de comportamento [que] não são processos em si, mas coisas, itens, ‘material’, [...] sequências organizadas de acontecimentos, roteiro de ações, textos conhecidos, movimentos codificados”.
Não vamos caminhar para um desacordo reducionista e preconceituoso, como o fez um colunista paulistano recentemente, em fala que beira a transfobia. É absolutamente legítima a reflexão proposta pelos artistas que lutam por representatividade. Mas o melhor caminho não é pelo silêncio de outras vozes. Lugar de fala, é bom sublinhar, não é exclusividade de fala, mas “uma leitura política, feita sobretudo pela pesquisadora indiana Gayatri Spivak, do que a Linguística e a Análise de Discurso já chamavam há décadas de sujeitos da enunciação”, como destaca o professor e pesquisador da USP Ferdinando Martins.
Para onde vamos? Eis a questão.
No próximo 11 de abril, o movimento trans lança o Dia Internacional da Visibilidade Trans (no Brasil, 29 de janeiro é o Dia Nacional da Visibilidade Trans), cujo mote será “Chega de trans fake”. A data remete à mesma da estreia do filme Carandiru, em 2003, dirigido por Hector Babenco. O longa-metragem brasileiro reconta os últimos dias às vésperas do massacre carcerário em São Paulo, em 1992, no qual a polícia matou mais de 100 homens naquele que era o maior presídio do Brasil.
Em seus bastidores, o filme de Babenco traz uma história de rejeição e preconceito que marca a luta de atrizes e atores da comunidade T. Inicialmente escalada para fazer o papel da travesti Lady Di, a atriz Telma Lipp foi cortada do elenco pouco antes das gravações e substituída pelo ator Rodrigo Santoro. “Por questões de marketing”, diz Renata Carvalho, explicando que o fato de ser transexual implicou na saída de Telma do projeto, após pressão de patrocinadores. Com o ocorrido, a atriz voltou à depressão que a levaria à morte. “Acreditamos que os artistas de 2018 precisam repensar o seu fazer artístico”, defende Renata.
No caso do teatro, nos lembremos também dos negros, em sua histórica luta de combate ao black face, iniciada na segunda metade do século XX, em oposição ao uso jocoso de uma máscara preta sobre o rosto de artistas brancos, para satirizar e interpretar negros. Outro movimento importante de luta por espaço na arte acontece no cinema brasileiro, principalmente por mulheres cis. Desde 2015, o site Mulher no Cinema levanta dados e propõe discussões sobre a presença feminina na produção audiovisual – em consonância com outros movimentos mundiais. Não se pediu o boicote aos homens, mas o direito de voz e atuação das mulheres.
É isto que importa discutir: onde estão, o que produzem, como se formam e sobre o que têm criado os atores e atrizes, cuja representatividade, como sabemos, está sempre sendo ameaçada. E este é o caso de travestis e transexuais.
MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador e crítico de teatro. Mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.