Artigo

O cinema autoral em Hollywood

Em meio à cobrança por bilheterias exorbitantes na indústria cinematográfica, nova geração de diretores consegue imprimir estilo próprio em seus filmes

TEXTO Rodrigo Carreiro

14 de Dezembro de 2017

Diretor de 'Blade runner 2049', Denis Villeneuve é um dos nomes de destaque da nova geração de cineastas de Hollywood

Diretor de 'Blade runner 2049', Denis Villeneuve é um dos nomes de destaque da nova geração de cineastas de Hollywood

FOTO Divulgação

Pedro Almodóvar, Apichatpong Weerasethakul, Tsai Ming Liang, Michael Haneke, Lars Von Trier. Esta lista reúne alguns dos mais prestigiados cineastas em atividade, que possuem pelo menos dois pontos em comum. Em primeiro lugar, todos assinaram obras que se destacam pela longevidade e por um forte sabor autoral, que permitem a qualquer cinéfilo atento identificar seus filmes com facilidade. Em segundo lugar, nenhum deles é norte-americano – e todos trabalham longe dos tentáculos dos grandes estúdios dos EUA. Isso poderia significar que a talentosa geração New Hollywood, aquela cujos realizadores (entre eles Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Brian De Palma, Robert Altman, William Friedkin e, sim, Steven Spielberg e George Lucas) despontaram em meados dos anos 1960 e estão na casa dos 70 anos de idade, não vai deixar herdeiros que façam filmes sem olhar para o resultado das bilheterias, e que constituam uma obra estilisticamente coesa e autoral?

Um olhar superficial para o estado atual da indústria cinematográfica norte-americana poderia passar a impressão de que a resposta a essa pergunta seria positiva. Um exame mais acurado do mercado audiovisual, contudo, permite vislumbrar uma situação bem diferente. Existe, de fato, um grupo de jovens cineastas nos Estados Unidos que, atuando às margens ou flertando de modo discreto com o mercado mainstream, tem apostado mesmo na noção de autoria cunhada nos anos 1950 pelos redatores da célebre revista francesa Cahiers du Cinema (François Truffaut e Jean Luc Godard entre eles), e defendida nos EUA por Pauline Kael e Andrew Sarris, críticos que ajudaram os principais nomes da New Hollywood a se estabelecer com sucesso na turbulenta indústria do cinema da época. Entre os autores mais talentosos da atualidade, estão nomes como James Gray, Dennis Villeneuve, Sofia Coppola, Paul Thomas Anderson e Darren Aronofsky.

Nenhum deles é exatamente famoso (os dois últimos, mais longevos, são um pouco mais conhecidos), mas todos possuem pelo menos duas décadas de carreira, transitam com naturalidade por diferentes gêneros fílmicos, e lançaram títulos autorais com financiamento ou distribuição de grandes estúdios de Hollywood. Nenhum deles dirigiu um filme da Marvel ou um episódio de franquias milionárias como Star Wars; possivelmente são mais respeitados fora dos Estados Unidos do que dentro do país onde trabalham. Em boa medida, eles são os principais descendentes históricos de uma curiosa política de apoio a realizadores considerados visionários, que nasceu no princípio dos anos 1970, dentro da Warner – um dos cinco principais estúdios de Hollywood –, e foi seguida pelas demais corporações da indústria cinematográfica. Essa política, detalhada por historiadores de Hollywood como Peter Biskind, consistia em bancar a obra de cineastas de grande talento (muitas vezes excêntricos, pouco preocupados com o lucro, ou ambas as coisas) por razões ligeiramente mais altruístas do que a venda de ingressos.

Biskind conta que a política de bancar diretores autorais, dando-lhes liberdade criativa sem lhes cobrar desempenho de bilheteria, nasceu por causa da vontade que o executivo John Calley acalentava de trabalhar com Stanley Kubrick, a quem tinha na conta de gênio. Em meados de 1970, Calley recebeu convite para dirigir a Warner, que tinha acabado de ser vendida. Tinha só 39 anos e era produtor e melhor amigo de Mike Nichols. Ao longo da década, ele convenceria o estúdio a produzir filmes como O Exorcista (William Friedkin), Um Dia de Cão (Sidney Lumet) e Todos os Homens do Presidente (Alan J. Pakula), entre outras obras-primas. Mas uma de suas primeiras ações como executivo do estúdio foi procurar Kubrick, então recluso numa mansão na Inglaterra, para garantir que o respeitava tanto como artista que bancaria todos os filmes seguintes dele. E assim foi. Depois disso, os demais grandes estúdios de Hollywood passaram a adotar políticas semelhantes, o que permitiu o desenvolvimento de carreiras notáveis de realizadores como Terence Malick, Brian De Palma e Martin Scorsese, cujos filmes frequentemente davam lucro mínimo (ou, às vezes, prejuízos consideráveis), mas que nasciam como expressões audiovisuais das ideias de seus realizadores, a quem era permitido trabalhar sem interferências criativas.

Ao longo das décadas seguintes, essa espécie de política dos diretores foi gradualmente se tornando mais rara, especialmente depois que o sucesso estrondoso de Tubarão, Star Wars e outros blockbusters despertou a atenção dos executivos para o potencial de franquias e filmes endereçados a plateias adolescentes. Aos poucos, os cineastas que desfrutavam do tipo de liberdade que Kubrick tinha na Warner foram se tornando cada vez mais raros. Alguns nomes, porém, ainda conseguem conceber seus próprios filmes (muitas vezes usando produtoras independentes, fazendo os estúdios apenas distribuir o produto final) e trabalhar com maior grau de autonomia criativa. São poucos, contudo, os que conseguiram construir uma obra longa e duradoura, com características autorais. À parte a exceção óbvia de Quentin Tarantino, cuja relação de trabalho com o estúdio dos irmãos Harvey e Bob Weinstein se tornou bem parecida com a nutrida entre Kubrick e John Calley (não se sabe como essa relação ficará após o escândalo envolvendo Harvey, acusado de assédio sexual por dezenas de atrizes), uns poucos realizadores têm trabalhado duro para conceber filmes autorais dentro da esfera de influência de Hollywood.

George Lucas no set de Star wars, que, em 1977, mudou o cinema comercial

Paul Thomas Anderson talvez seja o mais recluso dos cinco diretores que enxergamos nesse perfil. Na ativa desde 1996, quando lançou de forma independente o thriller Jogada de risco, ele entrou para o time dos realizadores jovens mais talentosos dos EUA no ano seguinte, com Boogie Nights – Prazer sem Limites, um retrato pungente da indústria de cinema pornográfico na virada dos anos 1970 para os anos 1980, que funciona também como uma metáfora engenhosa para a relação ambígua e complexa entre arte e entretenimento. Magnólia (1999), um emaranhado de trama que cruza as vidas de quase 20 diferentes personagens com toques de realismo fantástico e citações bíblicas, concretizou-o como realidade autoral. Craque em composições rigorosas de época, e capaz de transitar sem dificuldade por gêneros distintos como a comédia (Embriagado de Amor, de 2002) e o drama de época (Sangue Negro, de 2007), Anderson vem desde então filmando em ritmo tranquilo, sem obedecer a convenções comerciais, mas sempre acompanhado de grandes atores (Daniel Day-Lewis, Joaquin Phoenix).

Darren Aronofsky talvez seja o nome mais surpreendente, porque é também aquele que produz filmes mais acessíveis, e o único que já assumiu uma grande produção – Noé, de 2014, cuja conhecida trama foi torcida e retorcida para transformar o personagem bíblico num típico personagem de Aronofsky: um ser atormentado por pesadelos e delírios cabalísticos, que é lentamente tragado para um abismo de loucura e isolamento. Desde Pi (1998) até Mãe! (2017), passando por Réquiem para um Sonho (2000) e Cisne Negro (2010), Aronofsky construiu uma obra consistente, com insistentes citações religiosas, adornadas por um estilo exuberante, que inclui uma câmera inquieta, paleta de cores saturadas e efeitos sonoros hiper-reais. O cinema que ele produz, goste-se ou não, busca uma experiência sensorial completa – e muitas vezes atordoante.

A única mulher da lista, Sofia Coppola, também é a única com pedigree. Filha de Francis Ford Coppola, Sofia foi criada em quartos de hotel, viajando pelo mundo com o pai, e essa criação – o tédio e a alienação da vida dos milionários – tem sido uma marca autoral que percorre toda a sua obra, iniciada em 1999 com o elogiado drama As Virgens Suicidas. Como os demais cineastas da lista, ela é capaz de transitar com naturalidade por diferentes gêneros, vide a cinebiografia pop de Maria Antonieta (2006), um retrato vibrante e colorido das futilidades da vida nas altas cortes europeias do século XVIII.

Dono de uma trajetória mais discreta e episódica, James Gray talvez seja o mais independente – e por consequência, desconhecido – dos cineastas enfocados aqui. Começou a filmar em 1994, com o pequeno drama familiar Fuga para Odessa, e demorou seis anos para voltar às telas. Nos intervalos entre os filmes, costuma dar aulas em universidades de cinema e trabalhar como consultor de roteiros. Já fez filmes de época (Era uma Vez em Nova York, de 2013) e épicos sobre a relação entre o homem e a natureza (Z: A Cidade Perdida, de 2016), mas todos os filmes focalizam personagens com obsessões impossíveis que são muito maiores do que eles, e por vezes os conduzem à completa ruína. Sua associação com atores de renome – Joaquin Phoenix, Mark Whalberg, Marion Cotillard – o ajuda a manter um vínculo permanente com Hollywood, mas somente no que se refere à distribuição. Para produzir os filmes, ele prefere trabalhar de forma independente, às vezes com a ajuda da produtora Plan B, de Brad Pitt.

Por fim, o canadense Dennis Villeneuve parece ser o mais versátil de todos. Na ativa desde 1998, ele já trabalhou com dramas familiares (Incêndios, de 2010), thrillers policiais violentos (Sicário: Terra de Ninguém, de 2015), realismo fantástico (O Homem Duplicado, de 2013, adaptação de um romance de José Saramago) e, por duas vezes seguidas, com ficções científicas incomuns, que contêm mais drama e humanidade do que ação e efeitos especiais (A Chegada e Blade Runner 2049, respectivamente de 2016 e 2017). Sua marca autoral mais perceptível é o olhar filosófico, e por isso seus personagens estão sempre às voltas com decisões de ordem moral capazes de impactar a vida de todos ao seu redor.

Como seus colegas que não têm interesse em dirigir filmes da Marvel, Villeneuve faz parte de uma geração para quem perseguir o sonho autoral de liberdade criativa tem sido um objetivo complexo. Outros cineastas flertam com esse grupo de realizadores autorais, a exemplo de Gus Van Sant, Joel e Ethan Coen, David Fincher e Steven Soderbergh; alguns desses, porém, possuem carreiras mais oscilantes, ou estão integrados de maneira mais firme à tradição comercial de Hollywood, o que frequentemente afeta o impacto autoral de sua obra. Os resultados desse desejo por liberdade criativa, contudo, formam um conjunto de filmes mais próximo da ousadia alcançada pelos mestres dos anos 1970.

RODRIGO CARREIRO, jornalista, crítico e professor do curso de Cinema da UFPE.

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