Artigo

Chico Buarque: 80 anos do prodígio

TEXTO Débora Nascimento

19 de Junho de 2024

FOTO Leo Aversa/Divulgação

Os ponteiros tinham ultrapassado as seis horas da noite e eu ainda estava na redação esperando uma ligação telefônica. Nos anos 1990, época de fartura no mercado fonográfico nacional, as assessorias de imprensa das gravadoras, nos casos de entrevistas com artistas de repercussão nacional, convidavam, com frequência, os repórteres para coletivas no Rio ou em São Paulo, ou ligavam para os jornais e colocavam o tal artista, que estivesse lançando disco ou show, em contato com os jornalistas. Naquele dia, em 1999, toda a equipe da editoria de cultura em que eu trabalhava já havia largado algumas horas antes das 18h. Permaneci na redação, porque o assessor de imprensa tinha me garantido que a entrevista iria acontecer. Em algum momento da espera, um raro silêncio que se fez no ambiente foi quebrado por uma ligação. Atendo imediatamente com um curioso “Alô?”. Do outro lado da linha, surge uma voz conhecida: “Débora?” Respondo, para confirmar: “Chico?”

O início do diálogo fez parecer que os dois interlocutores se conheciam. Mas eu estava prestes a conversar com Chico Buarque pela primeira vez. Dias antes, ao saber que a entrevista iria mesmo acontecer, eu já estava me preparando para enfrentar o nervosismo do momento. Afinal de contas, não é todo dia que a gente tem a oportunidade de ter contato com um artista desse quilate. Mesmo com a expectativa tensa, quando o trabalho precisa falar mais alto, é necessário conter a possível tremedeira, colocar a fã, que há em si, no modo avião e aparentar normalidade.

Entrevistar pessoas famosas pode ser um estresse a mais para um jornalista, quando o comum da profissão envolve obter respostas, informações e opiniões dos entrevistados e não se defrontar com ídolos “intocáveis”, adjetivo usado por Paulo Francis para definir Chico Buarque. Mas não somos robôs. Então, é necessário forçar a mente a colocar o profissionalismo em primeiro lugar. Preparei mais de 20 perguntas para fazer ao compositor. Ele respondeu a todas. Inclusive uma que talvez nunca tivesse ouvido: “O que você acha de o preço do ingresso do seu show ser a metade do valor do salário mínimo?” Após alguns segundos de silêncio do outro lado da linha (talvez por incredulidade dele com a ousadia), respondeu, de modo sempre cortês, que o valor não era definido por ele.

Bem, não entrarei agora em controvérsias quanto a essa questão de ingresso de show, mas, naquele momento, eu gostaria que ele, ligado a questões políticas e sociais, tivesse me dado outra resposta. A pergunta foi feita exatamente por causa dessa característica. Minha expectativa era que o compositor criticasse o valor do salário mínimo e não simplesmente pusesse a culpa do valor do ingresso de seus shows nos empresários. Esse talvez tenha sido o momento mais iconoclasta da minha vida de repórter, no que se refere a entrevistar um artista do qual sou fã. Afinal, a pergunta, claro, poderia insinuar a responsabilidade dele em relação ao valor desmesurado. Mesmo com a resposta hesitante, considerei a entrevista exitosa, o que me deixou com a sensação de que já tinha valido o meu diploma de Jornalismo.

Só que ainda haveria mais Chico Buarque naqueles dias de 1999, quando o artista veio ao Recife apresentar a turnê do disco As cidades (1998). Na realidade, houve uma recomendação da chefia de redação para que eu "colasse" nele durante o período em que ele estivesse na capital pernambucana. A ordem tinha a ver com o tipo de jornalismo que estava sendo praticado no mundo. Em muitos jornais e veículos de comunicação, as editorias de cultura faziam, também, uma cobertura quase de coluna social, tratando os artistas primordialmente como celebridades.

Lady Di havia morrido pouco tempo antes, em 1997, por causa da perseguição dos paparazzi na França. Mas no Brasil, e em muitos países, poucos se incomodaram com as consequências desse tipo de invasão de privacidade. Com a crise do papel na imprensa, o departamento comercial queria mais era vender jornais e revistas. Isso perdurou. A prova é que em 2009 foi publicada a seguinte notícia no site EGO: “Na tarde de sol desta segunda-feira, 2, o cantor e compositor Chico Buarque trocou a sua tradicional caminhada pela orla de Ipanema, na Zona Sul do Rio, por uma ida até a padaria perto de sua casa. Chico comprou duas baguetes para o lanchinho da tarde.”

Dez anos antes, em 1999, o artista havia sido flagrado com uma “morena carioca” no mar do Leblon e seu beijo (ou tentativa) foi capa da revista Quem. Por isso, a recomendação de “colar” no artista tinha a intenção de, quem sabe, flagrá-lo com algum novo par ou com essa mesma morena carioca. Naquele mesmo ano, o cantor havia se separado de Marieta Severo, com quem esteve casado durante 33 anos, e a solteirice do antigo namoradinho do Brasil despertou a curiosidade do público e o interesse da mídia.

De alguma forma, havia voltado, então, parte do imenso assédio do qual ele fora alvo quando despontou nacionalmente, em 1966, após o sucesso de A Banda, vencedora do 2º Festival de Música Popular Brasileira. Na época, Carlos Drummond escreveu crônica sobre o jovem de 22 anos, cujas letras considerava poemas. Nelson Rodrigues e Paulo Francis também teceram comentários sobre o rapaz. No contexto de polarização ideológica no Brasil provocada pela ditadura militar, Millôr Fernandes o chamou de “a única unanimidade do país”. O jovem artista estava na boca do povo, nos programas de rádio, nas TVs, nas revistas, nos jornais. As moças sonhavam em namorá-lo e as mães em tê-lo como genro.

“A banda chegou e não passou, veio para ficar na vida de todos. Do dia para noite, dezenas de capas de revistas estampavam o menino de olhos cada vez mais assustados. Ele tentava levar a vida naturalmente, mas nada mais era natural àquela altura. Como de costume, numa madrugada, Chico promoveu uma serenata para a namorada, e no dia seguinte a aventura tinha se transformado em notícia de primeira página num jornal do Rio. Tudo que ele até então fazia por pura molecagem teve que ser radicalmente cortado de sua vida para não passar por exibicionismo, que era exatamente o que sempre evitou. Em casa, o telefone tocava sem parar”, escreveu Ana de Hollanda, no texto Chico Buarque aos olhos da irmã menor, publicado na edição de abril da revista Piauí.

Ela narra que, com o estouro da composição, a casa de Chico Buarque, em São Paulo, foi invadida por curiosos que circulavam por lá e até abriam o portão, batiam na porta e perguntavam se ele estava. A ex-ministra da Cultura relatou que garotas do seu colégio que nunca haviam falado com ela passaram a convidá-la para frequentar suas casas, em troca de convites para irem à sua casa na rua Buri, onde a família Buarque de Hollanda passou a morar depois que saiu do Rio de Janeiro, quando Chico tinha dois anos de idade. Nesse período pós-A banda, o artista começou a ser bastante procurado pela imprensa. Se não conseguissem uma entrevista com ele, passavam a inventar histórias, romances, brigas, factoides.

Segundo Ana de Hollanda, foi nesse período que seu irmão começou a ficar ressabiado com a imprensa e pensava com zelo nas palavras a serem ditas. A cantora disse que viu o irmão se transformar em uma pessoa menos brincalhona, abandonando as traquinagens e piadas pelas quais ele era conhecido no núcleo familiar e entre amigos. No artigo, ela rechaça a ideia de que o artista fosse uma pessoa “tímida”. Na adolescência, Chico era uma espécie Ferris Bueller, protagonista de Curtindo a vida adoidado: era bonito, inteligente, simpático, engraçado, popular e travesso – adorava passar trotes por telefone e uma de suas brincadeiras preferidas era furtar carros e abandoná-los em ruas próximas.

Uma dessas vezes, em 29 de dezembro de 1961, foi pego e teve, aos 17 anos, sua primeira passagem pela polícia, que acabou resultando em uma prisão de poucas horas, uma foto de boletim de ocorrência e um tapa na cara, ambos descritos na música A foto da capa, de Paratodos (1993) – disco que marca uma nova fase na carreira do artista, com a presença do violonista e arranjador Luiz Cláudio Ramos, que passou a ser produtor de suas gravações e diretor musical dos shows.

No texto E se Chico fosse um guri da favela?, publicado no site da Continente, escrevi sobre aquela detenção na adolescência e levantei a possibilidade de que, se fosse um guri negro, talvez essa traquinagem, encarada como delinquência juvenil, poderia ter arruinado toda a vida dele. “Não existia a droga. Ninguém fumava maconha, ninguém cheirava cocaína. Mas a onda no meu tempo era essa, roubar carro”, recordou o compositor, em uma entrevista de 1990, afirmando que o filme Juventude transviada (1955) era uma referência.

Naquela semana no final dos anos 1990, em que Chico Buarque estava no Recife, ainda o "persegui" mais, atendendo às pistas que chegavam à redação. “Chico Buarque está jogando bola em um campo de futebol society…”. Fui, então, descobrir onde ele estaria jogando e com quem. “O baterista da banda, Wilson das Neves, vai fazer uma apresentação em um bar de Boa Viagem…”. Fui ao show também, na esperança de que o artista pudesse aparecer. “Chico Buarque vai passar o som no Teatro Guararapes”. Fui e ele realmente estava lá.

Eu já havia o entrevistado por telefone na semana anterior. Logo, não haveria necessidade para mais uma, tão recentemente. Porém, como não poderia perder a oportunidade, inventei mais algumas questões. No momento em que ele começou a responder pessoalmente, cara a cara, percebi que, na realidade, eu o havia interrompido em alguns momentos durante a entrevista por telefone, pois ele tinha uma forma de dar respostas com começo, meio e fim, dando a entender que havia terminado. Mas poderia dar uma pausa e retomar a fala sobre um assunto específico.

Hoje em dia, Chico Buarque dá raríssimas entrevistas, como uma breve que concedeu à biógrafa Regina Zappa, em 2022, para o 247 – provalvemente o objetivo era esclarecer uma discussão do momento, o possível machismo na letra de Com açúcar e com afeto, polêmica despertada nas redes sociais por conta do documentário O canto livre de Nara Leão (Globoplay).

Com a internet, ele não precisa mais do espaço nos jornais e nas revistas para "vender" seus discos e shows, mesmo com ingressos tão caros quanto 25 anos atrás. Com a internet, ele também constatou, de forma bem humorada, que não era mais uma unanimidade. Mesmo com o sucesso do meme Chico feliz, Chico triste, baseado na capa de seu primeiro disco, ele recebia muito conteúdo de haters, resultado de uma maior polarização política na sociedade brasileira.

Parte da trajetória de Chico Buarque, de alguma forma, quase espelha a de Bob Dylan. A diferença é que o ícone norte-americano é recluso. E Chico pode ser visto circulando a pé no Leblon ou em Paris - possui apartamentos nesses lugares díspares. Os dois artistas, no início de suas carreiras tiveram, inclusive, comportamento e impacto semelhantes, em seus respectivos países – transformando a forma de se escrever letras de música. Eram bastante associados ao ativismo político e teciam críticas sociais em suas letras, com direito a narrativas complexas, personagens marcantes e incomuns na música popular, rimas intrincadas, versos bastante poéticos e até composições baseadas em fatos reais.

O fato de cantarem suas próprias composições dividia a audiência, pois eles não têm grande alcance vocal, interpretação arrebatadora e um belo timbre. “Voz chinfrim”, brincou Chico sobre a sua própria, em Até o fim, do álbum Chico Buarque, de 1978. Mas há muitos ouvintes que preferem suas composições nas vozes dos autores, pelo selo de autenticidade que confere a versão original dos criadores. Outra coincidência é que ambos os artistas de olhos azuis são muito bem-humorados, embora Bob Dylan atribua a sua sisudez nas suas fotos aos pedidos dos fotógrafos para que não sorrisse. Ele já foi flagrado tentando conter suas risadas em coletivas de imprensa, enquanto Chico, às vezes, de tanto rir, mal consegue terminar de contar uma história engraçada.

Se Dylan recebeu, com justiça, o Prêmio Nobel em 2021, Chico Buarque ainda não chegou a tanto, porque a indústria musical brasileira continua tendo dificuldade em ultrapassar a barreira da língua no mercado internacional. Já o cantor brasileiro recebeu o Prêmio Camões, em 2019, entregue em cerimônia somente em 2023, por questões do governo federa anterior. Mas merecia ter uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, muito antes de tantos outros nomes que lá estão sentados e principalmente depois que Gilberto Gil, seu parceiro em Cálice, ingressou no rol dos imortais da literatura.

A propósito, o baiano, co-idealizador do Tropicalismo, chegou a convidar Chico para participar das reuniões de concepção do movimento, nos anos 1960. Chico foi a algumas, mas desistiu de participar da iniciativa. No entanto, isso não o isentou de experimentar em suas músicas, como misturar baião e rock em Baioque (que integra a trilha sonora do filme Quando o Carnaval chegar, de Cacá Diegues, lançado em 1972); gravar Me deixe mudo, do compositor paulistano maldito Walter Franco, no disco Sinal fechado (1974), e de incluir um fenomenal arranjo do maestro tropicalista Rogério Duprat na música Construção (1971).

Esse "novo" Chico Buarque, que despontou algum tempo depois de A Banda, surpreendeu muitos fãs que o consideravam apenas um "bom moço" – setores conservadores da sociedade, por causa do lirismo do compositor, o consideravam "um deles". "Sou nostálgico como o Chico Buarque de Hollanda. Como se sabe, o mistério do Chico é o passado. Se eu tivesse de datar sua poesia, escolheria o ano de 1920. Ninguém tão 1920. Todo o seu lirismo desabrocha em janelas. Os trovadores do Rio antigo também eram assim. Reexaminem a letra das velhas modinhas. Tudo era um lírico pretexto para janelas. E o Chico fascina por isso mesmo: – porque faz música de 1920 e verso de 1920", escreveu Nelson Rodrigues em crônica de 1969.

Dois anos depois, o mesmo cronista assinalou uma suposta mudança no comportamento do cantor depois que voltou da Itália, onde esteve exilado. “Ora, geralmente são os outros que assassinam os mitos. Se continuar como vai, o nosso menino será o primeiro mito que se mata, sim, o primeiro mito suicida”, escreveu Nelson, declarando o começo do fim da imagem "intocável" da "única unanimidade nacional".

Essa nunca foi uma preocupação para Chico Buarque. Em seus 80 anos e 58 anos de carreira, já são 537 canções, 1.302 gravações, 50 discos (solos ou com parceiros, em estúdio ou ao vivo), quatro peças de teatro, uma novela, um livro de contos e seis romances – o próximo, Bambino a Roma, será publicado em agosto pela Companhia das Letras.

Se quantidade pode não significar qualidade, no caso de Chico Buarque é diferente. Ele subverte o conceito de obra-prima – o trabalho mais importante de um artista. Chico tem muitas. Se tivesse feito apenas Construção, ele já teria sido um mito dentro da música popular brasileira. Mas ele criou mais, centenas de canções emblemáticas: Cálice, Cotidiano, Deus lhe pague, Futuros Amantes, Geni e o Zepelim, Gota D'água, Mulheres de Atenas, O Cio da Terra, O Meu Guri, Olê Olá, Olhos nos olhos, Pedaço de mim, Quem te viu Quem te vê, Roda viva, Sabiá, Sinal fechado, Tanto mar, Tatuagem, Todo o sentimento, Trocando em miúdos, Vai passar…

O crítico Mauro Ferreira, do G1, definiu o aniversário de 80 anos do compositor carioca, completados nesta quarta-feira (19), como a "efeméride mais importante da MPB em 2024". Para defender essa frase, vamos usar um clichê muito surrado, Chico é o Pelé da Música Popular Brasileira, um prodígio, um gênio que deveria dar orgulho em cada cidadão brasileiro. No sábado (15), o artista esteve presente à marcha contra o avanço da extrema-direita na Europa. Junto a ele, estavam sua atual esposa, a advogada Carol Proner e o jogador Raí. São 80 anos, mas é o mesmo Chico de sempre.

DÉBORA NASCIMENTO, editora-adjunta das revistas Continente e Pernambuco

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