Um Brasil múltiplo e contraditório em exposição na Fundação Calouste Gulbenkian
TEXTO Álvaro Filho
22 de Dezembro de 2025
Três anos depois das celebrações do bicentenário da independência do Brasil, Portugal abre as portas para uma homenagem oficial à data. Complexo Brasil ocupa dois pisos da prestigiada Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, numa mega-exposição de tirar o fôlego com participação significativa de Pernambuco e que abriu as portas sob o signo da polêmica.
O “atraso” no registro de um marco nas relações históricas entre brasileiros e portugueses, explica a Gulbenkian, foi provocado pela falta de diálogo com o governo Jair Bolsonaro, marcado entre tantos retrocessos, pela desidratação das relações internacionais, o que tornou impossível a sinergia entre os dois países para a realização da exposição.
Nós diplomáticos desatados, a missão foi convencer o nome escolhido pelos portugueses para capitanear a curadoria, o pesquisador e escritor Miguel Wisnik, em aceitar o convite. Aos 77 anos, Wisnik já tinha tornado pública sua decisão de não participar em júris ou curadorias, mas acabou convencido pelo filho, o arquiteto, professor e curador Guilherme Wisnik.
“Disse a ele, pai, cê tá doido, um convite desses não se rejeita”, lembra Guilherme, que ao lado da também curadora e pesquisador em literatura, Milena Britto, formam o trio de cabeças por trás de uma exposição que tem a ousada pretensão de (re)apresentar não só o Brasil mas o brasileiro aos portugueses, em tempos de xenofobia crescente em Portugal e na Europa.
Uma tarefa complexa que justifica o título da exposição, mas também, como frisou Miguel Wisnik, reflete tantas peculiaridades - e complexidades - desse Brasil, como o rearranjamento urbano menos planejado e mais orgânico, típico nas periferias das capitais, notadamente no Rio de Janeiro e seus “complexos”, o mais famoso deles o Complexo do Alemão.
Esse deambular sem Waze do Brasil em seu percurso histórico e sociológico deu o tom do projeto assinado pela cineasta, dramaturga, iluminadora e cenófraga Daniela Thomas, que elevou a exposição ao patamar de experiência multissensorial, apostando nas cores, nos contrastes, na plasticidade, na música e no audiovisual, num verdadeiro “se-liga” infligido ao visitante.
O trajeto sugerido igualmente abraça um certo caos do Brasil complexo, afrouxando o laço da sequência cronológica, dispensando o rigor da museologia, unindo o histórico e contemporâneo no mesmo espaço desde a entrada, quando o tapuia do pintor da comitiva de Nassau, Albert Eckhout, do século XVII, encara o manto de plumas do século XXI de Glicéria Tupinambá.
Eckhout, que registrou o Brasil Holandês a partir do Recife, a então Mauritsstad, é uma das várias referências pernambucanas presentes na exposição. Junta-se a ele, por exemplo, os quadros de Magno Montez, no chamado núcleo construtivista brasileiro, que se destaca do movimento internacional ao “entortar” a geometria com as nossas referências.
Referências que também marcaram a “ágora brasileira”, em outras palavras, a forma como o Brasil organizou o espaço público urbano, diverso do modelo helênico modelo das cidades europeias, o da praça e boulevards, por onde os moradores flaneiam. Dois pernambucanos contribuem para ilustrar a peculiaridade arquitetônica nacional.
O primeiro deles é o artista plástico Bruno Faria, que emula através de duas metades cortadas de uma laranja e um par de garrafas de Crush o Congresso Nacional. A escolha não é fortuita, pois segundo o curador da sessão, Guilherme Wisnik, Brasília foi a maior e mais frustrante tentativa brasileira de organizar o espaço público a partir do exemplo helênico.
“O muro que hoje em dia se arma em frente ao Congresso para separar os apoiantes da esquerda e da direita, fraturando o espaço público, é um sinal dessa tentativa falhada”, explica Guilherme. Para o arquiteto, a alternativa brasileira está em outras “ágoras” que nascem da ocupação natural das pessoas, como os campos de futebol em meio a favelas e a principal deles, a praia.
É aí que Pernambuco volta a figurar na exposição, através da plasticidade da fotografia de Bárbara Wagner na qual duas crianças e um cavalo banham-se nas águas mornas num dia de sol no Buraco da Véia, no Pina.
Outro ponto alto de Complexo Brasil são as experiências audiovisuais, entre eles o o documentário O Peixe, do pernambucano Jonathas de Andrade, a lembrança da nossa relação com a natureza ao retratar uma comunidade pescatória em Alagoas onde os pescadores abraçam-se aos peixes num consolo durante a agonia do animal até a morte.
Mas nem só de boas relações vivem brasileiros e a natureza e a sessão dedicada à exploração da Amazônia é um exemplo de como temos maltratado o pulmão do mundo. Aliás, desse tópico eclodiu a maior polêmica envolvendo Complexo Brasil e os portugueses, graças ao texto assinado pela jornalista Eliane Brum no belíssimo catálogo da exposição.
Intitulado Carta da desfundação do Brasil e dirigida aos “descendentes dos súditos do Rei Dom Manuel I”, o texto convoca os portugueses a reconhecer os danos provocados pelo colonialismo e aceitar sua responsabilidade especificamente na formaçäo do Brasil como nação, tocando numa ferida do tamanho da Amazônia que os patrícios têm enorme resistência em falar a respeito.
Apesar da chamada na grande de Eliane Brum, Complexo Brasil não se reduz ao confronto ou ao statement decolonial. É uma forma de os portugueses reconhecerem o Brasil para além dos cenários da novela, do Cristo Redentor ou das praias do Nordeste, e entenderem ainda quem é esse brasileiro tão estranho e familiar com quem convivem cada vez mais em sua casa.