Artes Visuais

"O artista cria com o útero aberto"

A artista pernambucana Juliana Notari expõe 24 anos de trajetória no Museu de Arte Aloísio Magalhães (Mamam), neste sábado (19), às 15h

TEXTO Carol Botelho

17 de Outubro de 2024

"Spalt-me" mostra ferida aberta por Juliana em fotografia do Congresso Nacional

Crédito Intervenção digital sobre fotografia de Eurico Zimbres

Uma exposição retrospectiva de arte pode ser muito mais do que a exibição de obras que representam uma trajetória artística. A da artista pernambucana Juliana Notari já vai nos 24 anos e contando. De volta a expor no Recife após oito anos, Juliana apresenta Spalt-me, uma grandiosa mostra que dá conta desse caminho percorrido até aqui e dá pistas, para si e para o público, do que virá em seguida, com obras inéditas. De “Janta” (2001) e “Assinalações” (2001) até “Symbebecospiral” (2022), passando por “Dra. Diva” (2003) e “Amuamas” (2003), além da própria “Spalt-me” (2009) estarão no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), a partir deste sábado (19), às 15h.

Através de intervenções, instalações, videoinstalações e performances, a artista utiliza o próprio corpo como suporte de sua expressão artística, que é sempre muito forte. Tão forte que ultrapassa a fronteira da pele, reflete no espectador e rebate de volta na artista.

Organizada em três núcleos, a mostra revela questões importantes da poética da artista: corpo, ferida, gênero, carnalidade, tempo, violência, sexualidade, historicidade, linguagem, trauma, paisagem. No primeiro núcleo, no andar térreo, Juliana exibe as questões do corpo como protagonista e do humano na relação com o não humano. “Os animais, a escatologia, a alimentação, a destruição, a vida, a morte, o trabalho”, enumera a artista em entrevista à Continente.

O título da mostra, Spalt-me, é algo como abrir uma ferida, uma ruptura não somente na própria artista, mas também no entorno, material ou subjetivo que faz parte dela e de qualquer indivíduo, como o espaço urbano e a história. No sentido literal de revisitar, Juliana revê, re-sente e repensa seu trabalho, como se se inspirasse nela mesma, em uma retroalimentação. A curadoria é assinada por Clarissa Diniz, que acompanha o trabalho de Juliana desde 2005.

Ao revisitar "Spalt-me", Juliana transforma a obra em 26 cartões postais, dos quais 12 serão distribuídos ao público visitante. São paisagens em que Juliana insere, em fotografias, a ferida-vulva em várias partes do mundo, como a Casa da Cultura; o local em que Nelson Mandela ficou preso, na África do Sul; o parlamento europeu; o prédio do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), onde o pai da artista, João Roberto "Peixe" do Nascimento, foi preso e torturado na época da ditadura; o icônico prédio do INSS; o Museu Louvre "que vem com toda aquela expropriação do colonialismo"; a Casa dos Escravos, no Senegal. "Trato essas cidades como corpos que falam dessa violência de um corpo coletivo", explica a artista.

Juliana Notari refaz e reflete sobre as feridas da carne, da urbanidade e da subjetividade em mostra no Recife. Foto: Divulgação

Não poderia faltar "Diva" (2020), a tão polêmica quanto famosa quanto forte intervenção que fere e sangra a paisagem da Usina de Arte, em Água Preta, que, no passado, foi um solo castigado pela monocultura do açúcar. “Essa expo é importante porque queremos ir para além de Diva. Claro que tem sua importância. Mas queremos mostrar que existe uma trajetória além dela”, ressalta Juliana.

CONTINENTE Faz oito anos que você não expõe no Recife. E volta com exposição da trajetória de 24 anos. Como reflete esse período?
JULIANA NOTARI É muito bom você poder parar no meio da sua trajetória e fazer uma avaliação. E junto de uma curadora que conhece super bem o meu trabalho, tem uma análise maravilhosa. Então você ter um momento de respiro na trajetória… 24 anos não é muito, mas também não é pouco. Revisitar trabalhos traz uma compreensão alargada do seu próprio trabalho. E, junto com Clarissa, isso ganha uma potência grande, porque ela é uma curadora muito boa e tem uma relação bastante próxima com meu trabalho e comigo também. E isso é um privilégio. Estou adorando os textos que ela preparou. Recomendo a todo artista que está em meio de carreira, que tem seus 50 anos, a fazer isso. Está sendo ótimo revisitar trabalhos.

Estamos trazendo obras antigas como minha primeira videoinstalação, "Assinalações", em que cobri uma mesa inteira com cabelo humano. Agora, a mesa vai estar lá como uma escultura exposta de uma forma diferente. Ao mesmo tempo, estou revisitando um material em que  não mexia há mais de 20 anos, o cabelo. Dessa vez tem uma novidade que é o cabelo de animais. Então, eu e os assistentes fomos em vários pet shops para conseguir cabelo. É bem interessante se inspirar em seu próprio trabalho. É voltar na sua produção e ter novas ideias com o material que você achou que nunca mais voltaria a usar. Então isso está sendo muito legal.

Um jantar sobre uma mesa coberta com o que menos se deseja para temperar a comida: cabelo. Foto: Divulgação

CONTINENTE Spalt-me seria o trabalho que mais representa o seu momento artístico atual?
JULIANA NOTARI Seria sim. Não é à toa que revisito. A partir de "Diva", acho que esse corpo coletivo ficou mais acentuado, esse corpo que se comunica com a urbanidade, com a paisagem, com a arquitetura, principalmente. Havia pensado em um trabalho para a Bienal do Mercosul que se comunicava com a fachada da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Acabei não fazendo. Mas existe o desejo de trazer esse corpo para o espaço urbano. 

CONTINENTEQue fendas, rupturas e fissuras esses trabalhos tão potentes deixaram em você?
JULIANA NOTARI A cada trabalho, eu me modifico. Quando faço uma performance é porque parto de uma necessidade muito grande. É natural que me transforme. Em “Amuamas”, deixo uma joia encravada na floresta amazônica. Uma joia que ganhei da minha avó e que já havia passado por três gerações de mulheres. Depois faço uma ferida, banho com meu próprio sangue menstrual coletado por mim. Após três dias, volto à floresta, limpo a ferida, coloco o objeto e, como o xamã me explicou, fecho com argila para a raiz da planta respirar. Tudo isso mexe com subjetividade. Senti forças naquele lugar. Naquela floresta, lugar isolado, tudo é transformação. A arte da performance é capaz de atingir minha subjetividade de maneira mais direta através do ritual. É aquele momento de suspensão. O artista não sabe o que vai acontecer. Ele também é testemunha do próprio trabalho, por mais que tenha alguma consciência, algo sempre lhe escapa. É uma transformação contínua. Tanto é que terminei "Symbebekos" depois de 20 anos. Antes, fazia um caminho reto sobre os cacos de vidro com os pés descalços. Depois, entendi que o percurso do tempo é espiralar, é cíclico. Quando o faço novamente é porque também me modifiquei. O artista cria com o útero aberto.

Em "Amuamas", Juliana abre a ferida da floresta amazônica com o brutal espéculo ginecológico. Foto: Divulgação

CONTINENTE Para onde a arte vai te levar a partir de agora?
JULIANA NOTARI Não sei. E ainda bem que não sei. Porque, se soubesse, estaria mentindo. Quando começo um trabalho, nunca sei que final terá. Essa é uma das questões interessantes da arte e de qualquer atividade que trabalhe com a sensibilidade: lidar com o acaso, com o erro. A arte é um lugar privilegiado para lidar com isso. Estou sempre aberta aos erros.

SERVIÇO

Juliana Notari: Spalt-me
Onde: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - Mamam (Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife)
Quando:
Sábado (19), das 15h às 18h. Visitação: até 11 de dezembro; quartas, quintas e sextas, das 10h às 17h; sábados e domingos, das 10h às 16h
Quanto: Entrada gratuita

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