Artes Visuais

Mantos e paragolés ajudam a entender a teia do Brasil

Obras de Glicéria Tupinambá, Bispo do Rosário e Hélio Oiticica são destaques em mostra na Fundação Calouste Gulbenkian

TEXTO Álvaro Filho

23 de Dezembro de 2025

Foto Divulgação

Três peças em exposição na Gulbenkian são bastante didática para guiar o olhar estrangeiro - e também brasileiro - através das urdiduras que tecem uma nação: o Manto Tupinambá, de Glicéria Tupinambá, e o Manto da Apresentação, de Bispo do Rosário, além dos Parangolés de Hélio Oiticica. Indumentárias para cobrir o corpo e ajudar a “descobrir” esse Brasil tão complexo.

As obras de arte lidam com temas como o contato entre o português europeu e os povos originários e a consequente exploração, expropriação de terra e saques, mas também a nossa peculiar formação religiosa sincrética, bem como, mais recentemente, a arte quebrou a passividade do espectador para convocá-lo à luta.

O Manto Tupinambá marca, quatro séculos depois, o reencontro dos tupinambás com um artefato sagrado. Cobiçado no comércio transatlântico por comerciantes e negociadores, a vestimenta feita das encarnadas plumas de guará foi levada pelos europeus aos quatro cantos do mundo, parte do saque das riquezas do país que entrava no mapa e na rota das caravelas como Brasil.

A diáspora do manto foi tamanha que, no fim do século passado, havia apenas 11 exemplares deles, espalhados em museus da Bélgica, França, Itália, Suíça e Dinamarca, mas curiosamente, nenhum no Brasil. Uma distorção que fez com que os descendentes tupinambás vissem a vestimenta sagrada pela primeira vez em 2000, nos 500 anos do chamado “descobrimento”.

Era o manto do acervo do Museu Nacional da Dinamarca, “emprestado” pelos escandinavos aos brasileiros para a Mostra do Redescobrimento, parte das celebrações do quinto centenário do país. Foi lá que a jovem Glicéria percebeu um detalhe fundamental à “repatriação” do manto: os nós que prendiam as plumas ainda eram os mesmos feitos na sua tribo.

Hoje limitados entre a vila de Olivença, na Bahia, e no Baixo do Rio Tapajós, no Pará, há 500 anos os tupinambás eram parte de uma grande nação de falantes do ramo tupi, espalhados em praticamente todo o litoral brasileiro. Vem daí, segundo o filólogo Eduardo Navarro, a denominação de tupinambá, aglutinação de tupi, anama (família) e mbá (todos).

A partir de imagens do manto “dinamarquês”, Glicéria conseguiu reproduzir um novo artefato, feito não mais com penas do guará -  espécie em extinção - mas de pavão, gavião, coruja, pato e galinha. Finalizado em 2006, 400 anos depois os tupinambás voltavam a contar com um manto tecido por um dos seus, utilizado pelo pajé nas celebrações dos Encantados.

Aos 43 anos, Glicéria Tupinambá, hoje professora, doutoranda em antropologia e líder indígena, segue a tradição quase perdida no tempo. O manto exposto na Gulbenkian é parte de um “lote” recente, confeccionado em 2025, e representa o poder da “repatriação” de um povo não só de um fazer, mas também de suas tradições

Obra de Bispo do Rosário na exposição Complexo Brasil. Foto: Pedro Pina/Divulgação

A pouco passos, mais ao centro da exposição, está o Manto da Apresentação, de Bispo do Rosário, parte de um núcleo dedicado às nuances da relação dos brasileiros com o divino, ao lado da Cruz Negra, de Nuno Ramos, uma instalação in progress na qual um ancinho mecânico lentamente rasga uma cruz pintada na areia, e o imponente Machado-Cruz de Xangô.

É impossível dissociar a biografia de Bispo do Rosário com a confecção do manto. Sergipano nascido em 1911, o ex-marinheiro, pugilista, artista, tapeceiro e bordador viveu quase todos os seus 78 anos no Rio de Janeiro, a maior parte deles como interno de um instituto psiquiátrico, quando aos 27 anos foi diagnosticado como esquizofrênico-paranoico.

Durante seus surtos, Bispo do Rosário dizia ser um enviado divino na Terra com a missão de julgar os vivos e mortos. O Manto da Apresentação, com seus 2,28m por 1,15m e tecido a partir de linhas desfiadas dos uniformes azuis dos pacientes bordadas nos lençois brancos, era a vestimenta na qual o artista estaria usando no dia de se apresentar a Deus.

 Bem menos pretensiosos são os Parangolés de Hélio Oiticica, que não evocam o sagrado como os mantos de Glicéria e Bispo do Rosário, e sim, pregam a dessacralização da arte como passível - e passiva - de admiração, convocando o visitante a vesti-la e fazer parte da obra, ou como preferia dizer, da sua antiobra de arte.

 Morto precocemente aos 42 anos em 1980, o carioca Oiticica teve o insight de produzir seus Parangolés após uma visita à Mangueira, quando percebeu que a arquitetura das favelas cariocas dispensavam a divisão de cômodos, unindo sala, quarto e cozinha num só espaço, e que a arte deveria também ligar os corpos da obra e do visitante num só “espaço”.

 Um espaço de irreverência e ativismo, pois os Parangolés continham frases de evocação e contestação, isso em plena Ditadura, já que Oiticica produziu-os entre as décadas de 1960 e 70. Expostas num espécie de cabide, as peças são as únicas na Gulbenkian que não só permite como incentiva o manuseio dos visitantes.

 Que podem descobrir esse Brasil tão complexo, cobrindo o corpo com um Parangolé.

 

 

 

 

 

 

 

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