A mostra não poderia deixar de fazer referência à icônica exposição Como vai você, Geração 80?, realizada no Parque Lage, em 1984. “A exposição no CCBB entende a importância deste evento, trazendo, inclusive, algumas obras que estiveram na mostra, mas ampliando a reflexão. “Queremos mostrar que diversos artistas de fora do eixo Rio-São Paulo também estavam produzindo na época e que outras coisas também aconteceram no mesmo período histórico”, declararam os curadores.
Se, na Semana de 1922, marco do Modernismo brasileiro, apareceram apenas os modernistas do eixo Rio-São Paulo, deixando de fora nomes importantes do movimento artístico, o mesmo ocorreu com a mostra do Parque Lage, como aponta o artista visual pernambucano José Paulo: “Toda produção artística reflete seu momento histórico. A exposição Fullgás traz a oportunidade de mostrar um recorte mais amplo e diverso da produção visual dos anos 1980 no Brasil, oferecendo ao espectador a oportunidade de contato com a rica e forte produção da época ”, afirma o artista.
Em Fullgás, José Paulo exibe a pintura intitulada “William, Valmir e Barroso", de 1989. “O trabalho retrata o assassinato de três operários metalúrgicos durante uma greve em Volta Redonda em 1988”. O artista também exibe trabalho coletivo da Brigada Henfil, composta por pintores que participavam de campanhas eleitorais pintando murais de rua.
O paraense radicado no Rio de Janeiro Paulo Paes abre o espaço expositivo com um de seus balões. Obra essencialmente efêmera, dialoga com a essência dos anos 1980, de contraste entre o que é temporário e o que é intenso. “Sim, o balão é uma obra essencialmente efêmera. Não pode ser guardado, a não ser na forma de números (tabela de cotas dos moldes) ou pelo registro da sequência de cortes e colagens das composições geométricas, ou ainda pelo gabarito com as formas livres”, explica o artista.
A relação de Paulo com a geração 80, segundo ele, é teoricamente problemática. “Me coloquei quase em oposição ao movimento que estava acontecendo. Aquilo me pareceu um pacote fechado e financiado com muito dinheiro de fundações externas. No entanto, eu estava trabalhando intensivamente, então fui integrado”, justifica o artista, que trabalha com papel de seda - matéria-prima para confecção dos balões - desde a infância. “Minhas decisões importantes na vida foram tomadas desde os 9 anos”, afirma.
Natalense radicado no Rio de Janeiro, Isaías Ribeiro exibe um soco saindo de figuras geométricas. Não poderia ser mais sugestiva a pintura de 1989, quando a abstração e a geometria predominantes na arte da época dão lugar ao figurativismo. “A ideia do soco é uma abertura para um espaço novo. Os anos 80 vieram com muitas rupturas de padrões. Procurei expressar a abertura para novas possibilidades plásticas. Esse soco rompe para uma nova forma de olhar a realidade”, declara Isaías, acrescentando que a obra foi um marco em sua trajetória. “Sempre tive um lado rebelde e aquilo significou um grande soco no establishment”.
Para o artista natalense, aquela expo quarentona não exibiu somente inovação plástica. Mexeu também com a dinâmica do mercado artístico de então. “Muitos artistas ficaram ricos com 20 e poucos anos. Surge e se profissionaliza a figura do curador, e as galerias e museus de arte começam a incorporar os artistas em suas exposições”, explica. Atualmente, diz ele, os artistas estão olhando os anos 80 como fonte inesgotável de referências.
“A mostra no Parque Lage trouxe artistas jovens alucinados com a situação política do país, que estava saindo da ditadura militar. Aquela expo refletia essa liberdade criadora. Os artistas muito jovens tinham ânsia de se expressar em grandes telas, herança de grandes artistas europeus e americanos, que vinham fazendo telas de grandes formatos para mostrar que a pintura estava viva”, explica Isaías que, assim como a mostra de quatro décadas atrás, também completa 40 anos de artes visuais.
A carioca Cristina Salgado traz a tela “Mulher Te Vê” - trocadilho com TV - que integra a série “Família Materialista”, de 1982. “Naquela época eu já vinha desenhando, com guache e nanquim, cenas urbanas e de famílias de classe média - que eu conhecia bem, aliás. Meu trabalho não é literalmente autobiográfico, mas acho que sempre partimos de um repertório visual que conhecemos”, declara. A série surgiu quando Cristina descobriu a obra do pintor renascentista italiano Giuseppe Arcimboldo. “Fiquei muito impressionada. Aquela ‘Mulher Te Vê’ pode ganhar outros sentidos hoje para mim, porque as imagens da TV trazem só paisagens, como um desejo do mundo exterior”.
Na época, Salgado não refletia o desejo do espaço do mundo exterior como uma possibilidade de mais um sentido. “Na realidade, não pensava na possibilidade de um trabalho poder abrigar ou produzir simultâneos sentidos - ia apenas fazendo… produzia muito e impulsivamente. Hoje é que me permito olhar aquele trabalho mais de 40 anos depois e ver muitas coisas: o corpo fragmentado, feito de partes; essas partes que contêm espaços dentro delas; o título que permite uma ambiguidade de leitura, é televisões que também te olham e, sei lá, mais que outras coisas. Talvez uma ‘dona de casa’ dos anos 1980”, reflete a artista, salientando a diferença entre a expo de ontem e a de hoje. “Acho que a exposição que está no CCBB mostra uma produção muito contemporânea”, sentencia.
Fullgás - artes visuais e anos 1980 no Brasil
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (Rua Primeiro de Março, 66, 1º andar, Centro, Rio de Janeiro
Quando: De 2 de outubro até 27 de janeiro de 2025. Funcionamento: De quarta a segunda, das 9h às 20h. Fechado às terças-feiras
Classificação indicativa: Livre