Artes Visuais

Celebração ao Mangue na 36ª Bienal de SP

Uma das principais inspirações da curadoria da exposição, o Manguebeat foi celebrado com shows da Mundo Livre S/A, Karina Buhr e Maciel Salú no Parque do Ibirapuera, no domingo (23)

TEXTO Julio Cavani

26 de Novembro de 2025

Maciel Salú e Mundo Livre S/A

Maciel Salú e Mundo Livre S/A

Foto Levi Fanan/Divulgação

Bamenda, Camarões, África, 1994. Um menino de 16 anos capta frequências de estações de rádio da Nigéria, país vizinho. Em fitas cassete, ele grava as transmissões de uma estação de Akwa Ibom, para depois extrair trechos com as músicas que gostaria de escutar mais vezes. Canções das bandas brasileiras Mundo Livre S/A e Nação Zumbi chamam sua atenção e despertam seu interesse de forma especial. Em 1997, quando vai morar em Berlim, o jovem tem acesso aos discos desses artistas e descobre que eles fazem parte de um movimento cultural chamado Manguebeat, localizado em Pernambuco.

São Paulo, Brasil, América do Sul, 2025. Aquele adolescente camaronês, agora com 48 anos de idade, é curador da Bienal de São Paulo, a segunda maior e a segunda mais antiga exposição de arte contemporânea do mundo e a mais importante do Hemisfério Sul. “Uau, esse deve ser o caminho para celebrar o Mangue”, pensou Bonaventure Soh Bejeng Ndikung ao receber o convite para a curadoria, como revelou em entrevista exclusiva cedida à Continente.

O Manguebeat não só é uma das incontáveis inspirações para a 36ª Bienal como é uma das principais referências artísticas da exposição. No catálogo da mostra, o texto curatorial assinado por Bonaventure dedica nove páginas a reflexões sobre o movimento pernambucano, com citações a trechos de músicas de Chico Science e ao manifesto “Caranguejos com Cérebro”, escrito pelo cantor Fred Zeroquatro e pelo DJ Renato L.

Em depoimento cedido à Continente, Renato L, que é DJ e também jornalista, considera “belo e instigante” o texto de Bonaventure: “Dois pontos me chamaram especialmente a atenção. O primeiro é como se ressalta o caráter coletivo do Manguebeat, um traço sempre enfatizado nos primeiros tempos do ‘movimento’ como contraponto a uma visão ‘individualista’ do fazer (e do pensar) artístico, de origem romântica e, no fundo, conservadora. Sem jamais minimizar o papel de destaque de Science e Zeroquatro, nunca esquecemos de tratar o Mangue como consequência de uma espécie de rede de trocas. O outro ponto que merece destaque é o da Subversão, no texto atrelado ao potencial da Tecnologia. Quando uma manifestação como o Mangue se torna canônica, quase sempre se esquece dos aspectos contestatórios e rebeldes presentes no seu nascimento. Bonaventure recupera esse potencial de disrupção e o projeta no presente e no futuro."

A 36ª Bienal foi inaugurada em setembro de 2025 no Parque do Ibirapuera e continuará em cartaz até 11 de janeiro de 2026, com entrada gratuita. Em maio, acompanhado por André Pitol, assistente de curadoria, Bonaventure esteve no Recife para encontrar e conversar com artistas que participaram do Manguebeat. No encontro, estiveram presentes Buhr, Cannibal, Fred Jordão, Fred Zeroquatro, Jacaré, Jorge du Peixe, Maciel Salu, Neilton, Rute Pajeú e Sonaly Macedo. 

No último domingo (23), Buhr, Maciel Salu e a banda Mundo Livre S/A fizeram shows na programação oficial da Bienal, como representantes do Mangue. Também se apresentou a DJ Paulete Lindacelva, que nasceu no Recife em 1994, ano de lançamento dos primeiros discos da cena cultural, Da Lama ao Caos e Samba Esquema Noise. A presença da artista recifense de música eletrônica reforçou a ideia de que o movimento não ficou restrito à década de 1990 e tem desdobramentos até hoje, assim como a Tropicália continua viva no trabalho de Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Gil e diversos artistas de gerações posteriores, de BaianaSystem a Bala Desejo.

Buhr participou diretamente do Manguebeat como integrante dos grupos Eddie e Comadre Florzinha, entre outras colaborações em shows, discos e vídeos de outras bandas surgidas na época. “Muito emocionante acompanhar essa curadoria de Bonaventure e ela vai seguir reverberando”, observa, em comentário enviado à Continente. “Ele escutou Da Lama ao Caos na adolescência, em Camarões, e isso foi precioso pra gente de ouvir. Foi muito importante pra gente também se juntar e relembrar olhando para o agora, o durante, o onde estamos, quem somos, falar e ouvir juntos”, relembra, sobre a reunião realizada em maio.

Apresentação de Buhr no evento. Foto: Levi Fanan/Divulgação

Sobre a exposição em si, Buhr observa: “Chegando na Bienal e vendo as obras, enquanto íamos passar som e fazer o show, estava tudo ali materializado e bulindo nas mentes. Tem um trecho do caminho em que todo mundo fica olhando pra cima e eu via as pessoas, eu entre elas, quase se esbarrando, porque estão olhando pra uma arte magnífica, pendurada lá em cima. As pessoas, as coisas, as criações em movimento, compartilhadas em tempo real. Estuário, ecossistema, encontro de rios, mar, uma fita cassete em Camarões ou em Recife, sendo compartilhada no bairro da Boa Vista, em Peixinhos, um tambor em Chão de Estrelas, um manual de instruções em alemão de um computador que a Nação Zumbi usaria e o Motorista de Turnês buscava alguém pra traduzir...tudo interligado, no tempo-espaço, na poesia viva.”

A metáfora do “estuário”, citada por Buhr, é um dos elos de ligação que funciona como eixo simbólico tanto para a Bienal quanto para o Manguebeat. Alusões a manguezais e ecossistemas dos encontros entre os mares e os rios, como ocorre no Recife, estão presente em variadas obras da exposição, de artistas de diversos continentes, como Aline Baiana, Forensic Architecture, Hamedine Kane, Hamid Zénati, Julianknxx, Malika Agueznay, Metta Pracrutti, Otobong Nkanga, Rebeca Carapiá, Sallisa Rosa, Suchitra Mattai, Thania Petersen, Theo Eshetu, Tuan Andrew Nguyen e Wolfgang Tillmans, entre outros, de países como Marrocos, Índia, Vietnã, Nigéria, Inglaterra e Alemanha. “O Encontro da Terra Seca, Água Doce e Água Salgada”, ainda como exemplo, é o título de uma das pinturas apresentadas pelo pernambucano Aislan Pankararu no pavilhão.

A presença de Maciel Salú domingo na programação de shows, divulgada como “Festival Bienal no Mangue”, também foi importante para ressaltar a relação entre os artistas do movimento e a cultura popular. Além de cantar, compor, dançar e tocar rabeca, ele é filho do Mestre Salustiano, fundador do Maracatu Piaba de Ouro e do Cavalo Marinho Boi Matuto, uma liderança fundamental nas articulações pela valorização e preservação das agremiações e manifestações, homenageado na música “Salustiano Song”, de Chico Science & Nação Zumbi.

Em maio, no Recife, Bonaventure também se reuniu com HD Mabuse, designer, autor do design da capa do Afrociberdelia e um dos artistas do núcleo inicial do Manguebeat. Sobre essa conexão entre o movimento e a Bienal, Mabuse avalia: “A interpretação que Bonaventure tem do Manguebeat ultrapassa leituras muitas vezes folclorizantes ou localistas quando feitas por alguém do Norte Global. Como ele vem da África, tem uma compreensão sofisticada de sua potência política. Ele reconhece o Manguebeat como um gesto estético-político-epistemológico de conexão Sul-Sul, no qual Recife se inscreve em redes transatlânticas de criação, resistência e reinvenção, articulando o mangue como ecossistema, metáfora e tecnologia social. A partir de um movimento musical, ele vê como se construiu uma forma de imaginar mundos a partir das margens, uma modernidade periférica (não-européia) que dialoga com outras diásporas e insurgências do Sul global.”

O curador Bonaventure Ndikung com o designer HD Mabuse
Foto: Andre Pitol/Divulgação

No catálogo da Bienal, Bonaventure escreve que o Manguebeat “é um paradigma conceitual que concilia as noções de maternidade, fertilidade, diversidade, produtividade com a noção de uma tecnologia, mídia digital ou computação que pode facilitar o sincretismo, que pode criar uma ponte não apenas através do Atlântico, mas entre aqueles que sobreviveram em terra firme e aqueles que ainda estão presos no abismo”. Ele afirma ainda que o movimento “também deve ser entendido como a possibilidade de criar tecnologias, ciências e artes que não apenas reflitam o cotidiano, mas que também sejam fundamentais para a subversão dos terrores da normatividade. Dessa forma, as tecnologias e ciências que foram criadas para desprivilegiar as massas são reapropriadas e destituídas de seus propósitos originais no que podemos chamar de armas de subversão de massa”.

Após a Bienal de São Paulo, o Manguebeat ainda ganhará destaque em outros âmbitos para além dos limites de Pernambuco. No carnaval de 2026, o movimento será o tema do desfile da escola de samba carioca Acadêmicos do Grande Rio. Uma cinebiografia de Chico Science também será filmada no próximo ano, com direção do cineasta baiano Pedro Von Krüger e roteiro assinado por Helder Aragão e Hilton Lacerda, que, em 1994, formavam a dupla de designers Dolores & Morales, autores da capa do disco Da Lama ao Caos.

JULIO CAVANI, jornalista, curador do festival Animage e diretor dos curtas “História Natural” e “Deixem Diana em Paz”

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