Artes Visuais

A jurema sagrada nas fotos premiadas de Uenni

Fotógrafa autodidata de Santo Amaro ganha o Prêmio Mário de Andrade de Fotografias Etnográficas

17 de Janeiro de 2025

Foto Uenni/Divulgação

As velas iluminam o altar onde se encontram as imagens sagradas e às oferendas. O branco dos trajes contrasta com o tom marrom, quase ocre, do ambiente. Na fotografia, vê-se do domínio da luz e da composição bem pensada e enquadrada. Mais do que a técnica, as imagens exprimem o respeito à tradição ancestral e revelam intimidade com o ritual sagrado, repleto de simbolismo. Convidam a quem vê a participar da cerimônia, buscar seus significados, imagina ouvir seus cânticos. Foram dois anos de vivência e trabalho para fazer esse conjunto que forma a série Canjerê dos Pretos Velhos na Jurema Sagrada de Pernambuco, que deu a fotógrafa pernambucana Uenni o primeiro lugar na 2ª edição do Prêmio Mário de Andrade de Fotografias Etnográficas, na categoria Série Fotográfica, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pelo qual recebeu uma premiação de R$ 15 mil.

Autodidata, 26 anos, nascida e criada no bairro de Santo Amaro, Uenni é o nome artístico e a pronúncia do prenome da fotógrafa Wenny Mirielle Batista Misael, a primeira mulher negra a conquistar o prêmio que busca valorizar e promover as culturas populares brasileiras. Foi a primeira entre 400 participantes. Aos 15 anos, ela passou a encarar a fotografia mais a sério e, desde os 19 anos, vive do ofício de fotografar e editar imagens.

Com um olhar antropológico, etnográfico, Uenni se dedica a fotografar os terreiros do Grande Recife. Ela é autora de um projeto de formação audiovisual voltado ao tema - Terreirada em cena. Frequenta o Ilé Asé Orìsanlá Tàlàbí, em Paratibe, declarado Patrimônio Histórico e Cultural de Origem Africana e Afro-Indígena Brasileira do Município de Paulista em 2021 e Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco em 2023. Há uma relação de respeito mútuo, que resultou na autorização para o uso das imagens do canjeré.

“Eu nunca imaginei que fosse sequer receber uma menção honrosa, considerando a dimensão nacional do prêmio. Não tenho diploma que comprove que sou fotógrafa, nem os melhores equipamentos do mundo. Muito menos a possibilidade de viver fotografando o que gosto, que é terreiro. Mas tenho a fé, a espiritualidade e o desejo de continuar me movimentando sem passar a perna em ninguém.”, afirmou Uenni ao ganhar o prêmio. "Ser reconhecida por este prêmio, um dos mais importantes no campo dos registros etnográficos no Brasil, é uma honra. O Canjerê dos Pretos Velhos é um símbolo da espiritualidade, resistência e memória que marcam a Jurema Sagrada em Pernambuco”, completa ela.

"Os Pretos Velhos, centrais na Jurema, são invocados no Canjerê através de orações, cânticos e pontos riscados, compondo uma verdadeira sinfonia de fé e resistência. O trabalho de Mãe Lú, como guardiã dos saberes e das práticas, também é evidenciado pela lente de Uenni, que celebra a força e o protagonismo das mulheres nas lideranças religiosas", explica a jornalista Raynaia Uchôa.

Em entrevista à Pernambuco, Uenni contou um pouco de sua trajetória e do projeto de fotografar os terreiros da Jurema Sagrada.

PERNAMBUCO – Como surgiu o interesse pela fotografia?

UENNI – A fotografia sempre esteve presente na minha vida, mesmo que não de forma profissional. Minha avó tinha o costume de registrar todos os momentos da família e guardar como recordação: o nascimento dos netos, aniversários, encontros com amigos e familiares. E com o avanço da tecnologia, senti que minha avó não conseguia acompanhar e que minha família tava perdendo essas memórias. Foi aí que, em 2014, soube por amigos sobre uma oficina de fotografia e vídeo na ONG Ruas e Praças, e decidi participar para aprender. A princípio, eu não queria ser fotógrafa, queria apenas ocupar a minha mente com algo e dar continuidade aos registros da memória da minha família. Mas hoje em dia percebo que não funcionou como eu imaginava. Eu não revelava essas fotos, colocava em DVD e hoje, não faço ideia de onde estão esses registros. 

PERNAMBUCO – Você se lembra quais as primeiras fotos que você tirou?

UENNI – Não consigo lembrar exatamente quais foram as minhas primeiras fotos, mas nas aulas de fotografia e vídeo na ONG Ruas e Praças, havia muitas atividades práticas e um rodízio de câmeras, onde cada pessoa tinha a oportunidade de fotografar. Lembro que, no início, costumava fotografar dentro da própria sede e ao redor da ONG, que fica na Rua da Aurora. No site, tem um pouco do que produzimos https://oficinaruasepracas.wixsite.com/oficina/video.

PERNAMBUCO – Qual equipamento você usava? Você hoje usa equipamentos profissionais?

UENNI – Eu usava uma Cyber-shot da Sony que minha avó tinha, e quando estava no Ruas e Praças, usava uma Sony A77. Como não tinha grana para investir em equipamentos, em 2018, um amigo me emprestou uma T5i com as lentes 50mm e 18-55mm. Só consegui comprar uma câmera que posso realmente chamar de minha no ano passado, além de algumas lentes usadas, mas em bom estado.

PERNAMBUCO – Você acredita que pode tirar fotos profissionais usando o celular? Você usa o celular profissionalmente?

UENNI – Sim, é possível tirar fotos profissionais usando o celular, especialmente com os avanços tecnológicos nas câmeras de smartphones nos últimos anos. Eu mesma faço uso do celular para tirar fotos e filmar. Inclusive, sou idealizadora de um projeto de formação em audiovisual voltado para terreiros da Grande Recife, chamado Terreirada em Cena, que tem como objetivo proporcionar a experiência de produzir curtas-metragens utilizando o celular como ferramenta de filmagem. @terreiradaemcena_.

 PERNAMBUCO – Você se define como uma fotógrafa autodidata. Quem foram suas influências na fotografia?

UENNI – Minhas maiores influências na fotografia vêm dos meus amigos, especialmente de Ernesto de Carvalho, com quem tive e continuo tendo muitas trocas. Ele foi fundamental nesse processo, especialmente ao me incentivar a não desistir. E durante minha adolescência, pesquisava muito sobre o trabalho de Lita Cerqueira e sempre dizia que, se em algum momento da minha vida eu conseguisse fazer 1% do que essa mulher fez, eu ficaria feliz

PERNAMBUCO – Você pretende aprofundar o seu trabalho academicamente?

UENNI – Sim, durante muito tempo achava que a faculdade não era lugar para mim, já que as pessoas da minha família sequer terminaram o ensino médio. Mas hoje tenho o entendimento de que vai ser importante para mim tá nesses espaços, no sentido de trocas e aprendizado. 

PERNAMBUCO – Como você projeta sua carreira e seu aperfeiçoamento profissional?

UENNI – Eu não costumo pensar muito no futuro, prefiro me movimentar para que as coisas aconteçam. Estou sempre em contato com amigos, trocando ideias e aprendendo com as experiências deles. Além disso, faço questão de tá constantemente pesquisando para aprimorar meu trabalho. 

PERNAMBUCO – O que acha do uso da inteligência artificial na fotografia?

UENNI – Eu não utilizo inteligência artificial nas minhas fotos, pois acredito que o jogo criativo e documental da fotografia reside na captura genuína do momento, sem a intervenção de algoritmos. Manipulações sempre existiram, até na fotografia analógica. Mas essas manipulações sempre foram voltadas para ajustes muito intencionais e controlados na imagem. A IA pode gerar uma realidade paralela de maneiras muito enganosas que inclusive escapam as nossas intenções estéticas, já que não temos nem sequer acesso às informações sobre que dados essas corporações usaram para treinar seus modelos. E com esse mundo de fake news, acredito que precisamos ser cautelosos. Mas boto fé que para quem faz uso dessas tecnologias de forma consciente e deliberada, ela pode ser um caminho para a invenção.

PERNAMBUCO – Qual a sua área de interesse na fotografia?

UENNI – Fotografia documental.

PERNAMBUCO – Como surgiu o projeto de fotografar a jurema sagrada? 

UENNI – Esses registros não fazem parte de um projeto específico, mas sim de uma iniciativa de continuidade de um acervo já existente no Terreiro Axé Talabi. Inclusive, o Canjerê dos Pretos Velhos foi o primeiro ciclo do calendário ritual e festivo do terreiro que fotografei, em 2022. A decisão de submeter ao prêmio surgiu por acaso, sem grandes pretensões, mas com a intenção de valorizar e dar visibilidade a essa memória tão rica e significativa.

PERNAMBUCO – Você conhecia o ritual da jurema sagrada antes de começar o projeto?

UENNI – Sim.

PERNAMBUCO – Você se iniciou na jurema sagrada?

UENNI – Não.

PERNAMBUCO – Para você, qual a importância da jurema sagrada?

UENNI – Para mim a Jurema é muito mais que uma prática espiritual, é uma ponte direta com minha ancestralidade. É através dela que me conecto com saberes que atravessaram gerações, resgatando histórias, memórias e forças que desafiam o tempo e continuam vivas. Sinto que é um caminho pra escutar: os que vieram antes, as matas, as águas e tudo que existe no invisível. É ela que me sustenta, me guia, me fortalece e me mostra a potência que existe em mim e em quem veio antes, construindo as bases do que sou hoje.

PERNAMBUCO – Como se dá a relação entre os homens e mulheres na prática da jurema? É um lugar de poder da mulher? Ou o protagonismo, a liderança é dos homens? 

UENNI – A prática da Jurema, para mim, é um espaço de equilíbrio, onde homens e mulheres coexistem de maneira interdependentes. Existem práticas que exaltam o poder feminino e reconhecem a centralidade das mulheres, tanto no plano energético quanto na vida cotidiana das comunidades que preservam essa tradição, sem excluir ou subordinar o masculino. Em muitos terreiros, a liderança se dá de forma compartilhada, respeitando a individualidade e os papéis que cada um exerce dentro da tradição.

PERNAMBUCO – Houve resistência ao seu trabalho no terreiro?

UENNI – Não, porque o terreiro já tinha o hábito de realizar registros fotográficos. Inclusive, uma mais velha da casa, Mãe Ekedi Mônica de Oyá, foi responsável por isso por um bom tempo.

PERNAMBUCO – Quais são os seus próximos projetos?

UENNI - Vou dar continuidade ao trabalho de registrar e preservar as tradições e a memória do terreiro Axé Talabi e realizar a segunda edição de formação do Terreirada em Cena. 

PERNAMBUCO – Em que você tem trabalhado? 

UENNI – No momento, estou trabalhando como diretora de fotografia em um filme sobre as comidas do candomblé e da jurema, além de pegar alguns trabalhos de edição e fotografia.

 

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