Wagner Moura no Tribunal da Pós-verdade
Após dezesseis anos fora dos palcos, o ator baiano, astro da TV e do cinema, volta ao teatro para encenar Um Julgamento – Depois de O Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, com direção de Christiane Jatahy
TEXTO Bruno Albertim
22 de Outubro de 2025
Wagner Moura protagoniza a peça em cartaz no Rio de Janeiro, com previsão de circular o país
Foto Caio Lírio/Divulgação
Há espetáculos que se impõem não apenas pela dramaturgia, mas pelo tempo em que escolhem nascer. Protagonizado por Wagner Moura, com um elenco afiadíssimo, Um Julgamento – Depois de O Inimigo do Povo, retorno do ator após dezesseis anos longe dos palcos, é um desses gestos anabolizados pela força do tempo em que acontece. Entre a ficção e o documento, o palco e a arena política, a peça convida a assistir não apenas a um julgamento, mas ao próprio ato de julgar — esse antiespetáculo cotidiano do Brasil contemporâneo. Um acontecimento teatral sobre o país das pós-verdades em que passamos a viver.
Com a consagrada diretora Christiane Jatahy e Lucas Paraízo — responsável por oxigenar a TV recente com séries instigantes como Os Outros — o próprio Moura adaptou o clássico de Henrik Ibsen (1828–1906). Considerado um dos pais do teatro moderno, o norueguês substituiu o melodrama idealizado pelo realismo psicológico e social. Em Casa de Bonecas ou Hedda Gabler, foca personagens em conflito com convenções morais e familiares.
Incorrendo em arenas como a hipocrisia social, a liberdade e a repressão, Ibsen fez do incômodo um estilo. Em O Inimigo do Povo, trata do inferno pessoal e social de um médico que denuncia a contaminação letal das águas de um balneário — principal motor econômico da cidade em que vive. Denunciado pelo irmão, o prefeito, como sabotador da frágil economia local, o personagem vai a julgamento. É exatamente isso que assistimos: um drama de tribunal em que decidimos o resultado. Em parte, literalmente — uma dúzia de espectadores é convocada a compor a cena como jurados que decidirão pela condenação ou absolvição. Dois finais estão ensaiados, e um deles é apresentado conforme o veredito.
O primeiro grande gol da montagem é evidenciar a atualidade do texto de Ibsen. Quase totalmente reescrita, a dramaturgia reafirma sua vigência ética ao ganhar uma dicção prosaica e cotidiana, em diálogo direto com o Brasil das pós-verdades. Lúcia Santaella, uma das vozes mais lúcidas da semiótica brasileira, define a era da pós-verdade como um colapso da confiança nas mediações tradicionais. Num mundo saturado de informação e imagens, a verdade tornou-se líquida — moldável por afetos e algoritmos. Não vivemos o fim da verdade, mas sua dispersão: fragmentada em bolhas, estetizada nos discursos e vendida nas redes como produto de consumo emocional.
Nessa paisagem, o saber cede espaço à crença, e o debate público transforma-se em espetáculo de opiniões performáticas — uma tragicomédia contemporânea em que o sensacional substitui o sensato. No espetáculo, o embate entre o médico Thomas Stockmann e o irmão-prefeito traz à cena fake news, tribunais virtuais e cancelamentos — neste Brasil que apenas muda as coreografias para encenar as mesmas farsas nas praças do poder.
Em 1964, a chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade vestiu-se de moralidade e devoção para dar verniz cívico a um ato que pavimentou a ruptura democrática. Meio século depois, em 8 de janeiro, já convertido em marco da memória nacional, não foram senhoras de luvas brancas e rosários nas mãos, mas furiosos à sombra verde-amarela da bandeira, entregues ao saque e à destruição dos símbolos da República. O espetáculo de Wagner Moura é, portanto, um libelo sobre este Brasil em que camisas de futebol, uniformes canarinhos, capacetes de mototáxi e celulares erguidos para a selfie da destruição entoam a marcha fúnebre da democracia na era da pós-verdade.
Como o texto trata de uma denúncia sanitária, soma-se à paisagem o negacionismo científico — famílias brasileiras rebobinando o lema “Deus, Pátria, Família”, usado durante o fascismo italiano do século XX, diante de uma pandemia transformada em máquina de morte. Assim se desenha o panorama moral subscrito por Um Julgamento – Depois de O Inimigo do Povo.
Multimídia, a montagem lança mão de recursos audiovisuais para imprimir contemporaneidade. Atores filmam as cenas, duplicando em tempo real as atuações em telas que flutuam sobre o cenário, conferindo novas camadas de leitura. As projeções trazem informações para que o júri tome posição. No papel da ex-mulher do protagonista, Marjorie Estiano surge em vídeo, narrando a história de perseguição moral e social que levou à ruína da família. Tatiana Henrique, em videoconferência online, atesta o nível de contaminação. São recursos que oferecem lufadas de modernidade à carpintaria cênica, embora não sejam estruturantes da linguagem: o audiovisual ali é mais ambientação que discurso. Estivessem as atrizes em caixas cênicas presenciais, em planos paralelos, o impacto seria o mesmo — talvez maior, dada a banalidade do nosso convívio com telas.
É, sobretudo, um grande rito da presença. Wagner Moura surge com o vigor de quem entende o teatro como tribuna e passagem. Um desempenho plausível, contido, de realismo quase documental. Entre o cinismo pragmático e a vulnerabilidade, tensiona o incêndio subliminar da palavra pela contenção física. Um trabalho de precisão, em que o ourives da prosódia faz de cada frase um chamado, engradecido pelas intervenções da jovem Julia Bernat como a filha advogada em defesa do pai e pela maturidade cênica de Danilo Grangheia como o oponente. Como num tribunal, um espetáculo que é rito — menos carente de aplausos e mais exigente de escuta.
Depois da temporada de estreia em Salvador — que provocou romarias quase de trio elétrico teatral —, o espetáculo segue para o Rio de Janeiro, no Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil, patrocinador do projeto. Sem agenda definida, deve circular pelo país e chegar ao Recife, onde Moura já tem título simbólico de cidadão no imaginário cultural local.
A partir do Recife, de onde projetou sua carreira há vinte e cinco anos com A Máquina, de Adriana e João Falcão, Wagner acaba de receber uma Palma em Cannes e pode ser indicado ao Oscar por O Agente Secreto, filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho. Há dezesseis anos, Moura pisou no palco do Teatro da Universidade Federal de Pernambuco com sua versão de Hamlet. “Sou um ator de teatro, aonde sempre volto”, diz o ator após uma sessão em Salvador, sobre o espetáculo que, tão logo suas agendas permitam, as plateias do país esperam ver.
BRUNO ALBERTIM, jornalista, antropólogo e escritor. Autor de Tereza Costa Rêgo, uma mulher em três tempos (Cepe) e Nordeste – Identidade comestível (Massangana)
Ficha técnica
Concepção e direção: Christiane Jatahy
Texto: Christiane Jatahy, Lucas Paraízo e Wagner Moura, a partir do original de Ibsen
Elenco: Wagner Moura, Danilo Grangheia e Julia Bernat
Participação especial no filme: Marjorie Estiano
Com: Jonas Bloch, Salvador Moura, Antonio Falcão e Antonio Rabello
Participação online: Tatiana Henrique
SERVIÇO
Um Julgamento – Depois de O Inimigo do Povo
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil – Rio de Janeiro
Quando: Quarta a sábado, às 19h; domingo, às 18h; segunda, às 19h; de 23 de outubro a 3 de novembro
Quanto: R$30 (inteira); R$15 (meia)