Artes Cênicas

Tebas Land e os abismos da autoficção

Peça protagonizada pelo pernambucano Robson Torinni e por Otto Jr. leva ao palco do Teatro do Parque texto vertiginoso do uruguaio Sergio Blanco

TEXTO Márcio Bastos

30 de Agosto de 2024

Robson Torinni e Otto Jr em cena de Tebas Land

Robson Torinni e Otto Jr em cena de Tebas Land

Foto Lúcio Luna/Divulgação

Pernambucano nascido em Garanhuns, Robson Torinni não poderia ser mais diferente dos personagens que interpreta: bem-humorado, focado e apaixonado pela arte, nos palcos e nas telas, ele tem dado vida a homens atormentados, violentos e rotos. É o caso de Martín, da peça Tebas Land, baseada na obra de Sergio Blanco, que ele apresenta nos dias 31 de agosto e 1º de setembro, às 19h, no Teatro do Parque, no Recife. Esta atração por tipos complexos, anti-herois, é reflexo do que o fascina na atuação: a possibilidade de ser muitas outras vidas e experimentar sensações para além do seu cotidiano.

Na primeira vez em que teve contato com a obra de Sergio Blanco, conhecido por sua investigação da autoficção, Robson Torinni soube que queria levar o universo enigmático do dramaturgo franco-uruguaio para os palcos. Para ele, o jogo sempre tênue entre realidade e fabulação, entre os limites do teatro e da vida, e a própria natureza dúbia dos personagens, eram como imãs que o puxavam para lugares escuros (mas necessários). Tebas Land foi escrita em 2012 e ganhou a adaptação brasileira em 2018, com tradução de Esteban Campanela, Robson Torinni e do argentino Victor Garcia Peralta, que também assina a direção da montagem.

Rico em referências da literatura, a exemplo de Édipo, d’Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, Um Parricida, de Maupassant, da mitologia, da história e da política, como São Martinho de Tours (que enfrentou o pai militar para seguir uma vida ligada à religião), o texto acompanha os encontros na prisão Martín (Torinni), um jovem condenado por assassinar o pai, e um dramaturgo, interpretado por Otto Jr, que pode ser entendido como o próprio Sergio Blanco. O escritor quer, a partir das conversas  com o parricida, entender mais sobre a natureza humana, mas, principalmente, encontrar material para construir seu próximo trabalho.

Há ainda uma outra camada que permeia a narrativa e a encenação (toda ocorrida dentro de uma quadra de basquete da cadeia): Robson também interpreta o ator que viverá Martín na peça que está sendo elaborada. Neste intrincado jogo, no qual a metalinguagem é um pilar crucial, o público é constantemente desafiado a estar presente. Tudo ali pode ser verdade, como também pode ser mentira ou, na maioria das vezes, algo entre um e outro. No artigo A autoficção: uma engenharia do eu, publicado na Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, Sergio Blanco afirma: “Qualquer uma das minhas autoficções foi escrita não para me expor, mas para me procurar. Todas elas foram escritas a partir de um eu que procura na escrita uma oportunidade de encontrar-se a si mesmo para assim encontrar os outros.”

“A gente costuma falar que a peça fala da relação complexa de pai e filho e como ela é um convite à empatia. Fica até parecendo algo fofo (risos), mas é porque, apesar do tema muito pesado, acredito, de fato, que é um trabalho que convida a exercitarmos esse olhar para o outro. No espetáculo, o dramaturgo chega, a princípio, com uma perspectiva utilitarista. Ele não se importa com Martín, quer apenas utilizar a história daquele jovem parricida para sua peça de teatro. Aos poucos, ele vai se envolvendo com o que lhe é apresentado, com a trajetória daquele parricida e os motivos que o levaram a cometer o crime. Acaba, de alguma forma, se colocando no lugar do outro”, explicou Robson Torinni, em entrevista à Continente.

Por meio da história de Martín, Tebas Land toca em assuntos delicados, como a instituição família, violência e abuso sexual e a própria ética de se levar a história de alguém para a arte. Essas temáticas são costuradas sem pieguice. Pelo contrário: há uma certa brutalidade na escrita de Sergio Blanco, que é enfatizada pelas atuações viscerais de Robson Torinni e Otto Jr. e pela direção concisa de Victor Garcia Peralta. São muitos os incômodos gerados pelos encontros dos personagens, que evidenciam ainda um voyeurismo social sádico, alimentado pela obsessão coletiva por crimes violentos (vide o fenômeno das séries, podcasts, livros e filmes de true crime) e pela necessidade de determinar, sem espaço para zonas cinzentas, o certo e errado. Julgar e condenar.

Como ator e produtor da peça, Robson Torinni afirma que sua fascinação pela história e o personagem que interpreta está justamente nessas incertezas e instabilidades causadas pelo texto. Para ele, essas lacunas que revelam as dualidades dos personagens reverberam no público, que se coloca diante de vários questionamentos.

“Acredito muito no poder da palavra e, com um texto de Sergio Blanco, não há concessões. É impossível estar frio, não viver o personagem em toda a sua complexidade. Gosto de personagens que são muito diferentes de mim, pois me permitem ir a fundo em lugares que nunca acessei. Sou ator para viver outras vidas; posso ser muitos sendo eu mesmo. Sair dessa zona de conforto, não saber onde irei terminar, me atrai muito”, reforçou o pernambucano.

Outro aspecto da dramaturgia autoficcional do franco-uruguaio que instiga o ator pernambucano é a riqueza de camadas da história. Quando Tebas Land estreou, em novembro de 2018, o Brasil acabava de passar por uma de suas eleições mais traumáticas. O país estava rachado, resultado de anos de um processo de enfraquecimento das instituições democráticas e do fomento de discursos de ódio. Com personagens dúbios e uma atmosfera carregada, a peça foi um sucesso de crítica e público e estava no seu auge em 2020, momento no qual precisou encerrar abruptamente as atividades por conta da pandemia de Covid-19. Agora, quase seis anos após sua estreia e quatro desde a paralisação, o espetáculo voltou a circular pelo Brasil, e também internacionalmente, encontrando um cenário distinto que lhe confere novas interpretações.

“Quando voltamos com a peça, me deparei com muitos aspectos que eu nunca tinha notado. Até me senti um pouco mal, pensando como é que eu nunca havia percebido certos significados. Mas, falando com Otto Jr., ele me relatou a mesma sensação. É como se o texto fosse marcado por sentidos que a gente só vai acessando, também, depois de passar por determinadas situações. Muitos anos se passaram desde a estreia da peça: eu sou outra pessoa, o mundo é outro, pós-pandemia”, enfatizou.

Neste novo cenário, Torinni acredita que existe um desejo reprimido pela presença e pela experiência coletiva, o que tem gerado uma maior ocupação dos teatros. Em julho, Tebas Land foi apresentada em várias sessões lotadas no Festival Off Avignon, um dos principais da Europa. Em 2022, Robson estreou o solo Tráfico, também baseado na obra de Sergio Blanco, mas, apesar da temporada bem-sucedida no Rio de Janeiro, quando houve o convite para o festival, ele e a equipe decidiram retomar Tebas Land. Para o ator, foi um fechamento de ciclo e abertura de um novo, pois, em 2020, a peça estava programada para ir ao evento, o que acabou cancelado por conta da crise sanitária.

“Eu sou muito workaholic. Quando tudo parou por conta da pandemia, Tebas Land estava no auge e para mim foi um momento muito doloroso. A gente batalha tanto para conseguir viabilizar um projeto, para fazer com que ele saia bem. Infelizmente, no Brasil acontece muito de, às vezes, você passar quatro meses ensaiando e apenas dois em cartaz, por falta de patrocínio, de pauta etc. Então, foi um tapa na minha cara ter que encerrar o projeto abruptamente, até porque eu sou do time que acredita que um espetáculo deve rodar até quando tiver público, como a gente tem visto, por exemplo, com Tom na fazenda, que é um fenômeno nacional. Com Tebas Land, está sendo uma felicidade voltar a circular, tanto nacional quanto internacionalmente, porque é uma celebração desse esforço coletivo. Apresentar em Avignon foi um sonho – foi melhor até do que nos meus sonhos. E, agora, estar no Recife é uma honra imensa. Antes, em 2019, tive a oportunidade de encenar o trabalho em Garanhuns, dentro do Festival de Inverno, o que para mim foi inesquecível”, pontuou.

Apesar do fechamento por conta da pandemia, Tebas Land recebeu vários reconhecimentos da crítica, entre eles os prêmios Shell RJ de Melhor Ator (Otto Jr.) e Botequim Cultural de Melhor Espetáculo, Melhor Direção e Melhor Ator (Robson Torinni). Também foi indicado ao Botequim Cultural de Melhor Ator (Otto Jr.) e Cesgranrio de Melhor Direção e Melhor Ator (Robson Torinni). Depois desta temporada atual temporada da peça Brasil, que será concluída no final de setembro, em Tiradentes (MG), Robson Torinni espera circular com Tráfico, também fruto da sua parceria com o diretor Victor Garcia Peralta. O texto lhe foi oferecido por Sergio Blanco quando o dramaturgo acompanhou um dos ensaios de Tebas Land (o franco-uruguaio só conseguiu assistir à peça completa em julho, em Avignon).

“Quando Sergio me disse que estava escrevendo um texto, um monólogo, e queria que eu fizesse, eu disse que não faria de jeito nenhum. Imagina, tinha pavor de fazer um solo (risos). Mas, Victor me incentivou e, como considero ele um cara incrível, um gênio, confiei nele. Para mim, foi uma sensação muito intensa. Meu personagem nesta peça, o Alex, é um garoto da periferia, abandonado pelos pais, que entra na prostituição, depois no crime organizado. É um trabalho muito cru, que me exaure muito a cada sessão. Mas, considero importante contar as histórias de pessoas que são esquecidas pelo poder público e pela sociedade mesmo, muito recorrentes na dramaturgia de Sergio Blanco. Esse trabalho me transformou muito e acho que teve ecos também na nova temporada de Tebas Land. Você estar em um monólogo é como estar em um abismo. Quando Vera Holtz foi me ver em Tráfico, ela falou que eu jamais seria o mesmo depois dessa experiência. De fato, voltei para Tebas com toda essa carga, me deu outra propriedade em cena”, pontuou Robson.

O pernambucano tem expectativa de trazer Tráfico em breve para a sua terra natal e, enquanto isso, já se lança em novos trabalhos. Atualmente, pode ser visto como Cláudio, um skatista de caráter duvidoso, na novela Tudo em Família, da TV Globo, e está nos estágios iniciais de uma nova peça (que não será uma nova adaptação de Sergio Blanco, já adianta). Em 2025, deve voltar a Avignon, com Tráfico, e ir ao Festival de Edimburgo, na Escócia, com Tebas Land.

Márcio Bastos é jornalista, autor do livro Pernalonga: uma sinfonia inacabada (Cepe Editora) e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.

SERVIÇO
Tebas Land
Onde: Teatro do Parque (Rua do Hospício, 81, Boa Vista, Recife)
Quando: Sábado (31) e Domingo (1/9), às 19h
Quanto: R$ 120 (inteira) e R$ 60 (meia-entrada), via Sympla
Classificação indicativa: 16 anos
Duração: 1h40

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