Woody Allen: incansável máquina de fazer filmes
Diretor chega aos 80 anos adorado pelo público, respeitado pela crítica e marcado por, como afirma, “uma brilhante ilusão que já dura 50 anos”
TEXTO Marcelo Miranda
01 de Dezembro de 2015
Woody Allen
Foto Divulgação
"É difícil saber qual é o seu próprio estilo. Se eu pintasse um quadro e não pusesse o meu nome nele, você saberia que era meu? Claro que, se estou no filme, é uma pista importante. Mas, se não estou no filme, você saberia que era meu? Não sei dizer.”A declaração, dada por Woody Allen ao jornalista Eric Lax, em 1987, vinha de um cineasta que, àquela altura, já tinha se tornado referência de si mesmo, ao assinar títulos como O dorminhoco (1973), Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), Manhattan (1979), A rosa púrpura do Cairo (1985), entre outros. Ao longo de quase 50 anos de carreira como diretor – iniciada em 1966, com o longa O que há, tigresa?, e já acumulando 45 filmes –, Allen fincou várias marcas na produção estadunidense e ganhou um tipo raro de status e reconhecimento. O baixinho, esquisito e tagarela artista nascido em Nova York, no dia 1º de dezembro de 1935, e registrado como Allan Stewart Königsberg, chega aos 80 anos de idade em plena ação, com a notável marca de um filme por ano e o interesse constante do público.
A longevidade de Allen foi absorvida por um ritmo de trabalho próprio. Pouca gente parece pensar no fato de ele agora ser um octogenário, mas quem o admira fica no aguardo do próximo filme. Nem sempre vem a melhor das recepções (o mais recente, Homem irracional, passou um tanto batido), mas desde o enorme sucesso de Meia-noite em Paris (2011), até os exibidores – tantas vezes relutantes em mostrar alguns filmes assinados por Allen (a ponto de o pôster de Vicky Cristina Barcelona, em 2008, esconder seu nome) – ficam ansiosos pelo que vem a seguir.
“O que me parece é que o público adotou Allen e procura seus filmes automaticamente. Ele é uma assinatura”, diz a crítica de cinema Neusa Barbosa, editora do portal CineWeb e autora do livro Gente de cinema: Woody Allen. “Ele funciona como um ‘reloginho’, anotando ideias o tempo todo e pensando em filmes. Já acumulou uma grande plateia internacional, é famoso e popular, e não faz nada por encomenda. Bons ou maus, fracos ou fortes, seus trabalhos atendem só a seus interesses, àquilo que ele acha que pode e sabe fazer. As histórias sempre têm certo charme, ironia e elegância. E esta é uma arte em extinção, num tempo de tanta superexposição, de tanta celebridade instantânea.”
Para Sérgio Alpendre, editor da revista eletrônica Interlúdio e professor de cinema, o cineasta “nunca se encaixou em tendências, mesmo as mais prolíficas e duradouras”. Integrado à geração denominada de Nova Hollywood (cuja ascensão se deu no começo dos anos 1970, quando jovens realizadores como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e William Friedkin reconfiguraram o modo de produção do cinema norte-americano), Woody Allen não pode ser vinculado diretamente às características do período, tanto por diferenças de estilo quanto por, na época, já ter criado seu jeito modesto e único de trabalhar. “Allen parece se mover ao largo dos movimentos, seus filmes existem num mundo bem particular e reconhecível”, destaca Alpendre.
Manhattan é um dos filmes no qual o diretor declara o seu amor por Nova York.
Imagem: Divulgação
TRAJETÓRIA
Woody Allen começou a carreira aos 15 anos, escrevendo para jornais e programas de rádio nos anos 1950. Na década seguinte, subiu aos palcos em shows cômicos de stand up e chamou a atenção de produtores e financistas de Hollywood, que logo o escalaram para papéis no cinema. A primeira aparição nas telas se deu aos 29 anos, em O que é que há, gatinha? (1965), de Clive Donner. Após o experimento de O que há, tigresa? (no qual Allen redublou inteiramente um filme japonês e criou uma comédia por conta própria) e a pequena participação na paródia dos filmes de James Bond Cassino Royale (1967), o cineasta efetivamente assinou e protagonizou o seu primeiro trabalho autoral com Um assaltante bem trapalhão (1969).
Essa fase inicial, seguida por outras comédias amalucadas, como Bananas (1971), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar (1972) e A última noite de Boris Grushenko (1975), dá continuidade à experiência nos palcos e nas piadas aceleradas de um cronista atento às idiossincrasias da sociedade. Para Neusa Barbosa, a tradição do humor judaico, inspirada nos irmãos Marx, tornou-se elemento forte em Allen, marcado ainda pela hiperexposição do comediante, sempre atuando como protagonista de cada filme.
A partir da segunda metade dos anos 1970, o cinema de Allen passa a lidar com questões mais pessoais, principalmente com os relacionamentos íntimos e a vivência urbana. “Acho muito luminosa a fase em que ele, jovem, retrata suas paixões, como Nova York, o próprio cinema e as mulheres, em Noivo neurótico, noiva nervosa, Manhattan, Memórias (1980), Zelig (1983). Estão aí alguns dos seus melhores filmes e o período em que ele conquista respeito crítico”, afirma Neusa Barbosa.
O crítico Sérgio Alpendre identifica, na mesma época, a mudança de tom no cinema de Allen e a relaciona à parceria com o diretor de fotografia Gordon Willis (1931-2014), iniciada em 1977. Willis é considerado pelo próprio cineasta como o profissional que o ajudou a elaborar a linguagem nos filmes para além do humor rasgado. O fotógrafo vinha da experiência de iluminar dois exemplares de O poderoso chefão (1972 e 1974), de Coppola, e Todos os homens do presidente (1976), de Alan Pakula.
“Eu sabia que era engraçado e que minhas piadas eram engraçadas. Quando ganhei segurança, quis encontrar jeitos mais gráficos, mais cinemáticos de contar uma história, sem tanto medo de fazer alguma coisa que pudesse atravancar as piadas. Fiquei interessado em arriscar mais”, contou Allen a Eric Lax, em entrevista registrada no livro Conversas com Woody Allen.
Gravado na Espanha, Vicky Cristina Barcelona faz parte de uma sequência de longas ambientados na Europa. Foto: Divulgação
Considerado altamente sofisticado no que escreve e poucas vezes olhado com atenção na forma como delineia os filmes, Allen tem um jeito discreto de desenvolver a estética. Sérgio Alpendre diz admirar nele o uso dos planos longos como forma de valorizar o espaço e a presença dos atores na cena. “Hannah e suas irmãs (1986) e Tiros na Broadway (1994) são meus preferidos, justamente porque neles Allen realiza com maior habilidade a tendência ao plano-sequência”, afirma. “Seus filmes costumam tanto passear pela decupagem clássica quanto pela moderna, com resistência ao contracampo, por exemplo. Até um pouco de maneirismo aparece em alguns títulos.”
VIRADA
No início dos anos 2000, Allen retornou à comédia escrachada de começo de carreira, em filmes de repercussão mediana que ameaçaram, inclusive, a crença na sua inventividade, como Trapaceiros (2000), O escorpião de Jade (2001), Dirigindo no escuro (2002) e Igual a tudo na vida (2003). Num período de vários fracassos de público e de crítica, o cineasta parecia patinar, refém de autoindulgência e a reverência do passado. O tensionamento durou até a estreia de Match point (2005), considerado o marco de uma fase que segue até hoje.
Sombrio e irônico, o filme abriu novos flancos para o diretor transitar, permitindo-lhe retomar, em trabalhos posteriores, alguns antigos temas, agora vistos novamente com admiração por centenas de espectadores. Match point também iniciou o périplo de Allen por outros países. Ele deu um tempo da amada Nova York e foi filmar na Inglaterra, na Itália, na Espanha e na França, num misto de frescor de criação e maior liberdade artística, vistos principalmente em O sonho de Cassandra (2007), Vicky Cristina Barcelona e Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (2010), culminando na explosão de Meia-noite em Paris.
“Ele se tornou uma celebridade à própria revelia, embora, é claro, desfrute de sua fama para continuar fazendo o que faz”, comenta Neusa Barbosa, que acredita num Allen mais amadurecido depois de sua fase europeia. “Ele voltou para casa com tom mais sombrio, no meio da ironia que nunca cede, em Blue Jasmine (2013), Magia ao luar (2014) e Homem irracional”. O favorito de Neusa na fase recente, aliás, é Blue Jasmine, que deu o Oscar de melhor atriz à australiana Cate Blanchett. “O filme é uma das críticas mais ácidas ao arrivismo de nossos tempos, traduzido por uma personagem feminina magnífica”, exalta ela.
Para 2016, Allen segue cheio de projetos. Ao mesmo tempo em que finaliza seu próximo filme (ainda sem título), ele está envolvido na sua primeira série de TV. Perguntado por Eric Lax sobre quais os motivos de sua longevidade, Allen deu a resposta que parece definitiva. Vale reproduzi-la: “Então, você me pergunta como eu durei – principalmente com todos os meus defeitos, as minhas limitações, tanto artísticas como pessoais, as minhas fobias, idiossincrasias, as minhas pretensões artísticas e exigências artísticas absolutas numa indústria venal, implacável – funcionando apenas com um talento menor? A resposta é a seguinte: quando era criança, eu adorava mágica e poderia ter sido mágico, se não tivesse tomado um desvio. E assim, usando toda a minha habilidade manual, dissimulação, meus sutis subterfúgios e talento cênico, consegui produzir uma brilhante ilusão que já dura 50 anos”.
MARCELO MIRANDA, jornalista, crítico de cinema e mestrando em Comunicação pela UFMG.