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Vinte chaves que abrem o sentido do humor

TEXTO Antonio Clériston de Andrade

01 de Janeiro de 2015

Na charge, unem-se vários elementos de conhecimento prévio do leitor, como as promessas não cumpridas

Na charge, unem-se vários elementos de conhecimento prévio do leitor, como as promessas não cumpridas

Ilustração Clériston de Andrade/Cortesia

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 168 | dez 2014]

Quem não morreu de rir ou de ódio ao ver
uma charge protagonizada por um dos candidatos à presidência nas redes sociais ou em revistas e jornais? Quem não compartilhou ou deletou imagens julgadas hilárias ou grosseiras no Facebook ou WhatsApp? Pois é, pimenta no tempero dos outros é refresco. Mas, afinal, o que faz de uma imagem que contém uma situação um enunciado de humor? Em 2011, completei um quebra-cabeça de 300 páginas, também conhecido como tese de doutorado em Linguística, na UFPE, no qual apontei 20 elementos discursivos que corroboram para os efeitos de sentidos que uma “piada gráfica” permite suscitar. E não é que deu certo?

Articulei, na fundamentação teórica, postulados da Análise do Discurso francesa sob a perspectiva de Dominique Maingueneau com o pensamento sobre a eventicidade da existência humana posta pelo russo Mikhail Bakhtin. Desse modo, noções como as de alteridade, dialogismo, heterogeneidade constitutiva, formação discursiva, interdiscurso e efeitos de sentidos configuram os pilares de um aparato de análise que permite uma leitura menos inocente do mundo, principalmente dos acontecimentos mediados por dispositivos eletrônicos e impressos.

Vamos a eles. Comecemos por suporte meio. Toda enunciação tem um espaço físico ou virtual no qual o material publicado pode ser acessado. Uma caricatura não é “a mesma”, caso estampe a capa da revista Veja ou da Carta Capital. O autor é o segundo agente do aparato teórico de análise que tem influência sobre os sentidos do que se enuncia: “Você pode ganhar um aumento” tem sentidos distintos, se é dito pelo diretor de uma empresa para um funcionário, ou se é o que diz um horóscopo.

O tema não deve ser visto como um verbete, de modo abrangente e vago. Quando se traz o tema “corrupção” para uma charge, ele é trazido com sujeito, verbo e predicado: um iceberg com sua parte submersa. Tira ou caricatura? Jornalismo ou publicidade? É o quadro cênico que nos leva a discernir quanto à cena genérica e englobante: do que se trata, e em qual âmbito instituído o leitor é interpelado a se posicionar – como consumidor, eleitor ou torcedor de clube.

No aparato de análise, contamos com três aspectos contextuais: um amplo, que diz respeito aos já ditos, ao histórico, somado à consciência que o sujeito tem de si no mundo; um de horizonte imediato, cuja perspectiva do aqui e agora nos fez vivenciar há pouco uma disputa eleitoral; e um mais restrito, a situação de comunicação que diz respeito às condições de produção e fruição do enunciado. Um cartum produzido na época do Carnaval não tem o mesmo efeito se visto em julho, em Tóquio.

Se, no romance, escreve-se o nome do falante, nas charges, desenha-se a figura dos protagonistas, geralmente um que pergunta ou comenta, e outro que responde ou retruca. Nas tirinhas, temos os heróis, e, nas redes sociais, são criados seres falantes, como o Bode Gaiato. Há casos em que uma cidade, objeto ou animal protagoniza o enunciado, geralmente produzindo falas.

Nos enunciados, há outras vozes, além da do autor, a que chamamos de aspecto polifônico. Num cartum, podemos encontrar a voz da igreja, do discurso racista, de modo dissimulado, ou a citação direta de uma personalidade, capaz de evocar ódios e simpatias. Através da intertextualidade, trazemos fragmentos de outros textos, como o nariz de Pinóquio posto em um deputado; porém, através do princípio da interdiscursividade, esse marcador evoca a mentira, atributo que passa a ser associado ao parlamentar. E denomina-se por intradiscursividade a convocação de elementos recorrentes, forjados no próprio meio, como a alegoria da inflação, no caso das charges, na forma de um dragão.

INTERVENÇÃO SURPREENDENTE
No processo de enunciação, o autor pode optar pelo fundo em branco, ou elaborar uma cenografia, criando uma ambiência reconhecida pelo leitor, como o Congresso Nacional ou uma quadra de tênis. Às vezes, é aí que está uma chave importante da estratégia narrativa espirituosa. Outra noção interessante é a de ethos, isto é, como o enunciador institui a si próprio através da sinestesia e da entonação, denotando ironia, euforia ou desprezo em seu dizer. Porém, o mais importante dos elementos constitutivos do enunciado de humor é a intervenção surpreendente. É o acréscimo, supressão, substituição ou modificação de uma cena reconhecida pelo interlocutor, para uma situação nova, inesperada e divertida.

Embora haja muitos registros sem palavras, os itens lexicais e falas contribuem para variadas formas de enunciação. As mais comuns são os balões de diálogos, os títulos e as siglas que designam partidos e instituições, de cujas alterações nas formas decorrem novos pontos de vista. O traço e o delineamento no enunciado conferem força expressiva ao que é encenado. Um balão delineado com uma linha tracejada pode indicar sussurro, enquanto outro, com saliências angulosas, denotaria gritos.

No processo de acabamento artístico e editoração são realizados os detalhes que dão vigor e precisão ao enunciado: pela cor, indica-se a identidade de um partido ou um clube; aplicada na pele, pode designar alguém “roxo de raiva”; o vermelho pode evocar lugares do imaginário, como o inferno. Cores e texturas podem funcionar como adjetivos e devem ser empregadas com parcimônia pelo autor-enunciador.

Quanto aos efeitos de sentidos, estes são resultado da enunciação, considerando-se todos os elementos discursivos que corroboraram para tal empreendimento, lembrando que eles são irrepetíveis, até para os mesmos interlocutores. A releitura de um livro é uma nova experiência.

O vigésimo elemento discursivo é o posicionamento axiológico do enunciador. Este pode ser inferido pelo modo como enuncia e pelas marcas deixadas para se saborear. Embora possamos tirar conclusões sobre o posicionamento de um autor, é mais seguro analisar o conjunto da obra, a fim de caracterizar uma formação ideológica, pois esta deve revelar certa coerência e dispersões sobre os temas tratados.

Dificilmente, um enunciado coincide com o que parece dizer. Os pés para trás, por exemplo, desmontam a fala de uma personalidade que diz “olhar o futuro”. Esse conjunto pertence a uma proposição de Teoria Dialógica da Enunciação, que estendi a outros tipos de enunciados, como fotografia, aula, publicidade e cinema. No momento, aplico a metodologia à enunciação do empreendimento, afirmando a organização e seu produto como discurso e sentidos na região em que atua. 

ANTONIO CLÉRISTON DE ANDRADE, professor universitário, músico e cartunista, autor do Projeto HQ/CD - e som virou quadrinhos.

Leia também:
"O discurso humorístico é também ideológico"
"Utilizamos a mentira a serviço da verdade"

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