Articulei, na fundamentação teórica, postulados da Análise do Discurso francesa sob a perspectiva de Dominique Maingueneau com o pensamento sobre a eventicidade da existência humana posta pelo russo Mikhail Bakhtin. Desse modo, noções como as de alteridade, dialogismo, heterogeneidade constitutiva, formação discursiva, interdiscurso e efeitos de sentidos configuram os pilares de um aparato de análise que permite uma leitura menos inocente do mundo, principalmente dos acontecimentos mediados por dispositivos eletrônicos e impressos.
Vamos a eles. Comecemos por suporte meio. Toda enunciação tem um espaço físico ou virtual no qual o material publicado pode ser acessado. Uma caricatura não é “a mesma”, caso estampe a capa da revista Veja ou da Carta Capital. O autor é o segundo agente do aparato teórico de análise que tem influência sobre os sentidos do que se enuncia: “Você pode ganhar um aumento” tem sentidos distintos, se é dito pelo diretor de uma empresa para um funcionário, ou se é o que diz um horóscopo.
O tema não deve ser visto como um verbete, de modo abrangente e vago. Quando se traz o tema “corrupção” para uma charge, ele é trazido com sujeito, verbo e predicado: um iceberg com sua parte submersa. Tira ou caricatura? Jornalismo ou publicidade? É o quadro cênico que nos leva a discernir quanto à cena genérica e englobante: do que se trata, e em qual âmbito instituído o leitor é interpelado a se posicionar – como consumidor, eleitor ou torcedor de clube.
No aparato de análise, contamos com três aspectos contextuais: um amplo, que diz respeito aos já ditos, ao histórico, somado à consciência que o sujeito tem de si no mundo; um de horizonte imediato, cuja perspectiva do aqui e agora nos fez vivenciar há pouco uma disputa eleitoral; e um mais restrito, a situação de comunicação que diz respeito às condições de produção e fruição do enunciado. Um cartum produzido na época do Carnaval não tem o mesmo efeito se visto em julho, em Tóquio.
Se, no romance, escreve-se o nome do falante, nas charges, desenha-se a figura dos protagonistas, geralmente um que pergunta ou comenta, e outro que responde ou retruca. Nas tirinhas, temos os heróis, e, nas redes sociais, são criados seres falantes, como o Bode Gaiato. Há casos em que uma cidade, objeto ou animal protagoniza o enunciado, geralmente produzindo falas.
Nos enunciados, há outras vozes, além da do autor, a que chamamos de aspecto polifônico. Num cartum, podemos encontrar a voz da igreja, do discurso racista, de modo dissimulado, ou a citação direta de uma personalidade, capaz de evocar ódios e simpatias. Através da intertextualidade, trazemos fragmentos de outros textos, como o nariz de Pinóquio posto em um deputado; porém, através do princípio da interdiscursividade, esse marcador evoca a mentira, atributo que passa a ser associado ao parlamentar. E denomina-se por intradiscursividade a convocação de elementos recorrentes, forjados no próprio meio, como a alegoria da inflação, no caso das charges, na forma de um dragão.
INTERVENÇÃO SURPREENDENTE
No processo de enunciação, o autor pode optar pelo fundo em branco, ou elaborar uma cenografia, criando uma ambiência reconhecida pelo leitor, como o Congresso Nacional ou uma quadra de tênis. Às vezes, é aí que está uma chave importante da estratégia narrativa espirituosa. Outra noção interessante é a de ethos, isto é, como o enunciador institui a si próprio através da sinestesia e da entonação, denotando ironia, euforia ou desprezo em seu dizer. Porém, o mais importante dos elementos constitutivos do enunciado de humor é a intervenção surpreendente. É o acréscimo, supressão, substituição ou modificação de uma cena reconhecida pelo interlocutor, para uma situação nova, inesperada e divertida.
Embora haja muitos registros sem palavras, os itens lexicais e falas contribuem para variadas formas de enunciação. As mais comuns são os balões de diálogos, os títulos e as siglas que designam partidos e instituições, de cujas alterações nas formas decorrem novos pontos de vista. O traço e o delineamento no enunciado conferem força expressiva ao que é encenado. Um balão delineado com uma linha tracejada pode indicar sussurro, enquanto outro, com saliências angulosas, denotaria gritos.
No processo de acabamento artístico e editoração são realizados os detalhes que dão vigor e precisão ao enunciado: pela cor, indica-se a identidade de um partido ou um clube; aplicada na pele, pode designar alguém “roxo de raiva”; o vermelho pode evocar lugares do imaginário, como o inferno. Cores e texturas podem funcionar como adjetivos e devem ser empregadas com parcimônia pelo autor-enunciador.
Quanto aos efeitos de sentidos, estes são resultado da enunciação, considerando-se todos os elementos discursivos que corroboraram para tal empreendimento, lembrando que eles são irrepetíveis, até para os mesmos interlocutores. A releitura de um livro é uma nova experiência.
O vigésimo elemento discursivo é o posicionamento axiológico do enunciador. Este pode ser inferido pelo modo como enuncia e pelas marcas deixadas para se saborear. Embora possamos tirar conclusões sobre o posicionamento de um autor, é mais seguro analisar o conjunto da obra, a fim de caracterizar uma formação ideológica, pois esta deve revelar certa coerência e dispersões sobre os temas tratados.
Dificilmente, um enunciado coincide com o que parece dizer. Os pés para trás, por exemplo, desmontam a fala de uma personalidade que diz “olhar o futuro”. Esse conjunto pertence a uma proposição de Teoria Dialógica da Enunciação, que estendi a outros tipos de enunciados, como fotografia, aula, publicidade e cinema. No momento, aplico a metodologia à enunciação do empreendimento, afirmando a organização e seu produto como discurso e sentidos na região em que atua.
ANTONIO CLÉRISTON DE ANDRADE, professor universitário, músico e cartunista, autor do Projeto HQ/CD - e som virou quadrinhos.
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