CONTINENTE Joaquim Nabuco confessou, em Minha Formação, que tinha um sentimento contraditório: ele, que tinha lutado com todas as forças contra a escravidão, confessou que sentia o que ele chamava de “singular nostalgia” – a saudade do escravo. O que deixou você fascinado com Joaquim Nabuco foi o sentimento ambíguo que ele teve em relação a esse tema?
CAETANO VELOSO Eu já estava muito fascinado por ele antes de ele confessar essa sutileza do espírito individual diante da questão. É um momento complexo e ambíguo do Minha Formação. Talvez seja o momento mais intimamente confessional de todo o livro. Depois dessa confissão é que vem o trecho que me levou a querer musicar. O assunto terminou dando o título a meu disco – que se chama Noites do Norte. Mas essa confissão permitiu que ele retomasse a idéia de que a escravidão tinha organizado – ou desorganizado! – a vida brasileira de tal maneira que o Brasil precisaria de muito tempo e muito esforço para desfazer o trabalho da escravidão. É um bordão do pensamento de Joaquim Nabuco, que, neste momento de Minha Formação, aparece sob a luz do reconhecimento de um sentimento contraditório: aquele que mais lutou pela abolição da escravatura confessa que sentia saudade do escravo. Para mim, essa reflexão pessoal de Joaquim Nabuco já é uma revelação de algo muito profundo que é o Brasil. Quando vi que, logo em seguida, ele expande esse sentimento para um retrato abrangente do Brasil, eu disse: “É mais do que poesia!”
CONTINENTE Que outro horror brasileiro, além da escravidão, seria capaz de despertar sentimentos ambíguos em você?
CAETANO VELOSO Eu estou embebido dessa visão do Joaquim Nabuco. Venho lendo e relendo Minha Formação. Já reli – muito! – O Abolicionismo. Assim como fez Joaquim Nabuco, acho difícil, neste momento, não atribuir todos os horrores nacionais à escravidão – que ele descreve como tendo formado o Brasil. Joaquim Nabuco atribuía à escravidão a estrutura do pensamento do homem brasileiro como ser social: é a sensação paralisadora que o brasileiro tem de que tudo se deve às autoridades oficiais; toda queixa deve ser feita contra elas; todas as exigências devem ser feitas a elas; quase nenhuma responsabilidade resta para o cidadão. É essa vontade louca de cada brasileiro se tornar um funcionário público, uma estrutura que leva a coisas que me indignam. Sou, por exemplo, um obsessivo pela obediência às leis do trânsito. Sempre me pareceu absolutamente inaceitável que as pessoas no Brasil não considerem o sinal de trânsito um sinal nítido e simples, uma lei de convivência social paradigmática de todas as outras leis de convivência social. Mas vejo também a linguagem corporal, extremamente sensual e bonita dos brasileiros nas ruas. Estrangeiros – que às vezes trago ao Brasil – ficam fascinados com esse jeito de ser e de andar na rua dos brasileiros – que transmite uma impressão de felicidade física. O diretor do museu Guggenheim, que veio ao Brasil para escolher a cidade onde vão instalar uma filial do museu, disse, depois de um dia: “Quero morar aqui!” Pelo modo de as pessoas se moverem! Isso me parece misteriosamente vinculado à dificuldade brasileira de entender o aspecto abstrato de leis tão simples quanto as de trânsito. Antes, muito antes de ler o que Joaquim Nabuco escreveu sobre a escravidão, eu pensava assim. Eu manterei, sempre, minha posição pública contra o desrespeito às leis do trânsito, mas, intimamente, olho para esse fenômeno com amor e ternura. Vejo que é parte de alguma coisa preciosa que não devemos perder – ainda que aprendamos a respeitar os sinais de trânsito! Eduardo Giannetti – um sujeito que admiro imensamente, adoro o jeito de ele pensar desde que li o livro que ele escreveu sobre economia – me perguntou uma vez se eu achava que o Brasil poderia passar a ser organizado, nesse sentido de parar no sinal de trânsito. Não vejo necessariamente uma contradição insolúvel. Tenho sentimentos ambíguos semelhantes aos que encontrei em Joaquim Nabuco com relação à escravidão. Talvez o desrespeito às leis de trânsito venha de muita coisa que a escravidão nos deixou. O sujeito que, por possuir um automóvel, se julga no direito de fazer o que quer que seja – e fura o sinal vermelho – se acostumou a uma sociedade de senhores e escravos, não a uma sociedade de cidadãos que devem se respeitar em pé de igualdade. A repressão se mostra tímida diante do proprietário do automóvel, mas se mostra violenta diante dos despossuídos. Isso é parte da formação do Brasil – uma vergonha, uma coisa tétrica; mas, algo em tudo isso é precioso, é bonito, leva a essa sensualidade do modo de ser do brasileiro na rua e a essa doçura no trato, uma série de coisas bonitas que o Brasil não deve perder. O modo de você ver as pessoas na rua leva o Brasil a estar sempre em risco de se tornar uma espécie de paraíso do turismo sexual – um sintoma do legado da escravidão, porque é uso do corpo do outro por quem pode usar. Mas o país que corre o risco de ser um ambiente de turismo sexual tem, em princípio, algo de precioso e maravilhoso – que não deve ser destruído por um moralismo que venha a fazer uma assepsia da vida cotidiana que nos livrasse do perigo de ver as nossas meninas, os nossos meninos prostituídos por estrangeiros. O risco que nós corremos, sob muitos aspectos, é maravilhoso. Não havendo este reconhecimento, essa limpeza não interessa. Então é nessa vertente de ambigüidades de julgamento moral que eu me identifiquei muito profundamente com esse trecho de Joaquim Nabuco sobre a escravidão. Mas admiro também imensamente todo o resto – que é mais racional e não ambíguo.
CONTINENTE O que é que impressionou você no artigo que o vice-presidente Marco Maciel escreveu sobre o movimento negro no Brasil?
CAETANO VELOSO Eu li o artigo de Marco Maciel no Dia Nacional da Consciência Negra. Achei de grande importância, porque é um artigo que, além de correto, não teve pudores de ir nos pontos essenciais, ao propor a adoção de medidas de reparação histórica aos negros. O vice-presidente da República, um homem do PFL – um partido de centro-direita ou considerado no espectro político brasileiro como estando à direita – escreveu um artigo em que diz não tudo o que deve ser dito, mas o que uma autoridade como ele na melhor das hipóteses diria. O artigo é muito bom! Reputo de grande valor histórico. Não tenho lido por parte de políticos de esquerda textos sobre o mesmo assunto tão nítidos e tão corretos. Agora, vão dizer: “Olhem o Caetano Veloso com o PSDB, Fernando Henrique Cardoso, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, ele está em cima do muro...” Mas ninguém pode medir se artista é direita, esquerda ou centro. Não pode julgar um artista como se o que ele faz devesse ser pesado a partir dessas categorias! Dizer que um artista está em cima do muro é uma coisa estúpida. Porque necessariamente o artista deve pairar muito acima do muro! A verdade é essa! O jeito de Baden Powell tocar violão era direita ou esquerda? Gostaria que alguém me dissesse. Eu acho chato querer vincular.
CONTINENTE Há exatamente um século, em 1900, Joaquim Nabuco escreveu a frase que hoje você canta, “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Qual é hoje o grande traço dessa herança na vida brasileira?
CAETANO VELOSO O mais evidente é a favelização das grandes cidades e a estatística vergonhosa e escandalosa da predominância de negros entre os que vivem na situação de favelado. Isso é o resultado mais imediato e mais evidente. Mas há outros, muito mais sutis. Em O Abolicionismo, Joaquim Nabuco já registra esse fenômeno no nascedouro, ao dizer que estava se formando uma aglomeração de pessoas jogadas perto das cidades.
CONTINENTE Você uma vez escreveu que essa mistura de raças no Brasil não era garantia “nem de degradação nem de utopia genética”. Se você fosse procurar uma má herança dessa mistura, você citaria o quê? E a boa herança, qual foi?
CAETANO VELOSO Eu estou muito impregnado de Joaquim Nabuco. Já estou quase virando um pernambucano: é uma paixão. A maior honra hoje em dia é que minha casa, no Rio, fica pertinho da saída da rua Joaquim Nabuco. Fico honradíssimo. Eu estou tão embebido do pensamento de Joaquim Nabuco que quando ouço uma pergunta como essa me lembro do que ele disse ainda na campanha do abolicionismo – uma visão diferente da minha. É difícil citar, porque é uma questão complexa, mas ele via uma coisa muito má na mistura de uma raça que estava num estágio atrasado com uma raça que, por estar em estágio mais adiantado de civilização, agia brutalmente. A combinação da submissão dos negros com a brutalidade dos brancos era alguma coisa que só poderia criar uma formação nacional débil e má. Mas Joaquim Nabuco diz coisas lindas, como, por exemplo, que grande parte da atitude servil do negro apresentava uma superioridade humana e moral que chegava às raias do sublime. Por essa razão, ele diz que, em muitos casos, tinha saudade dos escravos – um sentimento ambíguo. Joaquim Nabuco viu exemplos de abnegação, entrega, despojamento e ausência de egoísmo em escravos que chegavam à raia da santidade. Isso poderia vir a compensar o que havia de brutal na atitude do senhor. Para ele, uma nação fundada nessa relação tem todas as probabilidades de não funcionar bem e ter um futuro sombrio. Há um momento em que ele cita um pensador inglês que disse que os negros nos Estados Unidos nunca chegariam a uma verdadeira felicidade. Mas ele via uma grande possibilidade de felicidade para os negros do Brasil, no futuro, porque aqui não havia aquela separação. Naturalmente, não é o que a realidade de hoje confirma. Não podemos de forma alguma dizer que esta é a nossa realidade. Em todo caso, os escravagistas do sul dos Estados Unidos mantinham a nitidez da superioridade que justificava a escravização da raça negra. Nem os escravos americanos nem os seus filhos podiam ter participação na cidadania. Não podiam nem pleitear igualdade. Depois da abolição americana, era essa a posição dos racistas do Sul. Aqui no Brasil se deu algo que lá teria sido um escândalo: os negros alforriados podiam ter escravos! Podiam ser senhores. O fato de ele poder ter escravo significa que ele poderia ter o status de senhor. Joaquim Nabuco dizia que a escravidão no Brasil foi muito mais hábil, porque ela mexe em todos os interstícios da sociedade, enquanto que nos Estados Unidos, não. Isso dá uma possibilidade ao Brasil: se um dia superar os problemas que a escravidão trouxe, o Brasil pode realizar possibilidades que os Estados Unidos jamais poderão. O fato de os escravos brasileiros, uma vez alforriados, poderem ser senhores significava que não havia um impedimento de base racial, como nos Estados Unidos, para que, em princípio, pessoas de qualquer cor viessem a participar da cidadania com plenitude. Joaquim Nabuco já dizia no século 19 o que muita gente pensa que só se disse no Brasil depois dos anos 70, com o movimento negro e a influência americana: a escravidão brasileira se mostrou muito mais hábil do que no Sul dos Estados Unidos, porque pôde se perpetuar e se infiltrar por todos os meandros da sociedade brasileira, os mais sutis, inclusive. Isso não quer dizer que não haja vantagem na mistura e na confusão de hierarquia – uma característica que faz com que o movimento negro no Brasil não possa ser parecido com o dos Estados Unidos. Isso é mau e bom. É algo que os norte-americanos nunca tiveram nem puderam ter. Se nós conseguirmos crescer economicamente e superar aleijões que a escravidão deixou na nossa sociedade, temos uma matériaprima humana que os Estados Unidos nem sequer conhecem.
A VONTADE DE SER AMERICANO
CONTINENTE Numa das músicas, você trata da vontade de Raul Seixas de “ser americano”. Há um século Joaquim Nabuco tratava do problema de como nós, brasileiros, víamos os estrangeiros. Num trecho de Minha Formação, ele diz que o ar lá é “mais vivo e mais leve” que outros, “saturados de tradição e convencionalismo”. Os americanos estariam, segundo Joaquim Nabuco, “inventando a vida, como se nada tivesse existido até então”. Você, que acaba de se transformar em discípulo de Joaquim Nabuco, tem ou teve esse sentimento diante dos Estados Unidos?
CAETANO VELOSO Joaquim Nabuco vai fundo também na crítica à idéia de igualdade, tal como ela era vivida pelos americanos. Diz que os americanos viviam a ilusão de que tinham uma liberdade individual que resultava numa igualdade de cada indivíduo muito mais desenvolvida do que na Inglaterra, por exemplo. Para ele, que era anglófilo, a Inglaterra tinha uma solução que oferecia resultados melhores, porque a igualdade que se esboçava era feita com conteúdos de nobreza moral que os americanos desconheciam.
CONTINENTE Mas você tem o pensamento de que, como Joaquim Nabuco dizia, os americanos estavam reinventando a vida?
CAETANO VELOSO Eu tenho esse pensamento. É o que a gente sente estando nos Estados Unidos – ou de longe. É o aspecto mais positivo e animador dos Estados Unidos. Interessa, porque parece um sopro de ar puro na história da humanidade. Mas Joaquim Nabuco escreveu que os americanos, quando dizem que cada indivíduo pode ter liberdade, estão falando de norte-americanos brancos. Chineses e negros estão, na mente do americano, abaixo da condição de humanidade. Joaquim Nabuco dizia que, quando um americano olha para seus primeiros vizinhos na América Latina – o mexicano ou cubano, para não falar dos outros latino-americanos – ele faz com um desprezo nunca visto de um ente humano para outro em nenhuma outra situação. Aos olhos de Joaquim Nabuco, essa atitude desqualifica o valor espetacular da individualidade que a grande democracia americana preconizava e preconiza. Hoje, nos Estados Unidos, pensa-se em multiculturalismo, mas é um prosseguimento de uma linha puritana que não se sabe aonde pode dar. Quando a gente olha para os Estados Unidos, no entanto, sente uma atração por coisas como o “ar puro” de que Joaquim Nabuco falou.
CONTINENTE Você ainda acredita incondicionalmente na idéia de que o Brasil vai ser – ou é – um país original?
CAETANO VELOSO Acredito – mas não incondicionalmente. Se os países são originais, o Brasil é muito original! O que aconteceu na Argentina dá a ela características que fazem do país algo diferente do Chile. Eu, sinceramente, quando estava no Chile, senti uma saudade horrível da Argentina. Parecia que a Argentina era a Bahia! O Chile era tão formal, trazia uma mistura tão forte de europeísmo com neo-yuppismo americano que eu ficava com saudade da Argentina e do Uruguai, sem falar no Brasil. O fato de um país desse tamanho falar português e ter um autor como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20 faz do Brasil um grande segredo que nós guardamos e queremos revelar. É uma experiência única! Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e sermos um país de dimensões continentais na América do Sul significam um acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma graça. É tão grande o acúmulo de desvantagens, num país ao mesmo tempo tão interessante, que a gente é forçado a ler isso como uma bênção. Isso não é uma questão apenas de eu querer me salvar, já que eu nasci no Brasil e sou mulato do interior da Bahia, filho de gente do povo. Minhas duas avós nunca se casaram. Cada uma teve filhos com mais de um homem. Ou seja: é gente do povo brasileiro mesmo! Meu pai era mulato. Eu já estou salvo! Qualquer mente inteligente concluirá que o país tem um acúmulo considerável de peculiaridades – desvantajosas em princípio, mas não malditas em si mesmas – que nos leva a desconfiar, com toda razão, de que tudo significa uma bênção.
CONTINENTE Além da referência direta a Joaquim Nabuco, você faz pelo menos duas homenagens no disco, uma a Antonioni, para quem você compôs uma música, e outra a Jorge Ben, de quem você regravou Zumbi. É possível comparar o significado de um e de outro sobre o que você faz?
CAETANO VELOSO Além do Joaquim Nabuco, tenho no disco três personagens explicitamente homenageados: Raul Seixas, Michelangelo Antonioni e Jorge Ben. Raul Seixas é homenageado numa canção que se chama Rock in Raul. Acabei de ouvir um disco de Tom Zé que tem uma música sobre Raul Seixas. É como se fosse um cordel que narra a chegada de Lampião e Raul Seixas no FMI. Os dois estão enfrentando o FMI e Washington. Já no meu disco, Raul aparece como um sujeito que superexibia a “vontade fela da puta de ser americano”. Era como Raul Seixas falava – um modo baiano antigo de falar; acho que em Pernambuco também. Pode parecer, a ouvidos mais tolos, que a minha canção apresente uma desaprovação seja do Raul seja da vontade de imitar os americanos. Em primeiro lugar, não desaprovo Raul, um dos meus artistas favoritos. O primeiro disco de Raul Seixas é um dos melhores já feitos no Brasil – uma obra-prima. Não havia quase nada feito por outros artistas brasileiros – pode pensar nos maiores nomes – de que eu gostasse mais. Havia muito pouca coisa que eu chegasse a gostar tanto quanto eu gostava de Ouro de Tolo. Nunca vivi, como ele e muita gente viveu e vive, a vontade imediata de ser americano. Não foi assim comigo e com muitas outras pessoas da minha geração, como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Glauber Rocha, Cacá Diegues. Mas aquele sentimento – mundial diante do que os Estados Unidos se tornaram – se manifestou ainda mais fortemente nos países da América. Era a vontade de chegar à situação do americano. É como se a vida que podíamos levar não fosse a verdadeira vida. É como se, através dos filmes, canções e reportagens nas revistas, a gente visse que ali é que se vivia a verdadeira vida. Assim como tantos outros, Raul não queria viver o que não fosse a verdadeira vida. Rita Lee contou numa entrevista que Raul Seixas disse a ela: “Sou americano. Apenas nasci no país errado”. Todo o negócio do rock vem dessa vontade. Mas não é só o rock: a bossa nova tem muito disso. João Gilberto é que deu um nó, uma virada. Mas Johnny Alf, Dick Farney, os próprios nomes que eles botaram em si mesmos, as músicas que eles fizeram... Aloísio de Oliveira – um letrista espetacular, uma pessoa maravilhosa, um homem que foi tudo para Carmen Miranda, o namorado, o companheiro, o sujeito que amparou Carmen nos Estados Unidos, autor de letras lindas com Tom Jobim – tinha aquela vontade louca de ser americano. Mas, em primeiro lugar, é difícil querer exigir que essa vontade não apareça. É alguma coisa vivida desde a infância. Também há a admiração do desenvolvimento harmônico e da sofisticação da música popular americana em comparação com as outras. Quem tem bom ouvido musical e ouve uma música harmonicamente mais rica e ritmicamente mais inventiva se sente atraído por ela, consegue entendê-la, quer reproduzi-la, quer participar daquele mundo. É uma vontade legítima! O sujeito vê naqueles grupos de rock a sensação de que havia uma pujança de energia que tinha de ser extravasada em música barulhenta e roupas espalhafatosas. Então, o sujeito tem, desde criança, uma vontade genuína de fazer aquilo. Depois de adulto, o que ele faz com aquela vontade genuína é uma arte que ao mesmo tempo a exiba e comente com alguma ironia. Não com a ironia dos tropicalistas – que não vieram daí. Nós não viemos da vontade de imitar. Eu, sobretudo, não – nem tão pouco Gil, Gal, Betânia, Tom Zé. Toda a linhagem do rock vem daí. A música de Raul Seixas trata disso. Numa frase rápida, a letra diz: “E hoje olha os mano”. É uma menção aos rappers brasileiros – que também demonstram uma grande vontade de se identificarem com os americanos. Os nomes que eles escolhem para si são nomes em inglês, parecidos com os dos negros americanos. É imensamente saudável, porque apresenta uma vontade de discutir e problematizar o modo como se dispõe o panorama racial no Brasil. Preferem se chamar Ice Blue, Mano Brown, Carlinhos Brown. Ganham o nome de James Brown. Isso é tudo muito complexo para mim. É o estímulo da minha vida. Mas, quando vejo uma vontade muito destrutiva de simplesmente imitar os americanos – e empobrecer a vida brasileira –, eu digo assim: “Essa gente merece um Ariano Suassuna”. Adoro quando Suassuna mantém aquela ranzinzice. Não penso como ele. Penso de uma maneira que ele já disse repetidas vezes que não aceita. Eu entendo que as pessoas, se traírem essa vontade genuína, estarão sendo menos brasileiras. Porque é muito profundo, num verdadeiro brasileiro, sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os norte-americanos! Não é a única coisa que pode acontecer com os brasileiros. Mas é muito freqüente, muito compreensível e muito profundo na formação de uma personalidade brasileira. Os rappers trazem uma conotação de crítica ao panorama racial brasileiro. Dizem coisas que a gente não acha em outras áreas da produção. O rap, para mim, é mais som do que conversa. Eu entendo mais uma letra de uma música cantada do que um rap. Mas ouvi tanto o disco dos Racionais MCs que já me acostumei. Aquilo é de uma beleza enorme. Falam de versos “violentamente pacíficos”. A gente vê ali uma pujança e uma liberdade de criação artística. Se eles não tivessem a vontade louca de imitar os americanos, a gente não estaria hoje contando com eles. Assim é o caso de Raul Seixas. Por esse motivo é que falo na letra “e hoje olha os mano”. Tudo é exemplo de dignificação dessa atitude. Quanto às outras personalidades que estão homenageadas no disco: Jorge Ben é um caso espetacular de saúde cultural, é rock com samba, um brasileiro preto do Salgueiro que terminou indo viver em São Paulo um período crucial da vida. Ficou quase tão ligado a São Paulo quanto Chico Buarque ficou ao Rio de Janeiro. Jorge Ben se ligou ao iê-iê-iê em São Paulo porque não podia aparecer no Fino da Bossa: misturava rock com samba. O disco dos Racionais – por sinal – abre com uma música de Jorge Ben, Jorge da capadócia. É preciso ver que Jorge Ben, como João Gilberto de uma maneira totalmente diferente, fica num lugar onde essas coisas acontecem. Jorge Ben tem muito mais vontade de imitar o americano que João Gilberto. Mas Jorge Ben criou uma solução única, em que a brasilidade entra não apenas com um percentual importante, mas também como uma função na estruturação da personalidade artística. É diferente de Tim Maia – um artista interessantíssimo. Por essa razão, Jorge Ben é mestre dos pagodeiros, rappers, tropicalistas e roqueiros. A gente encontra Jorge Ben nos neo-bossanovistas, nos discos do Milton Nascimento, nos pagodes, nos Racionais, nos meus discos. Desde os anos 70, sempre gravo músicas de Jorge Ben. Os Paralamas do Sucesso gravam, todo mundo grava. Porque ele é uma solução espetacular. Dá uma sensação de saúde cultural sem os amparos do status de uma educação de alta classe média. Não é assim. Jorge Ben não é letrado: é um grande poeta, um grande solucionador cultural, um sujeito imenso. Eu me sinto presente ali dentro do disco dos Racionais, que começa com uma música de Jorge Ben que também gravei. Há uma coisa que precisa ser dita, porque tem a ver com o que falei sobre Raul Seixas e Jorge Ben: não é verdade, de maneira nenhuma, que grupos de rap, como os Racionais, sejam alguma coisa destacada da MPB, algo que se opõe a ela. Tenho horror a esse negócio de MPB – parece uma doença que deu na música popular brasileira. Eu acho errado. Nunca me identifiquei com essa idéia. O tropicalismo veio para dizer que não tem nada a ver com isso. Eu mantenho até hoje essa atitude. Ouvem-se, no disco dos Racionais MCs, ecos da minha gravação da música de Jorge Ben – confirmados pelos componentes dos Racionais, pessoalmente, em conversa comigo. É algo importante, porque os vincula explicitamente – e o que eles fazem – à tradição da música popular brasileira. O vínculo já existiria, necessariamente. Mas há um vínculo de eleição por parte dos artistas. Num momento crucial, numa das letras mais lindas do disco, Mano Brown diz assim: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano”. É a frase do Belchior que, ali citada, marca a continuidade de história da música popular brasileira, o diálogo interno da MPB, o que não quer dizer que não haja diferenças enormes. Raul Seixas sempre foi meu amigo. Vi o último show que ele fez, aqui no Rio, com Marcelo Nova. Raul já estava quase sem poder falar, sem poder cantar. Fui homenageá-lo, conversar com ele, porque era meu amigo desde que voltei de Londres. Nunca tivemos briga, rusga, discordância, nada – nem pessoal nem artística. Raul Seixas queria ser feito um roqueiro que falava inglês, queria estudar numa high school, usava bota como se fosse do Oeste, vivia vestido de Elvis Presley. Eu não: desde menino, nunca tive vontade disso. Meu negócio é outro: eu gostava de Sílvio Caldas. Mas entendi essas pessoas. Vi o que significava o gosto pelo rock, vejo nos Manos hoje. Quanto a Antonioni: tenho com o cinema italiano uma dívida imensa – que venho pagando pouco a pouco. Eu gostava dos musicais americanos, mas tinha uma grande paixão pelos filmes neo-realistas italianos e pelos desdobramentos do neo-realismo. Fiz uma música sobre Giullieta Masina, o que me levou a ser convidado para fazer um espetáculo em homenagem a ela e a Federico Fellini – que, gravado, terminou saindo em disco. Depois de ter visto todos os filmes de Antonioni, tive um contato com ele. A admiração às vezes assombra. Tive um contato pessoal com Antonioni, graças a meus dois amigos e cineastas brasileiros Júlio Bressane e Cacá Diegues. Um não se dá com o outro, mas ambos adoram Antonioni. Os dois convidaram-no para jantar. Antonioni aceitou os dois convites. Todos dois me convidaram também. Antonioni, então, riu muito, porque eu estava nos dois grupos, totalmente diferentes. Quando fui a Roma, tive a surpresa de vê-lo na platéia do meu show “Fina Estampa”. Nem vi que ele estava na platéia, mas, quando acabou o show, eles vieram ao camarim para falar comigo. Antonioni tinha ficado muito bem impressionado. Quando fiz em Roma o show que saiu do disco Prenda Minha, ele estava na platéia novamente. Voltamos a conversar. Curiosamente, ele não fala, desde que sofreu o derrame, há oito anos, mas se comunica – muito – através da mulher, dá opiniões através de gestos. É muito bem-humorado. Gostou muito do show. Já devo tanto a essa gente, já devo tanto a esse homem. Tento ir pagando pouco a pouco minha dívida com o cinema italiano – que, agora, acaba de crescer com o filme de Bertolucci, O Assédio. Nunca fui fã de Bertolucci, mas O Assédio é uma obra-prima. Eu digo: meu Deus, continua crescendo o meu débito com os cineastas italianos. Fiz, então, uma música que se chama Michelangelo Antonioni. Fiz a letra em italiano, uma língua que mal falo. Organizei os poucos versos para ficar tudo direito e mandei para Antonioni, para que ele me dissesse se tinha aprovação. Fiquei muito feliz ao receber uma resposta dizendo que ele e a mulher tinham aprovado com entusiasmo. Gostaram da canção.
CONTINENTE Ao explicar porque estava lançando tão poucos discos, Chico Buarque disse, textualmente, numa entrevista recente, que a música popular talvez seja uma arte de juventude. Com o passar do tempo, os compositores já não têm aquela espontaneidade dos 20 anos. Você, que lançou o último disco autoral há três anos, também tem tido essa sensação?
CAETANO VELOSO Não tenho – e Tom Zé não me deixa ter. Tom Zé fez, aos 64 anos, um disco que é o mais jovem que ele já fez. Fez com uma tal vontade que parece que ele vai fazer 300 músicas. Deve ser porque o disco foi feito no Brasil. Tom Zé voltou a gravar aqui. Desde os anos 70 – ou 80, no máximo – ele não gravava no Brasil. O disco, então, ficou vital. Quando li esta declaração de Chico numa entrevista, eu me identifiquei imediatamente com ela, concordei com ele: achei que a música popular brasileira é uma arte de juventude. Você precisa de estar com disposição para viajar, cantar, subir no palco, compor músicas, ter aquela animação ingênua de quem acha que pode fazer mais canções. Escrever livros ou fazer filmes já se assenta mais para uma pessoa mais velha. Por isso, fiz um filme nos anos oitenta pensando em fazer outros. Pensei: já estou ficando velho. Então, faço só cinema – um negócio que assenta mais do que música popular para alguém mais velho. Também pensei em escrever livros, mas não gosto de ficção para mim. Eu tinha vontade de escrever outro livro, porque gostei muito de escrever Verdade Tropical. Pensei em escrever um livro sobre raça no Brasil – não um livro de scholar, mas um estudo, uma reflexão pessoal sobre minha experiência. Talvez um dia eu escreva. Não escrevi, mas li Joaquim Nabuco.
CONTINENTE O historiador Evaldo Cabral de Mello reclama de que a obsessão em procurar uma identidade nacional é típica de países inseguros. Você acha que a música, no caso do Brasil, pode ajudar o país a achar essa tal identidade? Você tem essa pretensão?
CAETANO VELOSO A obsessão em encontrar uma identidade nacional evidentemente é sintoma de uma insegurança do país. O Brasil tem todas as razões históricas para se sentir inseguro. O que falo não pode nem se contrapor à fala de um historiador – um sujeito que se dedica a estudar e a levantar dados. Eu, compositor de música popular, tinha, pessoalmente, na época do tropicalismo, uma atitude de enfrentar e ao mesmo tempo “desconstruir”, como se diz hoje em dia, a questão da identidade nacional. Nós fizemos um grande escândalo antinacionalista, demonstramos ostensivo desprezo pela idéia de busca de raízes da autenticidade nacional. O primeiro apelido do tropicalismo foi “som universal”. O nome “tropicalismo” veio depois. Gil gostava da expressão “som universal”. Também gostava de “pop”. Eu não gostava tanto de que se chamasse tropicalismo porque achava que era um rótulo que ia prender a gente nos trópicos. Era o que não queríamos. Gostávamos do desrespeito a um estilo nacional-popular que era buscado, então. A gente queria desrespeitar esse negócio. O filme Terra em Transe tem um desespero em relação à identidade brasileira. Há uma grande agressividade em relação a esse tema. Vivia-se, ali, o auge da obsessão com a identidade nacional. Isso fez a questão da busca de identidade entrar em crise – ou em transe. Isso me interessou muito logo que vi o filme. Talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade do que o cinema e a literatura. Fizemos coisas que eram um desrespeito à própria busca da identidade, embora tivessem a ambição de resolver o problema da identidade nacional. Era como se a gente quisesse passar por cima do tema, como se a gente dissesse: “Eu considero que, com o desespero da busca de identidade, a vontade louca de imitar os americanos, a falta de segurança, a incapacidade de organizar uma sociedade respeitável, com tudo, acho que já tenho identidade suficiente. Já estou falando diretamente para o mundo”, como se dizia no Recife numa famosa emissão radiofônica: “Pernambuco falando para o mundo”.
O JORNALISMO EM DEBATE
CONTINENTE O que incomoda você na postura da imprensa diante de lançamentos de discos e livros? Por que é que você resolveu neste disco primeiro falar através da Internet para todo mundo?
CAETANO VELOSO Faz algum tempo que me sinto um pouco mal quando vejo nos jornais os lançamentos de discos, livros, peças de teatro, filmes. Vejo sair na primeira página dos segundos cadernos, no mesmo dia, matérias parecidas, uma entrevista matada, uma crítica pequenininha, escrita sem tempo, em conseqüência de uma combinação feita entre os jornais e as assessorias de imprensa. Acho que o jornal perde e o produto perde. Porque o produto – um disco, um livro, um filme – vira uma notícia que é disputada pelos jornais. Parece que um vai furar o outro. Mas, penso, na apreciação de um livro, não seria cabível pensar que um jornal possa “furar” o outro. Ou alguém tem algo a dizer de interessante sobre aquele livro – e o fará quando estiver preparado, para que o jornal seja o melhor possível – ou então reduz-se tudo a uma notícia que será disputada entre os jornais. O que acontece hoje é que se uma notícia sobre um lançamento qualquer sair antes em um jornal, o outro não publica nada sobre o assunto! Se noticiar, noticia contra, ou esconde, ou boicota. É um problema que desmerece a imprensa – e os produtos também, porque eles terminam mal apreciados criticamente. Os críticos não têm tempo de ouvir! Recebem um CD com um press-release, no mesmo dia todos entrevistam o artista e saem rapidamente para as redações. Eu já acho a cara da gente meio ridícula ali, a toda hora, quando vai estrear um show ou quando vai ser lançado um disco. Quando se abre o jornal nos segundos cadernos, lá está a gente, na primeira página. É o caso de artistas como eu, Chico, Gil, Roberto, artistas de primeiro time que vão para a primeira página. É sempre igual aquilo. Acho meio empobrecedor tanto para a própria imprensa quanto para o produto que os jornais e revistas estão apreciando. Então, tive uma vontade louca de procurar um meio de driblar isso. Mas é muito difícil. Eu estou aqui fazendo de uma maneira que me parece que pode mexer com esse quadro. Se a gente conseguir mexer e mudar... As pessoas escrevem a crítica como e quando quiserem. Não faço entrevista com eles agora. A que estou fazendo agora com você pode ser lida – ou vista – na Internet por todo mundo, ao mesmo tempo, jornalistas e não-jornalistas. Quem tiver acesso à Internet verá. Pode até conferir o que os jornais publicarem. O que digo aqui pode também estimular entrevistas particulares sobre determinados assuntos. Ou sobre um detalhe que não foi falado. O jornalista pode dizer assim: “Quero aporrinhar Caetano sobre um detalhe de que ele não falou”. A gente faz, então, a entrevista. Se ninguém quiser fazer, tudo bem: não se faz, contanto que se mude a prática. Eu realmente acho que é saudável e necessário mudar. Os jornalistas também estão precisando! Nós estamos! Não pode um jornal sair parecendo que é o release dos lançamentos. Para as assessorias e para quem oferece o produto – artistas, companhias de cinema, editoras, gravadoras – é como se o jornal fosse um release, como se a página do jornal fosse um veículo de lançamento. Quando se trata de uma notícia, acho compreensível. Há notícias que todo mundo tem de dar mesmo. O sujeito se dá bem quando consegue um furo de reportagem com a descoberta de uma tramóia. Mas, quando se trata de um produto cultural, não é bem assim. Se sai um romance de Chico Buarque, qual é a vantagem de você sair na frente? A vantagem seria ler. O leitor pensará: “Não vou deixar de comprar o Jornal do Brasil, porque as resenhas são muito bem feitas”. Mas as resenhas não podem ser muito bem feitas, porque são feitas às pressas para sair antes.
CONTINENTE Mas você acha que pode quebrar esse vício através da Internet?
CAETANO VELOSO É uma maneira de tentar quebrar. Pelo menos a entrevista sairá para todo mundo. Pode ser que haja um ritmo diferente. A gente vê que, na própria imprensa, há esforço nesse sentido. Eu li, na revista Bravo!, um artigo de Sérgio Augusto de Andrade que diz exatamente o que estou dizendo aqui. Adorei ler porque ele diz com todas as letras exatamente o que eu vinha observando. Faz uma análise com a qual concordo plenamente, não só em relação às críticas, mas também quanto à feitura dos segundos cadernos. Um sujeito pode ir fundo num artigo sobre um assunto que ninguém escolheu. A gente vê que há uma certa reação. Mas esse negócio de sair, na primeira página de todos os jornais, o lançamento de um filme da Sharon Stone, é pobre, porque não se privilegia a apreciação. Ou bem você tem uma apreciação interessante sobre um filme novo ou você não tem mesmo muito o que dizer. É fraco, num jornal, dizer que fulana ia filmar com beltrano mas deixou de filmar na última hora...
CONTINENTE Ensaístas conservadores, como o inglês Paul Johnson, que escreveu um livro para dizer que a arte moderna é uma porcaria, dizem que a grande praga desse final de século é o relativismo cultural: tudo é válido, nada é ruim. Você não corre o risco de estimular esse relativismo cultural ao criticar os críticos da predominância da chamada música comercial no mercado?
CAETANO VELOSO Eu olho com desconfiança esses conservadores. Mas não gosto desse negócio de vale tudo não. Por falar o que falo, compreendo que há um risco de parecer que dou força ao que eles chamam de “relativismo cultural”. Mas, na crítica que estou fazendo aos jornalistas, não me sinto de maneira nenhuma dando força ao relativismo cultural. Pelo contrário! Porque acho que o que vem acontecendo é um enfraquecimento da instância crítica. Os jornalistas se comportam como artistas ultra-comerciais. Mas se dão o direito de criticar artistas que são, sob o ponto de vista profissional, muito mais responsáveis que eles! Os jornalistas se dão o direito de descartar a existência desses artistas como se eles, os artistas, fossem comerciais. O que se vê, aí, é um relativismo inaceitável, uma confusão de valores que não posso aceitar! Sou muito mais exigente! O sujeito que critica não sabe redigir bem. Mas Daniela Mercury canta afinado, ensaia bem os números; Ivete Sangalo arrebenta cantando; Sandy é uma cantora perfeita, sob o ponto de vista técnico. Eu peço, pelo menos, que o sujeito que escreve na Folha ou o outro que escreve no Globo redijam a frase corretamente. É o mínimo! Como Sandy é afinada, que ele saiba pelo menos escrever. Mas, não! Ele é uma estrela da agressão e da opinião moderna. Só gosta de grupos de língua inglesa. Para ele, nada do que é brasileiro pode prestar jamais! Isso já é um princípio simplório demais. Fazem personagens assim mas não apresentam sequer um produto comparável ao que Sandy e Júnior apresentam. Chitãozinho e Xororó cantam afinado, ensaiam bem os shows. Os artigos são mal escritos! Você vai ler: está errado o português! A idéia é primária, o português está errado, e ele vai falar mal da Sandy? Vai falar mal de Ivete Sangalo? Não dá! É muito abaixo da Ivete Sangalo, como quem apresenta um produto que vou consumir. Sou, então, muito mais exigente. Não há relativismo possível aí! O que estou dizendo é que essas pessoas são superiores àquelas outras, naquilo que fazem! De fato, são! Posso mostrar a você que, numa gravação da Sandy, a afinação é 100%! Eu levo você ao show da Sandy. Digo assim: “Você não vai ver aqui um buraco, porque ela entra no tempo certo, ela tem intensidade de voz certa em relação aos instrumentos, as harmonias estão certas, a afinação é em nível de Elis Regina!” Mas posso pegar o texto do crítico Pedro Alexandre Sanches e dizer: “Venha cá, o que é que este parágrafo quer dizer?” É tudo errado, mal escrito. Posso pegar o texto de Mário Marques: “Isso aqui está mal escrito!” Então, não existe nada de relativista nisso. Nada! Ao contrário: é possível mostrar claramente que o que estou dizendo é pertinente, porque há valores universais que podem ser reconhecidos ali. Há redações bem realizadas e há cantos afinados. Há cantos desafinados, você pode até medir a afinação em aparelhos. Não há nada de relativismo. Há, sim, valores absolutos, universais. Uma nota afinada é uma nota afinada! Também há uma modernidade a respeito da utilização da nota afinada, um interesse pela desafinação, pela microfonização, pela negação da tonalidade. Mas são outros quinhentos. Isso é o momento meu menos relativista: eu estou me atendo a valores reconhecíveis e indiscutíveis.
CONTINENTE Você diria que a competição exacerbada entre os jornais vem prejudicando a cobertura cultural?
CAETANO VELOSO Eu acho que prejudica a cobertura cultural, empobrece a prática do jornalismo e compromete a própria qualidade dos cadernos ditos culturais. Não que não haja coisas boas e interessantes! Mas existe uma coisa que acho mais grave, porque é um sintoma de um grande comercialismo dos jornais e de uma vulgarização do aspecto comercial do jornal: é a transformação de jornalistas – que assinam o nome – em personagens que procuram caricaturar-se para ver se se tornam figuras. Nesta área do jornalismo cultural, dá-se muita ênfase a uma suposta agressividade dos apreciadores. É uma agressividade forçada, para que o jornal fique polêmico ou seja a estrela do acontecimento. Então, quando sai um disco, vê-se na maioria das redações uma disputa para ver quem escreve de maneira mais chocante sobre os produtos e os produtores de cultura. Isso é um negócio chato. Sinceramente, não posso aceitar que as mesmas pessoas que agem por uma motivação comercial reclamem contra o comercialismo da axé music ou da música sertaneja ou do pagode! Tenho vontade de rir quando vejo esse tipo de jornal e esse tipo de jornalismo querendo torcer o nariz para a axé music ou para duplas sertanejas. Digo: “Comparada com o que vejo nesses veículos, Daniela Mercury é São Francisco de Assis! É incomparável!” Há nos blocos de axé a responsabilidade de apresentar um produto respeitável. Também há, nas duplas caipiras e nos grupos de pagode, a responsabilidade de apresentar um produto de alta qualidade, dentro daquilo a que se propõem – com exigência, com trabalho, com profissionalismo, com respeito por quem vai consumir. Não vejo nada disso na produção desses jornalistas que torcem o nariz para música axé, pagode e sertaneja. Eu li numa revista um artigo que citava números para dizer que considerava auspiciosa a queda na vendagem da axé music e do pagode. A verdade é que o mercado fonográfico brasileiro estava caindo em geral, mas essa revista se dava ao direito de festejar dizendo “É bom, porque nós vamos nos livrar de ouvir esse lixo”. Mas a revista era um lixo – e essa música é que é bem feita, por gente honesta. Para mim, não dá! Dizem: “É corporativismo de Caetano Veloso; não se pode falar nada contra a música popular...” Mas não é assim, não. Não sou corporativista! Sou bom colega, tenho o maior orgulho de chegar a todo lugar do mundo e me perguntarem com inveja: “Como é que isso acontece no Brasil? Como é que você se dá com Djavan, se dá com Lenine, conhece Ivete Sangalo, freqüenta Daniela Mercury, fala com Sandy e Júnior, é amigo de Milton Nascimento e janta com o Edu Lobo? Não entendo como é que vocês se dão! Porque não é o que acontece aqui na Inglaterra, aqui na França”. Não pode, é impensável essas pessoas aqui conviverem, se encontrarem, se admitirem umas às outras. Tenho orgulho que seja assim, acho bonito, me sinto bem. É da minha natureza. Não sou corporativista, não, quando gente de música erra, eu digo e tenho dito com a maior clareza, às vezes com grande agressividade! Já houve coisas que desaprovei abertamente. Não fico procurando, não sou palmatória do mundo, não vou ficar aqui dizendo “Fulano é bom, fulano não é”, mas acontece que há limites. Eu reajo mesmo a pessoas que agem mal. Eu me lembro da briga com Fagner nos anos 70, 80. Durante uma entrevista, respondi violentamente porque Fagner tinha sido desonesto e injusto comigo publicamente. Tinha mentido a meu respeito. Respondi violentamente. Aldir Blanc – que estava participando da entrevista – desligou o gravador e me mandou apagar, eu disse: “Não! Faço questão de gravar para que saia o que quero dizer”. Agora mesmo tive uma discordância com Marcelo D2 – do Planet Hemp – por causa de uma atitude pública que ele teve. Adorei a apresentação do Planet Hemp na festa da MTV, achei que foi o melhor número da noite. Marcelo D2 disse no jornal que não gosta da minha música. Disse-me também pessoalmente que não gosta da minha música, o que acho bom, porque se o fato de ele não gostar contribui para ele ser como ele é, então ótimo. É bom que as pessoas não gostem de algumas coisas para que possam ser mais intensamente o que elas são. Mas ele agiu mal comigo de uma maneira imperdoável que não tem nada a ver com o fato de ele gostar da minha música ou não. Marcelo D2 marcou uma gravação para a trilha do filme Orfeu mas não foi. Ficamos esperando; ele adiou para a segunda noite, mas não foi nem deu explicação. Nós procuramos, mas não o encontramos. Um mês depois, ele dá uma entrevista à Folha de S. Paulo para dizer que não foi porque soube que quem estava produzindo era Caetano Veloso. Quis botar banca para agradar a um pessoalzinho que lê a Folha de S. Paulo e pensa que é bacaninha dizer que não gosta de Caetano Veloso. Pensei: quando eu o encontrar vou dizer a ele: “Você não é homem. Você não foi viril. Isso não está certo”. E disse a ele – não foi gritando nem dando escândalo. Falei firme com ele. Não tenho, então, esse problema. Quando aconteceu aqui a polêmica sobre o pagamento dos cachês aos artistas no show do réveillon, achei que Paulinho da Viola não agiu certo. Eu disse a ele numa carta. Reitero aqui. Eu estou seguro de que ele não estava! Muita gente me disse “Não, não diga!” Gil tentou até a última das últimas horas não desacreditar daquilo que estava sendo apresentado por Paulinho como sendo a versão verdadeira. Mas eu já sabia que não era. Adoro Paulinho da Viola. Para mim, ele é um dos deuses do Brasil, mas aquilo estava errado. Eu disse com todas as letras, numa carta que escrevi para o Jornal do Brasil. Uma porção de gente me esculhambou, em milhões de cartas. Vejo gente que hoje fala comigo na rua mas escreveu me xingando. Comigo, então, não existe esse negócio de corporativismo banana nenhuma! Uma das melhores coisas que vi ultimamente foi o show da Nação Zumbi. Fui ver sozinho em Santa Teresa. Achei maravilhoso; achei a banda a melhor coisa do mundo. Mas, outro dia, Lírio, diretor de cinema, estava me dizendo que eles tinham ficado zangados porque não gostam do meu som. Eu disse: “Se é para fazer aquilo, então acho bom que não gostem do meu som”. Porque, para mim, aquilo que a Nação Zumbi faz é tudo o que há de bom. Talvez seja a melhor banda do Brasil atualmente! Desde o tempo de Chico Science, acho aquilo espetacular. Lírio estava me dizendo que eles tinham um grilo porque eu tinha dito que aquilo veio do Olodum. Era como se o ritmo da Nação Zumbi tivesse sido tirado do Olodum. A idéia de um grupo de percussão de rua se modernizar com influências internacionais e manter ligações com a tradição da música de carnaval de rua é uma coisa que se tornou notória através do Olodum, não nego. O Olodum não tem uma banda própria que se compare nem de longe ou que tenha nível para lamber os pés da banda da Nação Zumbi. Mas o Olodum é o Olodum! Historicamente, influenciou esse tipo de atitude no Brasil inteiro. Não posso ver a Nação Zumbi sem pensar que, sem o Olodum, o estímulo para tomar aquela atitude nunca teria aparecido. O Olodum precedeu e estimulou aquilo. É o que eu disse. E é verdade. Ninguém precisa gostar do meu som, mas não tem o direito de dizer que eu disse uma coisa que eu não disse.
CONTINENTE Você diz que a imprensa reclama da qualidade da chamada música comercial, mas a imprensa deve se lembrar de que também ela segue as leis do comércio. Você quer convocar a imprensa a fazer uma comparação entre a qualidade do produto oferecido pelos jornalistas e a música? É esse o desafio que você quer fazer?
CAETANO VELOSO Você falou exatamente o que eu podia ter falado em poucas palavras. Eu, pessoalmente, estou convencido de que a música comercial é de melhor qualidade do que a imprensa comercial brasileira. Gostaria que os jornalistas atentassem para isso.
Confira o restante desta entrevista em PDF.
GENETON MORAES NETO foi um jornalista pernambucano e um dos principais cineastas ligados ao movimento do super-8 no Recife. Faleceu em agosto de 2016.