Em um país que aparenta ser de grande tradição violonística, como o Brasil, chama a atenção que o primeiro curso superior de violão tenha surgido apenas nos anos finais do regime militar. A resistência ao instrumento deveu-se a resquícios de um preconceito bastante difundido, como conta Humberto Amorim: “O estigma de instrumento ‘menor’ não foi importado da Europa. Ele nasceu e se sedimentou em solo brasileiro a partir, sobretudo, da segunda metade do século 19, quando o violão passou a ser identificado e associado simbolicamente com gêneros de música popular e personagens sociais das classes mais baixas”.
Em meio à repressão, o violão ia contribuindo para a formação de gêneros musicais hoje consagrados, como o choro, o samba e, um pouco antes, o lundu, o maxixe, e outros. “Tais gêneros, discriminados socialmente e nos quais o violão tinha ampla presença, ajudaram a construir uma imagem de ‘instrumento de vagabundos e desocupados’. Havia uma lenda urbana de que os policiais, nessa época, ao se depararem com sujeitos nas ruas, observavam primeiramente se neles havia ‘calos nos dedos’. Se houvesse, eles seriam levados diretamente para o xadrez”, completa o violonista.
Ricardo Tacuchian comenta a visão academicista sobre o violão até os anos 1970, influenciada por aquele estigma: “A Escola de Música da UFRJ é hoje uma instituição progressista e muito atuante, com professores excepcionais. Entretanto, ela foi uma escola conservadora, não obstante também possuísse excelentes professores. O grupo dominante nunca admitiu conviver com um instrumento que tinha a fama de música ‘inferior’. Essa mentalidade sempre me incomodou, principalmente depois de conhecer a obra de Villa-Lobos para o instrumento. A oposição ao violão, na UFRJ, nunca foi ‘oficial’, mas a meias palavras.”
Com a volta ao Brasil de Turibio Santos – o primeiro a gravar todos os 12 estudos de Villa-Lobos –, em 1980, Tacuchian propôs a criação do curso de violão na UFRJ e o reconhecimento do título de notório saber ao virtuose maranhense, confiando-lhe a direção do curso, em seguida. O compositor rechaça qualquer glória para si nesse processo: “Meu único mérito foi ter tido a sensibilidade de perceber que ‘estava na hora’ (do curso)”.
Tacuchian, ao lado de Humberto Amorim, que realizou dissertação sobre sua obra.
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INEDITISMO
Ricardo Tacuchian e o violão é o primeiro livro dedicado à obra violonística de um compositor clássico brasileiro após Villa-Lobos e também o primeiro focado no músico carioca. O capítulo inicial faz uma revisão bibliográfica de citações, verbetes e artigos sobre Tacuchian, além de escritos do próprio compositor, enquanto que o segundo capítulo aborda aspectos biográficos e profissionais – regente, professor, líder cultural, pesquisador e criador.
A descrição das fases musicais de Tacuchian, no segundo capítulo, abrange do nacionalismo e neoclassicismo da década de 1960, do pluralismo sintético dos anos 2000 até o presente, passando pelo vanguardismo dos anos 1970 (resumido na série de oito Estruturas, para diversas formações instrumentais) e pelo pós-modernismo das duas décadas seguintes (representado mormente no noneto de câmara Rio/L.A. e no balé Hayastan).
Dentre os fatos mais interessantes do lado pessoal de Tacuchian, filho de um armênio com uma descendente de libaneses, estão o dilema entre a medicina e a música (ele fez as duas graduações paralelamente e trabalhou durante alguns anos como médico, até se decidir de vez pela composição), e a censura da ditadura, quando teve sua Cantata dos mortos (1965) impedida de ser estreada em 1969, por causa da letra de Vinicius de Moraes – a peça só viria a público após a revogação do AI5, em 1978.
O compositor narra o episódio: “Meu professor José Siqueira era amigo de Ayres de Andrade (diretor musical da Sala Cecília Meireles entre 1966 e 1970) e conseguiu um espaço para a obra. Alguns dias após, fui chamado pelo Ayres para ele me informar que a obra não poderia ser programada, por causa do texto. Na época, eu era um jovem e desconhecido compositor e aquela seria uma grande oportunidade de apresentar em público meu primeiro trabalho de fôlego. Foi como água na fervura. Eu me lembro que ele, muito amigavelmente, me disse que era melhor para mim porque a obra falava muito em liberdade. Isso poderia trazer complicações políticas para mim. Quando voltei, desanimado e frustrado, para casa, reli o poema do Vinicius e não encontrei, nenhuma vez, a palavra liberdade”.
A segunda metade do livro é que entra no mérito da análise composicional das 38 peças tacuchianas para (ou com) violão, abordando estruturações, técnicas, linguagens, dedilhados e contextos extramusicais, e incluindo considerações tanto do autor quanto de outros intérpretes conhecedores das partituras estudadas. Mesmo sendo uma publicação de um trabalho originalmente acadêmico, os capítulos iniciais de Ricardo Tacuchian e o violão poderiam ter sido mais enxutos, e todas as notas de rodapé e referências autorais estilo ABNT não fariam falta, se adaptadas ou abolidas. Contudo, a clareza e riqueza das explicações mais técnicas e a complementação que o DVD oferece a elas compensam aquele ponto.
O que fica evidente do pensamento composicional de Tacuchian ao longo de todo o livro, tal qual Humberto destaca em uma epígrafe, serve de lição para os compositores atuais, sejam quais forem as linguagens adotadas por eles: “Todo este edifício teórico pode ser subvertido a qualquer momento. A expressão sempre terá prioridade sobre a norma”. Fabio Zanon explica como esse pensamento do compositor se traduziu em quase 40 preciosas obras: “…muitos compositores adotam uma máscara quando escrevem para violão. Ao moldar sua linguagem ao instrumento, diluem-na; a obra de violão é de ocasião, adota um colorido de latinidade superficial, para atender a um pedido ou a uma situação específica, uma nota de rodapé esquecida ao longo de uma trajetória musical. Outros decidem fazer com que o violão seja, apesar da singeleza de sua única pauta, um veículo para um enunciado musical à altura de obras sinfônicas ou camerísticas”. A guitarra clássica brasileira, portanto, já vai bem além dos aspectos da obra de Heitor Villa-Lobos.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista e mestre em Comunicação.